Nossa legislação precisa ser revisada para melhor atender às emergências climáticas
Por Renato Régis Pinheiro Medeiros de Araújo* e Matheus Batista Simões**
O ano de 2023 foi declarado o mais quente da história. Esse fato expõe uma realidade desafiadora: os efeitos das mudanças climáticas estão cada vez mais evidentes, impactando o cotidiano das pessoas em todo o planeta e reforçando os reflexos do atual modelo de planejamento urbano e regional. No Brasil, acompanhamos as repercussões das tragédias provocadas por chuvas intensas em São Paulo e a seca severa que atingiu os principais rios do Amazonas, afetando mais de meio milhão de pessoas, de acordo com a Defesa Civil. Em 2024, observamos atentamente a escalada dos desastres causados pela chuva no Rio Grande do Sul.
: Com as fortes chuvas, João Pessoa registra diversos pontos de alagamentos :
No âmbito das metas estabelecidas pelo Brasil durante o Acordo de Paris em 2015 – que tem como objetivo limitar o aumento da temperatura global a até 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais –, o desmatamento e as queimadas ainda persistem como os principais desafios para a redução das emissões de gases do efeito estufa. Embora a Amazônia atraia maior atenção pública, política e midiática, em virtude de sua importância para o ciclo hidrológico da América do Sul, é crucial não desconsiderar a contínua degradação das florestas e a expansão da desertificação nos outros biomas brasileiros, especialmente a Caatinga.
A região semiárida brasileira, que abrange considerável parte do Nordeste brasileiro, sempre enfrentou períodos de estiagem e altas temperaturas, tornando-se uma das áreas mais vulneráveis à mudança climática global, conforme destacado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Apesar da resiliência da sua vegetação e da população, que recorre à sua ancestralidade para extrair do solo o sustento por meio de técnicas adaptadas, um estudo recente apontou o agravamento das condições climáticas locais.
O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) identificaram o surgimento da primeira região árida no Brasil. Localizada entre a Bahia e Pernambuco, abrangendo 5,7 mil quilômetros quadrados, essa área enfrenta baixos índices de precipitação e calor extremo, além da degradação acelerada do solo, expondo-a a condições climáticas desérticas. Esta descoberta tem alertado a comunidade científica, devido aos impactos na agricultura local e no acesso à água.
O IPCC apresenta que até 2100, a temperatura dessa região pode aumentar, em média, 10°C em relação aos níveis atuais. Assim, não somente a economia será afetada, mas também a própria saúde da população, devido ao estresse térmico, por exemplo, que tem causado mortes em outras partes do mundo.
Esse alerta científico destaca os desafios que o Nordeste enfrentará ao longo da década, como a intensificação do êxodo rural e o aumento da vulnerabilidade da população mais pobre. Tudo isso ocorrerá sem um planejamento focado na adaptação climática das cidades, a menos que essas discussões sejam incorporadas pela sociedade civil e cada vez mais pautadas por movimentos sociais, universidades e pelo governo.
É certo que grandes centros urbanos demandam de maior complexidade no planejamento e na gestão. Contudo, o que dizer dos inúmeros pequenos municípios distribuídos em regiões sujeitas à desertificação, por exemplo? Como as atividades que movem a economia da região serão impactadas? Muitos não possuem nenhum instrumento oficial de planejamento devido a aspectos de nossa legislação urbanística e enfrentam baixa capacidade institucional, relacionada, principalmente, às limitações orçamentárias e à falta de corpo técnico qualificado.
Somente na Paraíba, cerca de 85% das cidades possuem menos de 20 mil habitantes, ou seja, não são legalmente obrigadas a ter Plano Diretor, responsável por orientar a política urbana.
Assim, devemos entender a mudança climática como um fenômeno duplamente complexo, tanto pela sua imprevisibilidade quanto pelas repercussões em cadeia que pode provocar. A problemática dessa questão é ainda mais profunda quando se pensa sobre planejamento e gestão urbana nas cidades pequenas. Somente na Paraíba, cerca de 85% das cidades possuem menos de 20 mil habitantes, ou seja, não são legalmente obrigadas a ter Plano Diretor, responsável por orientar a política urbana.
O Plano Diretor, previsto pelo Estatuto das Cidades, traz normas quanto ao uso e ocupação do solo, bem como diretrizes e instrumentos que visem a construção de uma cidade socialmente justa e sustentável. Contudo, recentes balanços, como observado pelos pesquisadores Orlando Santos Júnior e Daniel Montandon, do Observatório das Metrópoles, apontaram como nas últimas décadas alguns instrumentos previstos nesses planos apresentam fragilidades em diferentes áreas, com instrumentos ainda sem efetiva aplicação e que apenas consideram problemas “genéricos” presentes em todas as cidades, não contemplando necessidades específicas do território.
Diante deste cenário, é evidente que a nossa legislação precisa ser revisada para melhor atender às emergências climáticas, não apenas incentivando a implementação de instrumentos de política urbana, mas também definindo medidas que responsabilizem o poder público por possíveis omissões. É certo que há uma necessidade real de políticas de mitigação e adaptação climática, em que a mitigação opera em um campo mais amplo e a adaptação envolve a implementação de políticas no campo local.
Muito do que atualmente já tem se desenvolvido em termos de legislação voltada às mudanças climáticas se restringe aos grandes centros urbanos, sendo fundamentais a adoção de estratégias para interiorização desse conhecimento. Isso pode se dar por diversas vias, a exemplo: investimento em pesquisas científicas voltadas para o semiárido e áreas sob risco de desertificação; criação de fundos para o financiamento de planos e projetos urbanos que pretendam mitigar os impactos das mudanças climáticas; propor uma agenda de governança intermunicipal para debater o tema e trazê-lo ao linguajar da população, que por vezes ainda não sabem como individualmente podem contribuir no manejo sustentável dos recursos naturais locais.
É necessário desvincular-se de decisões ineficientes, de baixo impacto real e muitas vezes caras diante da realidade dos orçamentos municipais
As mudanças climáticas impõem desafios para as cidades nordestinas, exigindo maior articulação entre diferentes esferas governamentais e um planejamento urbano voltado à correção de vícios. É necessário desvincular-se de decisões ineficientes, de baixo impacto real e muitas vezes caras diante da realidade dos orçamentos municipais. Após 23 anos do Estatuto das Cidades, devemos refletir sobre a eficiência do que foi produzido e avançar para definições mais promissoras.
Com a aprovação da Lei 14.904, de 2024, que estabelece diretrizes para os Planos de Adaptação Climática, temos novamente uma janela de oportunidade para orientar o desenvolvimento de nossas cidades dentro de uma perspectiva sustentável. No entanto, assim como os planos diretores, essa agenda pode ser facilmente capturada por grupos que atuam para beneficiar uma pequena parcela da população.
Assim, não é apenas imprescindível discutir sobre isso, é preciso repensar como melhorar a capacidade institucional dessas cidades para que semeiem essas discussões e coloquem as mudanças climáticas não somente como uma preocupação futura, mas também como uma emergência a ser debatida no presente. Investir na governança se faz necessária para antecipar determinados impactos e conduzir um processo de adaptação que deve repercutir por décadas. Se essas discussões não prosperarem em um espaço democrático, com participação popular e busca por objetivos comuns, enfrentaremos problemas cada vez mais complexos que não só comprometem, mas minam a perspectiva de futuro de milhões de brasileiros.
Referências
Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN). Estudo do CEMADEN e do INPE identifica pela primeira vez a ocorrência de uma região árida no país. Brasília, 14 de novembro de 2023.
INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC). Climate Change 2022 – impacts, adaptation and vulnerability: Working Group II contribution to the sixth assessment report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2022.
PIRES, Lilian R. G. B. Região metropolitana: governança como instrumento de gestão compartilhada. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
*Renato Régis Pinheiro Medeiros de Araújo é arquiteto e urbanista, mestre em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador do Observatório das Metrópoles/Núcleo Paraíba.
**Matheus Batista Simões é arquiteto e urbanista, mestre e aluno de doutorado em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE e pesquisador do Observatório das Metrópoles/Núcleo Paraíba.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira