A sua pior forma assemelha-se à acumulação primitiva do capital, agora disfarçado de “agenda verde"
Por: Fernando Joaquim Ferreira Maia; Marina Gomes Barbosa; Luiz Felipe Gonçalves Ferreira*
O debate sobre a premente necessidade internacional de desenvolver uma matriz energética limpa, renovável e mais eficiente ganhou atenção especial nas últimas décadas. No Brasil, especialmente na região Nordeste, a implantação de parques eólicos avança para alcançar o protagonismo no tema, ocupando a 6ª posição no ranking do Global Wind Energy Council (2021) . Além disto, segundo a EPE (2024), no Brasil, a matriz eólica e a solar respondem, respectivamente, quanto à capacidade real instalada, por 6,4% e 8,4%.
As empresas de geração eólica estão se apropriando das terras dos camponeses, mediante contratos de arrendamento, para, a partir da transformação do potencial de vento energia elétrica, obterem enormes lucros e sem oferecerem justa contraprestação aos pequenos proprietários rurais. Não é surpreendente que aproximadamente 25% dos 600 parques eólicos brasileiros tenham encontrado pelo menos alguma resistência das comunidades (Hochstetler apud Brannstrom & Seghezzo, 2022, p. 26) .
Os problemas dos parques eólicos descritos aqui estão fartamente ventilados nos meios de comunicação e constituem uma catástrofe para os camponeses brasileiros! Na sua pior forma, assemelha-se aos relatos da acumulação primitiva do capital, agora disfarçado de “agenda verde”
Mas como é possível que as empresas de energia arrendem terras em larga escala, de forma tão rápida dos camponeses, e extraiam vantagens desiguais? O desequilíbrio de forças entre as partes que celebram o contrato, como mencionado por Traldi (2021, p. 17) , torna possível a assimetria observada entre as empresas arrendatárias e proprietários locais, ressaltada pela cessão dos direitos de exploração da terra a prazos longos para a construção de torres eólicas.
Dentre outros fatores que elevam ainda mais a disparidade entre as partes, a cláusula de sigilo que envolve os contratos de arrendamento de terras na dinâmica da produção de energia eólica é parte fundamental para que a apropriação da terra possa ocorrer com pouca ou nenhuma objeção dos camponeses, o que reduz consideravelmente os riscos da atividade econômica, na mesma proporção em que se aumenta a exploração da terra e seu potencial eólico.
A cláusula de confidencialidade impede ou, pelo menos, mitiga muito o papel das associações campesinas locais, como na tentativa de compreender as propostas das empresas e ajudar a comunidade a avaliar as vantagens e as desvantagens atuais e futuras, o que acaba aprofundando as disparidades socioeconômicas entre as partes envolvidas.
Assim, somente uma das partes, a empresa arrendatária, dita as cláusulas do contrato e as impõe à parte vulnerável. A empresa se coloca, aparentemente em pé de igualdade, mas, na prática, está em uma posição privilegiada e desproporcional diante do agricultor, omite a informação completa de modo a impossibilitar o questionamento correto do conteúdo dos contratos.
Não é absurdo definir a estratégia de confidencialidade como uma forma de ocultar a patente abusividade de tais contratos, uma vez que o direito à informação e a autonomia da vontade dos arrendadores são repetidamente violados.
Nesse contexto, é possível observar uma “agenda verde”, com o objetivo de servir a um propósito ambiental, vinda de grandes empreendimentos de energia renovável, mas que esconde a intensificação da apropriação de terras e de recursos naturais e servem especialmente a interesses econômicos internacionais.
As empresas arrendatárias mantêm sua posição dominante sobre o arrendador camponês, enquanto fortalece seus privilégios pela eliminação ou considerável redução do nível de risco de sua atividade econômica utilizando disposições contratuais leoninas em prejuízo dos arrendadores locais. Como resultado, há um aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas entre os empreendimentos de energia eólica e os agricultores (Ribeiro et al., 2018, p. 48) .
Nesta dinâmica, o arrendador camponês não encontra solução: ele não pode rescindir o contrato, se desejar, pois não pode suportar o fardo milionário do distrato unilateral; não pode nem mesmo revisar o contrato, uma vez que está submetido à cláusula de confidencialidade e, como se isso não fosse suficiente, qualquer busca por assistência jurídica torna-se extremamente cara e provavelmente inefetiva.
Os problemas dos parques eólicos descritos aqui estão fartamente ventilados nos meios de comunicação e constituem uma catástrofe para os camponeses brasileiros! Na sua pior forma, assemelha-se aos relatos da acumulação primitiva do capital, agora disfarçado de “agenda verde”, amplificado pelo impacto das revoluções tecnológicas nas forças produtivas do capitalismo e atingindo não só a terra, mas uma gama de direitos do campesinato. É o que Mariana Traldi (2021) chama de acumulação por despossessão.
Não obstante, o debate das energias renováveis ainda é escasso na questão urbana, embora diretamente ligado a ela. As cidades são as destinatárias de recursos extraídos da agropecuária e do extrativismo, e é a produção agrária que alimenta o capital necessário aos investimentos nas metrópoles.
Mas a energia produzida por torres eólicas e painéis solares no campo convive com a contradição de se gerar eletricidade às indústrias, aos serviços e às residências localizadas nas metrópoles brasileiras e, ao mesmo tempo, não se conseguir enfrentar adequadamente a falta de saneamento, o desemprego, a carestia, a precariedade das moradias, as falências de empresas, a falta de perspectiva profissional, o endividamento e a contenção do consumo das famílias, fenômenos comuns nas metrópoles.
Esta situação mostra a necessidade de se conjugar a luta contra a exploração do campesinato brasileiro por grandes empreendimentos eólicos com a luta pela reforma urbana. Uma das formas seria fomentar cooperativas solares em áreas vulneráveis da cidade, como as favelas, objetivando minorar o acirramento das contradições sociais, ambientais e econômicas na metrópole, como aumento da renda, controle de enchentes, eficiência energética, qualidade do consumo da energia e diminuição da carestia.
Resta questionarmos: onde podemos buscar referências para refletir e melhorar o nosso processo de desenvolvimento energético? Diante deste panorama, é interessante estabelecer paralelos da nossa experiência com a política de energias renováveis da China. A comparação é relevante, pois tanto o Brasil quanto a China possuem considerável potencial energético renovável, representando 27% de toda a potência global, além de possuírem desafios semelhantes para ampliar o desenvolvimento energético .
Entretanto, a China difere-se pelo cenário exponencial de crescimento econômico, o que ocasiona uma demanda energética elevada e consequente aumento na emissão de carbono. Neste sentido, a Lei de Energia Renovável da China, promulgada em 2005 e reformada em 2009, estabeleceu o marco jurídico para descarbonização da matriz energética chinesa com o objetivo de assegurar alternativas mais limpas e alinhadas com a necessidade de autossuficiência energética nacional.
Apesar de aberto à participação da iniciativa privada, considerável parte do mercado de energia chinês é planejado pelo Estado, desde a regulação até a participação efetiva no mercado. Nesse sentido, a centralização estatal do processo de transição energética chinesa gera reflexões pertinentes sobre o tema no contexto brasileiro, especialmente acerca da exploração de terras nas cidades. A maior delas trata da atuação do Estado através de políticas regulatórias e fiscalizatórias de mercado que inibam o arrendamento predatório de terras em comunidades socioeconomicamente vulneráveis e imponham contrapartidas justas das empresas de energia aos arrendadores .
Um exemplo parte do próprio Governo brasileiro.
Recentemente, o Governo Federal instituiu, dentro da política pública habitacional “Minha Casa, Minha Vida”, o Programa Energia Limpa (Decreto nº 12.084/24) , com o objetivo de garantir economia de energia às famílias beneficiárias e eficiência energética às políticas habitacionais do governo. O governo vai abrir linhas de financiamento para a aquisição de equipamentos de conversão de fonte renovável solar e eólica em energia elétrica. Só para a solar serão R$ 3 bilhões para 500 mil unidades residenciais do MCMV .
O que podemos afirmar é a questão da energia eólica e solar não pode ser deixada apenas para o mercado e para os negócios entre as empresas de energia e os agricultores. Caso contrário, a despossessão de direitos e a exploração das terras do Nordeste do Brasil continuarão aprofundando as contradições sociais ao invés de reduzi-las. É fundamental que o Estado encare o assunto do ponto de vista da soberania energética e direcione as políticas públicas de energia para a proteção fundiária das comunidades urbanas e rurais.
É importante entender que a questão urbana é não só socioeconômica e política, mas um problema institucional. Neste sentido, as eleições municipais deste ano são uma excelente oportunidade para se eleger representantes comprometidos com a luta contra a desigualdade social, a fome, a moradia precária, a carestia, a miséria, os preconceitos e discriminações sociais, problemas cuja solução passa pela correta gestão da terra, da água e da energia pelos municípios. Afinal, os municípios são responsáveis pela regulação do que é realizado em seus territórios e os impactos negativos dos empreendimentos precisam ser considerados em uma agenda municipal que seja desvinculada do ultraliberalismo, característica da última gestão no país, e que rompa com a financeirização e a falsa ideia de que a estabilidade do país se limita apenas ao controle da moeda.
REFERÊNCIAS
Brannstrom, C., Seghezzo, L., & Gorayeb, A. (2022). Descarbonização na América do Sul. Disponível em: http://www.ppggeografia.ufc.br/images/documentos/Livro---DESCARBONIZAO-NA-AMRICA-DO-SUL_compressed-1.pdf#page=330
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Ribeiro, C. S., Araújo, C. d. S., Oliveira, G. G. d., & Germani, G. I. (2020). Aspectos econômicos e jurídicos que cercam a relação de camponeses com empresas exploradoras de energia eólica no município de Brotas de Macaúbas – Bahia. Nexos Econômicos, 12(2), 31-55. Disponível em: https://doi.org/10.9771/rene.v12i2.33986. Acesso em: 03 jul. 2024
Traldi, M. (2021). Accumulation by dispossession and green grabbing: wind farms, lease agreements, land appropriation in the Brazilian semiarid. Ambiente & Sociedade, 24. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-4422asoc20200052r2vu2021l4td. Acesso em: 03 jul. 2024.
*Fernando Joaquim Ferreira Maia é Professor Associado do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba-PPGCJ/UFPB. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro do grupo de pesquisa Dom Quixote; - Marina Gomes Barbosa é Graduada em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Ex-bolsista de iniciação científica do curso de Direito da UFPB no grupo de pesquisa Dom Quixote; - Luiz Felipe Gonçalves Ferreira é Graduando do 9° semestre em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da UFPB, pesquisa Direitos Humanos e conflitos territoriais, urbanos e rurais, atuando em projetos de extensão que apoiam comunidades vulneráveis. Ex-bolsista de iniciação científica do curso de Direito da UFPB no grupo de pesquisa Dom Quixote.
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