Paraíba

CRIMINALIZAÇÃO

Entidades de referência no uso terapêutico da cannabis na PB comentam iniciativa do Senado de tornar crime o porte de qualquer quantidade de drogas

Caso aprovada no plenário e pela Câmara, lei penalizará usuários e deixará sem critérios para diferenciar traficantes

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Foto: Internet

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) do Senado aprovou o relatório favorável à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Drogas (45/2023), do senador Efraim Filho (União Brasil-PB), na última quarta-feira (13). A proposta foi aprovada por 24 votos contra três: Fabiano Contarato (PT-ES), Humberto Costa (PT-PE) e Marcelo Castro (MDB-PI).

Agora a PEC será enviada para o plenário Senado Federal, onde precisa ser aprovada em dois turnos por três quintos dos senadores . Posteriormente, será encaminhada para a análise da Câmara dos Deputados. 

A PEC tem como objetivo incluir ao artigo 5º da Constituição Federal um inciso que trate como crime a posse e o porte de drogas, independentemente da quantidade apreendida. De acordo com o relatório, "não há tráfico ilícito de entorpecentes sem usuários para adquiri-los, e, por esse motivo, deve-se combater, também, a conduta de quem possuir ou portar drogas, ainda que para consumo pessoal". 

Na prática, tanto usuário quanto traficante, de acordo com a emenda, devem ser tratados como criminosos

A Lei de Drogas (11.343/2006) estabelece os crimes relacionados ao porte e consumo de drogas. No entanto, a legislação não estabelece a quantidade norteadora para a definição de consumo ou tráfico de drogas. Em seu segundo inciso, a lei estabelece que "para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente". 

Nesse sentido, a PEC deixa explícito que "a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". 

Entidades se pronunciam

Sheila Geriz, co-fundadora da Liga Canábica, é paciente e mãe de paciente usuário da Terapêutica Canábica, e comenta que a discussão no Senado se dá de forma politicamente distorcida : “Ao nosso ver essa proposta de emenda trata a questão de forma extremamente superficial, e parece muito mais uma queda de braço do Senado com o Supremo. A aprovação na Comissão de Constituição e Justiça se deu pela maioria absoluta dos senadores, que também são ligados à oposição ao governo Lula, ligados ao ex-presidente Bolsonaro. Então é uma demonstração de que o Senado Federal levanta uma bandeira contra um processo que tramita no STF”.

Ela explica que o artigo está sendo discutido no STF que não se aplica pena de prisão aos usuários, mas mantém a criminalização, fazendo com que a pessoa precise frequentar cursos, ou pagar multas. “As penas não são privativas de liberdade, mas há outras penas aplicáveis”.
 
O debate também se dá em torno de que, em agosto de 2023, o ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, propôs que as pessoas flagradas com até 60g de maconha ou que tenham seis plantas fêmeas sejam presumidamente usuárias.

“Isso levantou o Senado Federal contra esse caminho que o Supremo está trilhando porque, dos 11 ministros, 05 são favoráveis ao estabelecimento do limite de 60g de maconha para que a pessoa seja enquadrada como usuário, e não sofra nenhuma reprimenda. O Senado não concorda com isso, e caminha na contramão da ciência, na contramão das legislações dos países desenvolvidos, colocando o Brasil, mais uma vez, no lugar do atraso”, complementa Sheila.
 
Para Suzy Araújo, presidenta da Sociedade Brasileira de Enfermagem Canábica, o Ministério da Saúde,através da Anvisa, tem feito reuniões técnicas, consultado especialistas, ouvido o movimento, com consulta pública, para saber a opinião das pessoas sobre a inclusão da planta na farmacopéia "tirando ela desse lugar de plantas criminalizada  e devolvendo-a para o lugar de plantas medicinal, que tem que ter um uso acompanhado por profissionais de saúde”.

Suzy também reforça o argumento de que a briga Entre o Senado e o STF é política.

“As pessoas que já usam e que encontram na cannabis um remédio que traz um alívio para síndromes raras, para transtornos, dores crônicas, e doenças que até então a medicina alopática ocidental não tinha conseguido trazer qualidade de vida e dignidade para as pessoas viverem, foi na cannabis que elas encontraram alívio. Então essas pessoas ficam prejudicadas porque se sentem inseguras e ansiosas, com medo de perderem o direito de dar continuidade aos seus tratamentos”, pontua.

Para ela, toda essa queda de braço gera déficit de informação: “Isso é muito grave, precisamos de informações com ética, seriedade, compromisso e com evidências científicas para a população. É lamentável que o Senado tenha tomado essa decisão de ir contra todo um movimento mundial, que vem mostrando que a cannabis é uma planta medicinal que tem efeitos terapêuticos muito potentes e que podem ser muito bem utilizada não só de forma medicinal e terapêutica mas pra movimentar a economia como a indústria do cânhamo, que já vem se estabelecendo no país”.

O número de pessoas que vem usando só aumenta: De acordo com o 2º Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, em 2023, 430 mil pacientes realizaram tratamentos com medicamentos à base de cannabis medicinal, um crescimento de 130% em relação a 2022. 

“Se a gente não regulamenta algo, a gente deixa também essas pessoas vulneráveis, principalmente essa população que tem um diagnóstico, e que já está usando o óleo da cannabis  de forma medicinal e terapêutica, e tá tendo resultados robustos o suficiente para fazer com que a gente não desista de usar”.

Para Arthur Angelo da Silva, advogado Cannábico e Presidente da Associação Jardim, o debate sobre o controle das substâncias no Brasil - e a questão da maconha (cannabis) - é antigo. 

"No início do século XX o Brasil seguiu a tendência internacional e passou a proscrever em lei o uso de substâncias, incluindo derivados da maconha ou a planta in natura. Como plano de fundo da proibição da maconha está a substituição do regime escravista pela privação de liberdade legal através do criminalização de práticas do povo preto e indígena como a utilização da desta como prática social, cultural e espiritual".

Ele destaca o aspecto racista da votação: "O passado e o presente se tocam quando se sabe que a incidência de encarceramento pela lei 11.343/06 (lei de drogas) é desigual quanto quesito cor de pele e classe social, assim atinge de forma brutal pessoas pretas e indígenas que se aglomeram em presídios pelo Brasil, muitas vezes pela uso da planta uma ou poucas vezes e em pequena quantidade".

Arthur argumenta que esta é uma guerra contra um povo pobre de pele preta e vermelha: "Mundialmente, é fato notório as potencialidades medicinais e terapêuticas da maconha. O Senado tem a obrigação e competência de zelar pela saúde da população brasileira, assim deveria regulamentar o uso da planta para fomentar a criação de empregos, impostos e principalmente expandir o seu uso como ferramenta de obtenção da saúde do povo. Na contramão da ciência, do mundo e da história, o Senado aprova na CCJ mais combustível para a suposta guerra às drogas, que na verdade é uma guerra contra um povo pobre que tem pele preta e vermelha".

Senadores progressistas

O relatório também foi criticado por senadores progressistas. Fabiano Contarato (PT-ES) destacou a discriminação como fator norteador na definição de usuário e traficante. "Nós temos fontes que um branco no Brasil para ser definido tem que ter 88% a mais de substância do que um negro. É o Estado criminalizando a pobreza, a cor da pele", disse durante a sessão.

"Eu queria que essa casa se debruçasse com serenidade, equilíbrio, altivez, debatendo efetivamente quem vai fazer uso próprio. Como experiência de delegado que fui, com um pobre preto num local de pobreza, vilipendiado em seus direitos elementares, flagrado com cigarro de maconha, as circunstâncias fáticas vão ser o local e a cor da pele. Agora nos bairros nobres, pelos rincões do Brasil, aquele mesmo jovem, com a mesma quantidade, pelas circunstâncias fáticas, vai ser tratado como usuário de substância entorpecente", afirmou Contarato.  

Emenda à PEC 

O relatório acolheu a uma emenda do senador Rogério Marinho (PL-RN), que coloca que deve ser "observada a distinção entre o traficante e o usuário pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência".

No documento, Marinho defendeu a emenda "para solidificar na Constituição Federal a diferenciação entre usuários e traficantes de drogas, traçando linhas claras e objetivas que diferenciam a criminalização da posse para uso daquela destinada ao tráfico".

Na prática, tanto usuário quanto traficante, de acordo com a emenda, devem ser tratados como criminosos. Mas se o indivíduo for considerado usurário, penas alternativas devem ser aplicadas. O senador, no entanto, não traça quais aspectos devem ser levados em consideração para se caracterizar um usuário. Durante a votação, disse: "Deixemos para quem faz a apreensão e o juiz a avaliação caso a caso". 

Julgamento sobre o tema no STF 

Ao longo da votação, senadores mais conservadores criticaram o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, no Supremo Tribunal Federal (STF), que trata da definição da quantidade de maconha para porte e consumo pessoal. O senador Eduardo Girão (Novo-CE) classificou o julgamento como "usurpação de competência" e "invasão da prerrogativa do legislativo'.

"Não vamos nos omitir. O STF não vai usurpar a competência desse Congresso Nacional. Querem legislar, candidatem-se. Mas não façam besteira e ignorância na condução desse tema que é tão caro para a sociedade brasileira", disse, na mesma linha, o senador Carlos Portinho (PL-RJ).

Contarato, por sua vez, defendeu a legitimidade do STF sobre o caso. "Não estamos enfrentando o problema de qual é o comportamento que vai ter a adequação típica par usuário e traficante. Se nós não enfrentamos o tema, o STF é instado a dizê-lo. Aconteceu isso com casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Aconteceu isso com inúmeros temas, que para nós preferimos ficar deitados eternamente em berços esplendidos. Então não venham falar que o STF está legislando."

O tema começou a ser julgado pela Corte em 2015, a partir de um recurso apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo, depois que um homem foi condenado a cumprir dois meses de serviços comunitários por ter sido flagrado com três gramas de maconha dentro da sua cela, no Centro de Detenção Provisória de Diadema.

Segundo a Defensoria, a legislação atual viola os princípios da intimidade e da vida privada. O que se argumenta é que o artigo 28 da Lei de Drogas (nº 11.343/2006), que prevê penas para quem porta substâncias para consumo pessoal, é inconstitucional, já que, além de ferir o direito à autodeterminação, seria um crime cuja única "vítima" é a própria pessoa que o comete.

Os ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso já defenderam a inconstitucionalidade da lei e a quantidade de 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas como critério quantitativo para caracterizar o consumo pessoal. O ministro Edson Fachin também defendeu a inconstitucionalidade, mas entendeu que o Legislativo deve estabelecer os limites e critérios. 

Já os ministros Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça são favoráveis à legislação atual. Os dois primeiros defendem que o critério para caracterizar o uso pessoal deve ser a quantidade de 25 gramas ou 6 plantas fêmeas. Já André Mendonça delimita a quantidade em 10 gramas. 

O julgamento foi suspenso em 6 de março após o ministro Dias Toffoli pedir vista, ou seja, mais tempo para analisar o tema. Também ainda não votaram Carmén Lúcia e Luiz Fux. 

Em entrevista à CNN Brasil, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou, em 4 de março, que o STF não tratará da descriminalização das drogas. "O que o Supremo vai decidir é qual a quantidade que deve ser considerada para tratar como porte ou tratar como tráfico", disse Barroso. "Sem o Supremo ter essa definição, quem a faz é a polícia. E o que se verifica é que há um critério extremamente discriminatório. Dependendo do bairro, se for rico ou periférico, a mesma quantidade tem tratamentos diferentes. O que o Supremo quer fazer é ter uma regra que valha para todo mundo", complementou o ministro.

Por um lado, o STF possui a autoridade para determinar o que está ou não em conformidade com a Constituição. Por sua vez, o Congresso tem o poder de aprovar leis.

Se a PEC for sancionada antes da decisão do STF, só poderá ser aplicada em conflitos que surjam após o vigor da legislação. Ainda assim, sua nova versão poderá ser contestada no STF.

Mas se a inconstitucionalidade for declarada antes da sanção da legislação, o Congresso não poderá mais fazer alterações. Isso significa que uma lei que fere a Constituição Federal já nasce inconstitucional.
Com informações de Caroline Oliveira Brasil de Fato | São Paulo


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Edição: Cida Alves