Alagoinha mudou. O mundo está mudando. Hoje existe uma aceitação maior da diversidade[...]
Por Joel Martins Cavalcante*
Fevereiro chegou, mas o carnaval é só em março. Janeiro foi um mês interessante para mim. Logo no dia 3, depois de passar uns dias em Alagoinha, peguei o ônibus por volta das 15h com destino a João Pessoa, cidade onde moro atualmente. Sempre levo algum livro para ler durante o trajeto. Eu estava lendo Mudar: Método, de Édouard Louis. Em dezembro, já tinha lido outros dois livros dele (Quem Matou Meu Pai e Lutas e Metamorfoses de uma Mulher). Sua escrita autobiográfica, de certa forma, conversava diretamente comigo. A leitura me fazia revisitar minha própria trajetória — uma história de deslocamento, de fuga e reinvenção, como tantas outras histórias de pessoas LGBTQIA+ que nascem em cidades pequenas.
Um pouco depois, entrou no mesmo ônibus Maya Inaê, a primeira mulher trans profissional de educação física retificada pelo conselho profissional da Paraíba. Ela sentou no banco à minha frente. Trocamos algumas palavras, e ela também pegou um livro. O tema era sobre mindfulness. Coincidentemente, eu já tinha lido. Seguimos nosso trajeto conectados pelo acaso da leitura e pela trajetória de vidas que, de algum modo, cruzaram barreiras.
Nasci em 1987. Naquele tempo, até a segunda década do século XXI, crescer em Alagoinha significava obedecer a um mundo de regras invisíveis, mas rigidamente impostas para pessoas heterodiscordantes. Os gestos deviam ser contidos, os desejos reprimidos, a voz policiada. Em casa, na escola, na rua, qualquer deslize era motivo de repressão. “Fale como homem, comporte-se como menino, não escute Xuxa, não brinque de boneca, descruze as pernas, tire as mãos da cintura...” Tanta coisa para moldar o corpo a uma sociedade patriarcal. Hoje sinto o peso da violência daqueles anos.
Na adolescência, tentei encontrar nas igrejas evangélicas (participei de duas) uma "cura" para aquilo que me diziam ser um erro, um pecado, uma doença — uma batalha interna que me levou, mais de uma vez, a pensar que a vida talvez não valesse a pena. Lembro de orar pedindo a Deus para não acordar no dia seguinte.
Mudar, para mim, foi sair da minha cidade. Isso foi em 2015. Mesmo já com independência financeira, já que tinha passado no concurso para professor em 2013, ainda me sentia cerceado na minha sexualidade. Passei no mestrado em Educação e fui morar em João Pessoa, onde a vida é mais colorida. Não que seja uma cidade livre de preconceitos e discriminações, mas as oportunidades de socialização, de conhecer novas pessoas e ter novas vivências são bem maiores do que numa cidade pequena. Comecei a existir sem vigiar cada movimento, paquerar e conhecer rapazes sem medo, ter relacionamentos. Mas nunca cortei os laços com minha terra natal.
No final de 2016, fui convidado para assumir a Secretaria de Educação de Alagoinha no ano seguinte. Me senti honrado por poder contribuir em alguma coisa por lá. Foi um tempo de policiamento que lembrava os anos da infância e adolescência. Apesar de todos saberem que sou gay, me convidaram para a pasta. Uma vez, fui chamado para "esclarecer" por que eu havia compartilhado no Facebook uma reportagem sobre crianças trans. Veio o medo do armário novamente. Naquele instante, acho que foi em maio, eu já sabia que não ia ficar muito tempo ali, mas ainda durei até o fim de dezembro.
Mas o tempo tem sua maneira de nos surpreender. Hoje, quando volto a Alagoinha de vez em quando, porque toda minha família mora lá, vejo jovens LGBTQIA+ vivendo suas vidas com uma leveza que me emociona. Eles dançam nas festas, ocupam praças e andam de mãos dadas sem medo.
No Dia da Visibilidade Trans deste ano, a prefeitura publicou um vídeo com Maya — uma cena inimaginável testemunhar naquele lugar há alguns anos. Fiquei emocionado. Ela conta sua história de vida. Hoje trabalha no sistema de saúde municipal com pessoas que têm doenças crônicas. Conheço-a desde que era uma criança. Fomos, inclusive, por um tempo da mesma igreja evangélica (mais uma coisa em comum). Nos reaproximamos depois que comecei a namorar um amigo seu.
Alagoinha mudou. O mundo está mudando. Hoje existe uma aceitação maior da diversidade por parte das pessoas. Não obstante os políticos e governos de extrema-direita, como foi o de Bolsonaro no Brasil e como está sendo o de Trump nos Estados Unidos, fazerem de tudo para negar nossa existência, existe resistência e uma boa parte da sociedade nos apoia.
O livro de Édouard Louis acionou em mim vários gatilhos, e chorei em algumas páginas — coisas que a terapia vai, certamente, ajudar a lidar melhor. Terminar janeiro de 2025 com o vídeo de Maya publicado no perfil oficial da prefeitura de Alagoinha aumentou a centelha da esperança e da luta para os próximos tempos.
*Joel Martins Cavalcante é professor de História da rede estadual de ensino da Paraíba e militante dos Direitos Humanos e do Movimento Brasil Popular.
**A opinião contida neste texto não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba.
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Edição: Heloisa de Sousa