Paraíba

Memória Histórica

Dossiê Grupo da Várzea Parte II - Era de Interventores e de Consolidação de Impérios

De 1930 a 1945, verifica-se a transição entre banguês e usinas e a aliança entre os Ribeiro Coutinho e os Veloso Borges.

João Pessoa - PB |
Manoel Veloso Borges (à esq.) e Flávio Ribeiro Coutinho (à dir.): a aliança a partir de meados da década de 1930 é o embrião do futuro Grupo da Várzea - Reprodução

Por Zênia Chaves Araújo de Melo*
                        

Nosso período inicia-se com a “Revolução de 30” que levou Getúlio Vargas ao poder, pôs fim à chamada Primeira República (1889-1930), tida como a era dos coronéis, e iniciou um período de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais. Termina em 1945 com dois acontecimentos marcantes: o fim da II Guerra Mundial (1939-1945) e a queda de Vargas. Institucionalmente, o país viveu, nesse ínterim, um governo provisório instaurado militarmente (1931-1934), um governo constitucional (1934-1937) e a ditadura do Estado Novo (1937-1945), sempre com Vargas na presidência, e presenciou conflitos internos como a Revolta Constitucionalista de São Paulo (1932), o levante comunista em 1935 e mais um golpe de estado em 1937. 

No governo provisório, todos os cargos executivos e legislativos federais, estaduais e municipais foram ocupados por pessoas não eleitas. Nos estados, o governador passou a ser nomeado pelo Presidente – os chamados interventores que, por sua vez, indicavam os prefeitos. Até 1933, todos os legislativos permaneceram fechados, quando, então, houve eleição para a Constituinte de 1934 e, em 1935, eleição indireta para o senado e direta para as prefeituras (a única até 1944). 

Como medidas políticas, econômicas e sociais que nos interessarão mais de perto, destacamos o processo de industrialização que (pretensamente) traria a tão desejada modernização ao país e às suas instituições e que foi acompanhado por uma intensa urbanização; a criação de um Estado nacional centralizado e autoritário que pretendia extinguir as oligarquias estaduais (acabou subjugando-as, sem extingui-las); a formulação de um arcabouço legal de proteção social e previdenciária aos trabalhadores urbanos que deu origem à CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), além de uma estrutura sindical corporativa atrelada ao estado. 

Duas ressalvas importantes: 1) as medidas de proteção aos trabalhadores não incluíam os trabalhadores rurais, gerando assim um polo de conflitos que irá se agravar no final da década de 1950; 2) a partir de 1942, com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, grande parte dos direitos dos trabalhadores urbanos foram suspensos (p.ex. a jornada de 8 horas diárias aumentou para 12) como parte da economia de guerra.

Essa época também viu o surgimento da Ação Integralista Brasileira (AIB), versão nacional do fascismo italiano, e o acirramento do anticomunismo, já pregado pela Igreja Católica, que será utilizado como pretexto para o golpe de 1937 (e de 1964) e instrumentalizado pelo Grupo da Várzea no embate futuro com as Ligas Camponesas. 

Por outro lado, o processo de industrialização desaguou na concentração de capitais nos estados do Sul/Sudeste, gerando profundas desigualdades regionais presentes até hoje e que potencializaram as desigualdades locais. Nesse processo, nossas oligarquias deram os anéis para não perder os dedos: aceitaram uma posição subalternizada em relação à economia e à política nacional, enquanto fortaleciam-se internamente no controle das prefeituras e da máquina estadual. 

Entre 1931-1932, a Paraíba viveu uma grande estiagem, o que demandou ações “contra” a seca através do Ministério de Viação e Obras Públicas e do DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra Secas (antigo IFOCS), que favoreceu os grandes proprietários de terras, aumentou a dependência dos trabalhadores rurais às práticas clientelistas e criou a chamada “indústria da seca”. 

No comando dos executivos estaduais, à frente de todos esses processos, tivemos os seguintes interventores: de 1930 a 1932, José Américo de Almeida (que só permaneceu no cargo por poucos dias, indo ocupar o Ministério de Viação e Obras Públicas) e Anthenor Navarro (morto em acidente aéreo em 1932); Gratuliano de Brito assume até 1934; de 1935 a 1940, governou Argemiro de Figueiredo e, finalmente, de 1940 a 1945, Ruy Carneiro.


Interventores da Paraíba durante a Era Vargas, de 1930 e 1945 / Reprodução

 

As movimentações políticas do Grupo da Várzea nesse cenário

Sobre os posicionamentos políticos das famílias líderes do Grupo da Várzea, lembramos que, quando da eleição presidencial de 1930, os Veloso Borges estavam do lado aliancista (apoiando Getúlio e João Pessoa) e, embora tivessem perdido nas urnas, tornaram-se vencedores quando da revolução no mesmo ano; já os Ribeiro Coutinho estavam com os chamados perrepistas que ficaram ao lado do presidente deposto Washington Luís.  Certamente, isso explica porque os Veloso Borges tiveram um certo protagonismo – em relação aos Ribeiro Coutinho - na fase do governo provisório (1931 a 1934), período em que esses últimos permaneciam na oposição e em que ainda se vivia sob o mito do sacrifício heroico de João Pessoa com uma feroz perseguição aos perrepistas. 

Em 1930, Manuel Veloso Borges havia sido eleito deputado estadual, porém não exerceu o mandato em face da extinção de todos os cargos eletivos pelo governo provisório. Nas eleições de 1933 (quando apenas 2,35% da população paraibana tinha direito ao voto), elegeu-se deputado constituinte pelo Partido Progressista da Paraíba (PP), legenda situacionista da qual era vice-presidente e que detinha o controle político do estado. Teve seu mandato prorrogado pela constituição de 1934 até maio de 1935. 

Virgínio Veloso Borges, irmão de Manuel, presidente da Associação Comercial da Paraíba e do Partido Progressista, ocupava, também, o cargo de fiscal do governo no Banco do Brasil. A trajetória política de Virgínio inclui ainda a fundação de uma seção da Ação Integralista Brasileira (AIB) em Santa Rita, da qual foi seu presidente de honra, para a qual ele tentava cooptar (sem sucesso) os operários da fábrica de tecidos Tibirí, de propriedade da família desde 1924. 


Registro da inauguração da sede do núcleo central da AIB-PB / Jornal "A Imprensa", 20 fev. 1935

No início de 1935, Manuel Veloso Borges e José Américo (que eram aparentados) foram eleitos (indiretamente) para o Senado. Ainda na década de 1930, quando José Américo controlava o poderoso Ministério da Viação e Obras Públicas, políticas de favorecimentos foram observadas envolvendo as terras da família Veloso Borges dentro do chamado combate à seca.


Inauguração da ponte Ministro José Américo de Almeida. José Américo e outros políticos. Guarabira-PB –1933 / Acervo Fotográfico da Fundação Casa de José Américo

Essa situação muda a partir de 1934/1935 com a adesão de Flávio Ribeiro Coutinho ao partido situacionista, o Partido Progressista. A partir daí, ele passa a ocupar cargos cada vez mais estratégicos do ponto de vista político e a assegurar a manutenção dos seus protegidos no comando dos municípios da região da várzea do Rio Paraíba. 

Até na Associação Comercial a antiga liderança dos Veloso Borges (de 1925 a 1928, conforme visto na parte I desse Dossiê) foi substituída pela dos Ribeiro Coutinho no período de 1937 a 1941, quando realizou um antigo pleito dos agroexportadores paraibanos que era a ligação por telégrafo entre João Pessoa e Recife. Entenda-se que isso não se configurava como dissidências entre elas, tratava-se mais de jogos intraoligárquicos de alternância de poder do que divergências ideológicas. Em anos sem eleições, a disputa política se dava, obrigatoriamente, entre as teias (e tetas) do estado, das associações de classe e dos acordos entre oligarquias.


João Pessoa, década de 1930: Praça Antenor Navarro e a Associação Comercial da Paraíba ao fundo / Acervo de Gilberto Stuckert

Como exemplo dessas acomodações políticas, citamos o acordo pelo controle de Santa Rita (sede das maiores usinas e da fábrica Tibirí) entre os Ribeiro Coutinho e os Veloso Borges, o que garantiu a vitória, na eleição de 1935, do primo de Flávio Ribeiro Coutinho, Flávio Maroja Filho, o qual foi reconduzido ao cargo mesmo após o golpe de 1937. Essa mesma situação também seria observada em outros grandes municípios da região, todos controlados por membros dessas famílias ou por acólitos. 

Considero essa aliança política como o embrião do Grupo da Várzea, já que, a partir daí, as famílias Ribeiro Coutinho e Veloso Borges se uniram e assim permaneceram até 1964, com um breve intervalo nas eleições de 1950, que não causou conflitos duradouros. Outras famílias de proprietários, como Lundgren, Santiago, Cartaxo, Régis, posteriormente se agregariam, formando, então, o poderoso Grupo da Várzea.

 

De engenhos de rapaduras e banguês a usinas elétricas

Na Parte I desse Dossiê, falamos sobre a formação das bases de um “império” que iria controlar toda a produção canavieira na região da Várzea do Rio Paraíba, capitaneada pelos Ribeiro Coutinho. Porém, para que esse império se consolidasse, teriam que ser extintos os mais de 1.160 engenhos rapadureiros e de banguê existentes no estado. 

Amparando-se no argumento da necessidade de melhorar a qualidade do produto e obter maior produtividade, a Comissão de Defesa da Produção do Açúcar, criada em fevereiro de 1931, na interventoria de Anthenor Navarro, na qual atuavam alguns membros indicados pela Associação Comercial, elencou vários problemas que afetavam o setor e propôs soluções, dentre elas o fim de qualquer “amparo a uma indústria rotineira como a dos banguês”, segundo relatório da Comissão.

Com isso estava aberto o caminho para a concentração de terras e da produção agroindustrial canavieira nas grandes usinas, vistas como arautos da modernidade e da industrialização, concentração essa que se consolidou nas décadas seguintes. Ao final dos anos 1950, havia em funcionamento na Paraíba seis grandes usinas e cinco delas pertenciam ao Grupo da Várzea: São João, Santa Helena, Santa Rita, Santana, todas de propriedade da família Ribeiro Coutinho, e a Usina Tanques de Aguinaldo Veloso Borges.  


Fachada da Usina São João, Santa Rita-PB (data desconhecida) / Jesus Carlos

Esse quadro irá permanecer praticamente o mesmo até 1985, com a família Ribeiro Coutinho controlando as usinas já citadas e suas destilarias anexas, além das destilarias autônomas de Una (Sapé) e Borborema (Pirpirituba), segundo estudos de Emília Moreira. Tal situação acompanhava a tendência nacional, visto que estudiosos da desigualdade brasileira indicam um substancial aumento da concentração de renda entre o 1% mais rico após a revolução de 1930, principalmente durante o Estado Novo, permanecendo assim até 1945.

As relações de trabalho no campo eram, então, do tipo “não capitalista”, ou seja, pautavam-se na não contratualidade, na remuneração não monetária, na subserviência e clientelismo, além, claro, de coerção violenta se e quando necessária. O cambão, a relação predominante, consistia em trabalhar 2 ou 3 dias por semana nas terras do “patrão”, sem remuneração, em troca apenas da condição de “morador”, ou seja, ocupar um pequeno pedaço de terra, cuja casa precária era construída pelo próprio trabalhador, sem direito a plantar o que lhe apetecesse e de negociar seus excedentes (se houvesse), sem poder criar cabras (que significava alimento para as crianças) e comprando (fiado) o que lhe faltava, obrigatoriamente, no barracão da usina, gerando um eterno endividamento. As antigas relações de compadrio aos poucos foram dando lugar a relações impessoais e distantes com patrões que não mais habitavam a casa grande, moravam em palacetes nas cidades, dirigiam automóveis e usavam paletó. 

Na literatura, uma outra forma de narrar a história da humanidade, esse período de transição entre banguês e usinas nos remete à obra de José Lins do Rêgo (1901-1957), ele próprio nascido em Pilar (portanto, conterrâneo e contemporâneo de Aguinaldo Veloso Borges) e a títulos como Menino de Engenho (1932), Banguê (1934), Moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo Morto (1943), dentre outros. É de Banguê o trecho final desse artigo:


O [engenho] Santa Rosa se findara. É verdade que com um enterro de luxo, com um caixão de defunto de trezentos contos de réis. Amanhã, uma chaminé de usina dominaria as cajazeiras. Os paus d’arco não dariam mais flores porque precisavam da terra para cana. E os cabras do eito acordariam com o apito grosso da usina. E a terra iria saber o que era trabalhar para usina. E os moleques o que era a fome. Eu sairia de bolso cheio, mas eles ficavam. [...].

 

*Bancária aposentada, ex dirigente sindical, bacharelada em Sociologia e Ciência Política pela UFRN e licenciada em História pela UFPB. Atualmente é estudante do Programa de Pós Graduação em História da UFPB (PPGH/UFPB).
 

Edição: Cida Alves