Paraíba

Coluna

As mulheres e o clima de guerra civil nas comunidades dominadas pelo tráfico de drogas em João Pessoa: a urgência por uma agenda feminista

Mulheres reivindicam o enfrentamento a todas as formas de opressão e violência. - Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.
As mulheres moradoras das favelas sofrem e sentem o peso de uma teia social complexa

Por Mirelli Gomes* e Marcele Trigueiro**

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as taxas de crimes letais na Paraíba vêm sendo fortemente influenciadas pelo crescimento das facções criminosas de tráfico de drogas e têm como principais vítimas jovens, pretos e pardos, localizados nas áreas mais pobres das cidades. Os moradores de comunidades e favelas, com escassos serviços urbanos e ausência de meios de proteção, são aqueles que correm mais riscos, estão mais expostos à morte violenta e, principalmente, são aqueles que sentem mais intensamente a violência como principal problema de vida cotidiana.

 As desvantagens de classe e raça combinam-se e sobrepõem-se às desigualdades de gênero

Para as mulheres moradoras de favelas dominadas pelo tráfico de drogas, as desvantagens de classe e raça combinam-se e sobrepõem-se às desigualdades de gênero, e as diversas experiências de violência reforçam um clima de medo intrusivo e ameaçador, que determinam a experiência e a forma segundo a qual elas se apropriam da cidade. Moldados diante desta pressão, os movimentos dessas mulheres restringem-se e seus comportamentos reprimem-se, cerceando, portanto, seu acesso aos bens comuns e sua capacidade de exercer uma cidadania plenamente ativa. As mulheres moradoras das favelas sofrem e sentem o peso de uma teia social complexa, na qual atuam diferentes grupos.

Domínio, liberdade e risco: a teia de agentes envolvidos

A relação entre favelados e Estado foi quase sempre conflituosa, tendo em vista os estereótipos criados para caracterizar e respaldar toda e qualquer ação contra a população que ocupa esses espaços. Os pobres, de maneira geral, muitas vezes são vistos e temidos como inerentemente perigosos, uma vez que não só as elites, mas também o Estado, tendem a relacioná-los diretamente com a violência, sobretudo enquanto “agentes”, em uma associação fortemente carregada de estigma. Para os sociólogos Kees Koonings e Dirk Kruijt, pobreza e violência são frequentemente atribuídas a bairros periféricos emblemáticos, rotulados como áreas “proibidas” e seus moradores, por sua vez, estigmatizados como "indesejáveis”.

Nessas situações, o controle exercido pelo Estado é essencialmente expresso pela marca da violência com que são tratados os grupos menos favorecidos; o Estado tende a mobilizar estratégias e tratar o conflito muito mais como uma questão policial, e menos como uma questão social, no qual a repressão é sua arma de negociação com as minorias sociais. A criminalização representa nesse esquema o modo utilizado pelo Poder Judiciário para lidar com as classes e grupos sociais, historicamente construídos como “perigosos” e “com tendências ao crime”.

Para as mulheres, em particular, o cenário de tensão é ampliado pela questão do gênero, uma vez que resulta de uma teia de agentes masculinos aptos a manejar – em diferentes níveis de domínio, liberdade e risco – os territórios em que o tráfico está presente: assim, os traficantes atuam como uma figura masculina de opressão, exercendo seu poder como “donos” do território ou “gestores” da favela. Nesses casos, percebe-se que o controle por parte desse grupo, em relação a determinadas áreas do bairro, interfere fortemente nas atividades e nas ações cotidianas de trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres moradoras, notadamente quando elas evitam transitar em certas partes desses territórios ou mesmo da cidade, deixam de sair em horas específicas do dia ou ainda passam a adotar táticas de segurança, por se sentirem ameaçadas e em constante perigo no espaço público.

Apesar dessa insegurança, a dinâmica entre traficantes e moradoras é considerada complexa e variável. Segundo relatos de moradoras, há laços de convivência e de aproximação estabelecidos, os quais, em circunstâncias de estigma, medo e dependência, estimulam sentimentos de pertencimento e de identidade, em relação à condição social e territorial. Essas relações fortalecem um senso comunitário e, até mesmo, certa coesão social. As mulheres moradoras de setores dominados por facções criminosas, não raro, relatam ser respeitadas pelos traficantes e sentir-se protegidas de situações danosas, muitas vezes por conhecerem esses homens desde sua infância. Os traficantes também são descritos por algumas dessas mulheres como parte da “rede de apoio” e de solidariedade, sendo referências a quem elas podem recorrer para socorrê-las em situações de dificuldade. 

Entretanto, redes que se sustentam nesse tipo de relação não impedem que os traficantes atuem para fazer sua própria justiça, podendo haver momentos em que as ações são violentas e arbitrárias, atingindo, direta ou indiretamente, moradoras que não têm envolvimento com atividades criminosas. Muitas mulheres enfrentam crises de ansiedade, ataques de pânico e episódios de insônia, em decorrência do contexto de violência no qual estão inseridas e da convivência com os conflitos entre os grupos criminosos. Para as mulheres, trata-se de eventos recorrentes e, sobretudo, inesperados e imprevisíveis. Desse modo, entrelaçam-se, de um lado, a ideia de convivência e, de outro, a do medo.

Mulheres e espaços públicos: restrições à urbanidade num contexto de guerra civil

Elas expressam seu medo encurtando caminhadas, por exemplo, ou evitando programas ou atividades noturnas; muitas delas renunciam por completo à possibilidade de sair de casa à noite e estimam que o medo, assim como as restrições ligadas ao gênero estão na origem desse padrão.

As mulheres que enfrentam em seu dia a dia esse contexto de violência estabelecem com a cidade maneiras limitadas de apropriação socioespacial, notadamente, por meio da imobilidade forçada no espaço público. De fato, elas expressam seu medo encurtando caminhadas, por exemplo, ou evitando programas ou atividades noturnas; muitas delas renunciam por completo à possibilidade de sair de casa à noite e estimam que o medo, assim como as restrições ligadas ao gênero estão na origem desse padrão. O turno da noite é ainda entendido como uma barreira social invisível, sendo o momento de maior atuação dos traficantes e de facções de drogas. Nas circunstâncias da cidade violenta, a noite é um espaço-tempo não adequado às mulheres.

As situações de violência e as restrições na convivencialidade urbana, vividas pelos moradores em geral e pelas mulheres em particular não estariam exclusivamente vinculadas aos episódios criminais, ligados aos confrontos entre facções. Segundo o autor Louis-Philippe Carrier, há igualmente um “clima propício ao crime”, que se conforma em múltiplas circunstâncias da vida cotidiana nas favelas, descrita como sendo uma atmosfera de violência multidimensional: às vezes física, de fato, mas frequentemente simbólica, carregada de ações e reações de ódio de cidadão contra cidadão, as quais oportunizam, a qualquer momento, a ocorrência de delitos mais ou menos graves e apresentam pontos compatíveis com um “estado de guerra civil”.

O clima de guerra civil instalado nessas comunidades tende a reforçar o medo do crime e a tornar-se um problema social maior que o próprio delito, quando modifica a organicidade da vida na favela, já excessivamente prejudicada pela insuficiência ou mesmo pela ausência dos serviços públicos urbanos básicos. A vida cotidiana é tensa e o conjunto de moradores vê-se, permanentemente, exposto a possíveis tiroteios ou balas perdidas pelos conflitos entre traficantes, gerando, assim, impactos nocivos significativos de ordem física e psicológica. Nessas condições, o medo deixa de ser um fenômeno episódico e extraordinário, e passa a ser um elemento cotidiano da comunidade, alastrando profunda insegurança na medida em que os indivíduos se sentem desprovidos dos meios para controlar aspectos essenciais de sua sobrevivência.

Cidade feminista: por uma agenda de transformações urbanas voltadas às mulheres

Para o público urbano feminino morador de comunidades dominadas pelas facções criminosas, a violência aparece como fonte de medo cotidiano e a relação de dependência aos traficantes, como um paliativo possível, mas efêmero, precário e, sobretudo, opressor e perigoso, que as adoece e tolhe suas possibilidades de práticas sociais, de plena emancipação individual e usufruto das urbanidades.

A ausência do Estado em diversas esferas da necessidade feminina é inaceitável e a crítica ao status quo deve colocar o agente público diante de sua reponsabilidade: de fato, infraestrutura urbana e segurança pública; equipamentos de educação de tempo integral para crianças e adolescentes; postos de saúde de proximidade, dentro dos bairros, com devida assistência social; transporte público e oportunidades de mobilidade ativa; dispositivos de acessibilidade em diferentes setores da cidade etc. são cronicamente escassos, em grande parcela do solo urbano brasileiro.

Propostas voltadas aos públicos urbanos femininos, em temporalidades emergenciais e de mais longo prazo, devem ser prioridade absoluta das próximas gestões e o horizonte vindouro das eleições municipais oferece, neste sentido, uma oportunidade de discussão e enfrentamento da conjuntura. O poder público precisa traçar diretrizes de transformação urbana, devidamente amparadas e associadas a um conjunto de políticas sociais, aptas a garantir às mulheres acesso irrestrito aos bens urbanos comuns.

A lógica da cidade feminista é aquela que clama por uma agenda de transformações urbanas pensadas para e pelas mulheres:

●    incremento de equipamentos urbanos com foco educacional, cultural e de capacitação socioprofissional; 
●    requalificações de setores ou de trechos essenciais à mobilidade ativa feminina na cidade, com estratégias de mitigação climática; 
●    readequações em usos de edifícios vacantes com potencial de habitabilidade urbana, com vistas à inserção de habitação de interesse social, em malhas urbanas consolidadas e próximas aos setores de maior empregabilidade; 
●    incremento de áreas de lazer na cidade ou ainda incremento da rede de iluminação pública constituem parte de uma trama de diretrizes de projeto urbano emergenciais, capazes de favorecer a autonomia urbana do público feminino, ampliando sua capacidade de participação à vida social e à economia da cidade.


A lógica de cidade feminista pressupõe ademais uma reparação histórica, diante de um planejamento urbano fundamentado em prerrogativas, necessidades, créditos e decisões hegemonicamente masculinas.

Por fim, a lógica de cidade feminista é, antes de tudo, a da cidade inclusiva: urge, no cenário das eleições municipais, maior participação ativa e representação femininas, a partir das quais as cidades poderão ser repensadas, projetadas e experimentadas não apenas pelas mulheres, mas por todas as pessoas, em todas as horas do dia e da noite, com total autonomia urbana e salvaguardadas a liberdade e segurança individuais.


*Mirelli Gomes é arquiteta e urbanista, mestre e doutoranda pelo PPGAU-UFPB, e pesquisadora colaboradora do LECCUR (UFPB), atuando nos temas de gênero, violência e espaços públicos.

**Marcele Trigueiro é arquiteta e urbanista, doutora PhD pelo INSA de Lyon (França), coordenadora do LECCUR (UFPB), professora associada do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU | UFPB) e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU | UFPB). É ainda pesquisadora visitante do Laboratório UMR 5600 (Lyon, França), atuando principalmente nos temas relacionados à teoria do projeto urbano, espaços públicos e políticas urbanas.

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira