Quem consegue desenvolver uma redação com segurança?
Por Jusciney Carvalho Santana*
A expectativa pela divulgação pública do tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ano após ano, é sempre muito aguardada por parte dos professores, estudantes e suas famílias, para quem pesquisa e estuda políticas curriculares e avaliativas. Causa muito alvoroço também entre militantes dos movimentos sociais, Brasil afora.
O Enem costuma surpreender ao trazer propostas dissertativas complexas, envolvendo temas de relevância social. Nas aulas de redação, em escolas públicas e privadas, nos cursinhos preparatórios e, principalmente, nos simulados, os estudantes são convidados a identificar os temas mais recorrentes e isso ajuda, sem dúvida alguma, nessa “preparação” para que façam uma produção textual objetiva, com início, meio e fim, com argumentos pertinentes.
Para a reflexão aqui pretendida, sobre o tema a redação do Enem 2024, penso que poderíamos analisar a partir das redações definidas dos últimos três anos, desde 2022, após o fim decretado da pandemia, quando se evidenciou tanto a “normalidade” com o retorno de inscrições no Exame quanto na retomada efetiva do ensino presencial.
Em absoluto, seria sensato refletir sobre o tema da redação, assim como os resultados nos anos anteriores (2020 e 2021). As desigualdades abissais, aprofundadas com o ensino remoto, por si só, são suficientes para concluirmos como seria incorreto nos debruçarmos sobre a realização do Enem durante a pandemia, que a meu ver, deveria ter sido suspenso, mas por não ter sido, colaborou para destacar quem de fato poderia participar do Enem, isto é, somente uma parcela pequena de estudantes com boas condições de vida e de estudo.
De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), esse foi o registro de inscritos, nos últimos três anos:
• Edição de 2024: 5.055.699.
• Edição de 2023: 3.934.242.
• Edição de 2022: 3.474.105.
Abaixo, o panorama de inscritos em 2024, por estado brasileiro:
Para além do número de inscrições, que revela um crescimento expressivo em 2024, precisamos qualificar esses dados, por região, por estado, por tipo de escola, privada ou pública, se é federalizada ou não, e o perfil discente, em cada uma delas.
A partir desse mapeamento, seria possível então analisarmos o desempenho estudantil, uma vez que estudantes com desvantagens sociais e educacionais são prejudicados, não somente pelos conhecimentos pedagógicos e culturais (não) construídos ao longo da escolaridade. É necessário pensar sobre o nível de cobrança por bons resultados, estresse e ansiedade, até quando se deslocam para o local de aplicação. Faz toda diferença pensar, por exemplo, que um candidato com suporte financeiro e rede de apoio na família, garante de antemão a tranquilidade que precisa dispor, para enfrentar a maratona de horas e avaliações específicas no Enem.
É fundamental ainda pensarmos sobre a qualidade da educação acessada
É fundamental ainda pensarmos sobre a qualidade da educação acessada, incluindo o nível de aprofundamento com as questões de formação geral, mais especificamente, sobre as formuladas para a redação.
No ano 2022, por exemplo, foram duas: Desafios para a Valorização de Comunidades e Povos Tradicionais no Brasil (aplicação regular) e Medidas para o Enfrentamento da Recorrência da Insegurança Alimentar no Brasil (reaplicação). Em 2023, o tema foi Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado Realizado pela Mulher no Brasil. Para este ano o foco foi refletir sobre os Desafios para a Valorização da Herança Africana no Brasil.
Por esses temas sociais, torna possível corroborar na ideia de que a equipe no Inep, responsável pela proposição das redações no Enem, vem buscando oportunizar um processo que consiga avaliar o nível de criticidade discente.
Não se pode avaliar o que não foi ensinado
Temos, assim, alguns desafios postos em diferentes níveis, para a gestão da educação e para gestão escolar: não se pode avaliar o que não foi ensinado, portanto, antes de propor, é oportuno verificar se o conjunto de escolas de fato inclui tais temáticas no currículo escolar e no projeto político pedagógico (SANTANA, 2023).
Mais que isso, é importante mapear a materialização dessas inclusões curriculares tendo em vista que há controvérsias entre essas demandas de conhecimentos que se esperam de um concluinte que vai fazer a prova do Enem e o que de fato as escolas materializam.
E de que escola estamos falando? Quem consegue desenvolver uma redação com segurança? Quais são os níveis de competência alcançados para ler e produzir textos? Como são os debates e sistematizações que evidenciam que os estudantes compreendem e podem escrever com propriedade sobre diversidade, gênero, meio ambiente, insegurança alimentar, tecnologias, direitos humanos, antirracismo?
Enquanto profissionais da educação, não creio ser possível colaborarmos com ironias e replicação de memes que geram polarizações, que definitivamente não resolvem o problema do preconceito de cor e muito menos as manifestações de racismo nas redes sociais.
Comemorar a escolha política do tema das redações de fato é muito importante, mas é preciso uma autocrítica do próprio Ministério da Educação e do Conselho Nacional de Educação, já que a Base Nacional Comum Curricular aprovada, infelizmente é omissa nessas questões.
Comemorar, então, a insegurança dos estudantes ou a incapacidade do Estado brasileiro no investimento sério no debate racial tanto na escola quanto na universidade? (SANTANA, 2017,2023).
Com tema da redação do Enem 2024, estamos diante de muitos impasses. Como exigir a efetivação de tais inserções curriculares sobre história e cultura africana, afrobrasileira e indígena, sem garantir formação continuada para docentes e gestores escolares?
Para além das questões legais envolvidas, nos perguntemos: estamos comprometidos com a emancipação humana, com a formação de sujeitos para transformação social? Essas perguntas me parecem centrais, em mais um Novembro Negro, neste país que avançou com a aprovação de políticas públicas afirmativas para acesso aos cursos de graduação e pós-graduação, vagas em concursos públicos e estatuto da igualdade racial. Um país onde também temos (felizmente) a ampliação do acervo de pesquisas e aumento do número de grupos de pesquisas e de pesquisadores negros e indígenas.
Mas a despeito dessas importantes conquistas temos que reconhecer as inúmeras evidências do racismo institucionalizado na educação e nossas responsabilidades para agir pela eliminação.
Sobre futuras intervenções nas escolas há uma promessa de monitoramento das ações, por parte do governo federal, que recentemente instituiu a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola - PNEERQ, iniciado em 2024, após 21 anos após a aprovação da Lei n° 10.639/2003.
Penso não ser possível comemorar o tema da redação do Enem, se as respostas dos nossos estudantes nos apontam para amplas disparidades sobre condições sociais e educacionais
É um alento pensar o daqui para frente, caso esse monitoramento seja efetivado, para além das suas intenções. No entanto, penso não ser possível comemorar o tema da redação do Enem, se as respostas dos nossos estudantes nos apontam para amplas disparidades sobre condições sociais e educacionais, sobre quem tem reflexões substanciadas sobre os temas avaliados. Torna-se imperioso pensar sobre equidade e igualdade de oportunidades, que dizem respeito ao nosso fazer educativo e nosso viver em sociedade.
Para saber mais
BRASIL, Portaria MEC n° 470, de 14/05/2024. Institui a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola - PNEERQ.
SANTANA, J. C. A educação antirracista como princípio norteador do projeto político pedagógico. In: Ana Cristina Silva Daxenberger; Sergio Roberto Silveira. (Org.). Etnicidade e direitos humanos: diferentes leituras. 1ed.João Pessoa: UFPB, 2023, v. 1, p. 71-97. Disponível em: https://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/1098.
SANTANA, Jusciney C. Tem preto de jaleco branco? Os primeiros 10 anos de políticas afirmativas no curso de Medicina da UFAL (2005-2015), Maceió: Edufal/ Imprensa Graciliano Ramos, 2017. 218 p.
*Jusciney Carvalho Santana é pedagoga. Possui doutorado em Educação. Pós-doutorado em Estudos Étnicos, é professora do Centro de Educação da UFAL, docente externa no POSAFRO/UFBA e pesquisadora sobre gestão e políticas educacionais (GAE/CNPq). Autora do livro Tem preto de Jaleco Branco: os primeiros 10 anos de políticas afirmativas na Faculdade de Medicina da UFAL. Colaboradora no projeto de extensão “Identidade afro-brasileira e enfrentamento ao racismo: construindo novas relações sociais”, vinculado à PRAC/UFPB, sob a coordenação da Profa. Ana Cristina Silva Daxenberger e do Prof. Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho. YouTube: https://www.youtube.com/c/JuscineyCarvalho. E-mail: [email protected]
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba.
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Edição: Carolina Ferreira