Paraíba

Coluna

Quem são os inimigos e os falsos amigos da democracia em João Pessoa?

Dia da votação do novo Plano Diretor de João Pessoa, que aconteceu na Câmara Municipal de João Pessoa, em 21 de dezembro de 2023. - Foto: July Portioli.
A elaboração do novo Plano Diretor de João Pessoa desvela uma narrativa intrincada e densa

Por Alexandre Sabino do Nascimento* e Andréa Porto Sales**

“Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas na de líderes eleitos." (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt)

Com a aprovação do projeto de Lei Complementar n° 164/2024, que definiu o novo Plano Diretor de João Pessoa, não é muito difícil dizer quem são os falsos amigos de uma gestão democrática na cidade. Já os inimigos, são sempre mais difíceis de apontar. Pois, eles estão em silêncio subvertendo a democracia ao negociar espaço e tempo de fala na mídia, ao fazer parcerias desonestas com o setor privado, ao aparelhar os tribunais para dar verniz de legalidade aos atos administrativos controversos, enquanto negociam com o Legislativo novas regras para o jogo democrático no município. 

A promulgação de leis e documentos que regem a esfera social e política na produção do espaço urbano sempre ostentou uma natureza intrinsecamente excludente quando confrontada com os interesses de agentes e capitais que auferem lucros da criação de disparidades e injustiças urbanas. Importa salientar que setores como empresas de transporte, gestão de resíduos, construtoras e incorporadoras, entre outros, emergem vitoriosos nos meandros dos detalhes e características que moldam a política urbana e os contratos que estabelecem com o poder público (Alexandre Sabino).

Perturbadoramente, os falsos amigos ficam ainda mais visíveis na escala municipal pelo paradoxo de estarem dentro das instituições democráticas que nos são próximas. O papel deles é de modificar dentro da legalidade os detalhes e as características dos dispositivos jurídicos-normativos, construídos e conquistados ao longo da curta história da democracia brasileira, para sufocar os avanços dos mecanismos de participação direta e de promoção da justiça social no planejamento e na gestão da cidade. 

Os inimigos, por sua vez, aproveitam da autonomia temporária que possuem para dar celeridade aos “pactos” a serem celebrados entre os mais diversos grupos de atores locais para manter os problemas, subverter a democracia e realizar a política da “porta giratória”. Essa última consiste em nomear, para os cargos de alto poder e controle da gestão municipal, indivíduos com passagem em cargos de gestão no setor privado, dispostos a escoar informações privilegiadas e administrar os interesses do seu setor de procedência na gestão pública.

O ensaio aqui apresentado destaca a importância de observar as ações realizadas antes, durante e depois da votação do novo Plano Diretor, que ocorreu em 21 de dezembro de 2023, na Câmara Municipal de João Pessoa (CMJP). Essa votação revela-se como um ponto crítico para analisar quem são os falsos amigos e os inimigos da democracia na cidade.

Por isso, as ações executadas por representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário antes, durante e depois da votação do novo Plano Diretor são simbólicas para tornar notável quem são aqueles que comprometem os princípios democráticos e a equidade na condução do planejamento e gestão democrática do município.

Muitos outros fatos e momentos poderiam ajudar a identificar quem são os falsos amigos e os inimigos da democracia. Mas, é no exercício do poder deliberativo sobre o futuro da cidade, que alianças público-privadas pró-mercado se materializam, na maioria das vezes, corrompendo direitos conquistados e sufocando o jogo democrático.

Os inimigos são reais e dissimulados

A elaboração do novo Plano Diretor de João Pessoa desvela uma narrativa intrincada e densa, permeada por ações que, sob a superfície, revelam um jogo político complexo e prejudicial à democracia local. O processo teve seu início em 30 de junho de 2021, sob a égide do Poder Executivo, marcado por uma audiência virtual, dada a conjuntura da Pandemia COVID-19. No entanto, desde o início, a iniciativa da gestão municipal demonstrou falhas significativas, começando pela ausência de uma revisão apropriada das propostas anteriores, baseando-se em uma base de dados obsoleta sobre o uso do solo da cidade, e perpetuando-se em uma metodologia de participação popular questionável.

As reuniões e audiências, embora numerosas, foram esvaziadas por uma abordagem comunicativa equívoca e distorcida, alvo de críticas de movimentos sociais e entidades ligadas ao debate urbano e sua governança. A inconsistência da metodologia de participação popular revela-se na natureza meramente consultiva e na falta de uma proposta pedagógica. A análise comparativa entre os diagnósticos comunitários e a Lei Complementar nº164/2024 evidencia que as demandas da população foram ignoradas, agravando-se pela falta de transparência em dados cruciais sobre o território, orçamento público e impactos nas vidas dos cidadãos.

Notavelmente elitista, o novo Plano Diretor de João Pessoa favorece os interesses do mercado imobiliário ao negligenciar Programas de Habitação Social, suprimir Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), ignorar problemas ambientais, desequilibrar o jogo democrático no Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) e negar o papel do gestor de coibir e punir à especulação imobiliária. 

Mesmo diante das críticas de entidades, movimentos sociais e de professores das universidades públicas e privadas ao projeto, o prefeito Cícero Lucena enviou o projeto à CMJP, no dia 13 de dezembro de 2022, e reagiu com termos ásperos e provocativos quando questionado sobre as propostas que favoreciam o mercado imobiliário e desequilibravam o jogo democrático no Conselho de Desenvolvimento Urbano. 

Essa atitude revela uma estratégia que transcende o debate retórico, introduzindo medidas concretas em desacordo com a participação democrática. Na obra Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, os autores advertem que existem diversas formas de acabar com o jogo democrático e esse processo começa com o uso das palavras por aqueles que possuem tempo e espaço de fala nas grandes mídias. 

Os falsos amigos existem e não têm remorsos

Ao Poder Legislativo coube passar um verniz democrático no processo de revisão do Plano Diretor, ao transitar o projeto dentro da CMJP no tempo indicado por seu Regimento Interno e realizar, ao longo de um ano, três audiências temáticas sobre o Plano Diretor.

A ressonância nas redes sociais após a entrega do projeto na CMJP pelo Poder Executivo, em dezembro de 2022, foi tão intensa que compeliu a grande mídia a colocar o Plano Diretor em destaque. Essa movimentação pressionou o presidente da CMJP, Dinho Dowsley (Avante), a se pronunciar sobre o anteprojeto de Lei Complementar nº 31/2022. Diante da pressão popular nas redes, o presidente anunciou a formação de uma comissão especial para dialogar com entidades e movimentos sociais, comprometendo-se a respeitar o tempo regimental para a votação.

A Comissão Especial, sob a presidência de Damásio Franca, do PP, mesmo partido do prefeito, reuniu-se com algumas entidades e representantes dos movimentos sociais. Contudo, ignorou de maneira flagrante os alertas emitidos pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), presentes no Relatório de Acompanhamento nº 0323/2022 da Diretoria de Auditoria e Fiscalização, e pelo Fórum Plano Diretor Participativo de João Pessoa, que esteve envolvido no processo de revisão desde a fase anterior à elaboração do termo de referência para a licitação do consórcio responsável.

No dia da votação, realizada como Sessão Ordinária com duas pautas - a aprovação do projeto substitutivo do Plano Diretor nº 31/2022 e do projeto nº 211/2023, que alterava o regime de trabalho da Guarda Municipal -, a coincidência não foi casual. Após o uso de spray de pimenta e um intenso diálogo entre as lideranças dos dois grupos, o espaço da "Casa do Povo" foi dividido com uma certa desvantagem para os interessados na pauta do Plano Diretor.

E para surpresa de todos, o empresário e vereador Thiago Lucena (PRTB), presidente da Comissão de Constituição e Justiça, na qual o projeto ficou parado por um ano, enviou para o plenário, durante a votação, um pacote de emendas, como evidenciado no histórico de tramitação. Esse ato, destituído de sutileza, transformou algo já problemático em algo escandalosamente pior e legitimamente antidemocrático.

O pacote de emendas foi lido na hora da votação e aprovado por maioria absoluta e esmagadora de votos. As emendas supressivas, modificativas e aditivas encaminhadas ao plenário foram concebidas por aqueles que pretendem destruir o jogo democrático de modo gradual e sutil (Andréa Porto).

Dentre as três emendas mais perversas e covardes, destacam-se: a) a supressão do inciso XIV do art. 8º, essencial para a existência do Estatuto da Cidade e motivo pelo qual um Plano Diretor é elaborado, o qual determina que a gestão pública deve "coibir o uso especulativo dos imóveis urbanos de modo a assegurar o cumprimento da função social da propriedade"; b) a supressão dos incisos I, II e III do art.172, que garantiam a participação social, a publicidade dos eventos e a divulgação prévia das datas, horários e locais; e, c) a modificação da redação do art. 139 para centralizar o processo participativo de elaboração do próximo Plano Diretor nas mãos de uma Comissão a ser delegada pelo Prefeito. Tais absurdos estão contidos na Lei Complementar nº 164/2024; já sancionada por Cícero Lucena em menos de um mês após a votação, fragilizando consideravelmente a participação popular no planejamento e gestão da cidade.

Quem salvará a democracia? Os inimigos, os revolucionários ou os falsos amigos?

Em quase todos os colapsos democráticos apontados na obra já citada, Como as Democracias Morrem, cabe ao Poder Judiciário manter ou enfraquecer as grades de proteção da democracia. No caso do Brasil, essa prerrogativa é ainda mais perigosa. Primeiro pelo fato de vários estudiosos apontarem que há um excesso de poder que foi concedido ao Poder Judiciário na Constituição Federal de 1988 e na Emenda Constitucional nº45. Segundo, pelo fato dos atos do Poder Judiciário não estarem submetidos a nenhum tipo de controle externo de órgãos dos outros poderes. E, por fim, por existir juízas e juízes herdeiros de concepções autoritárias e elitistas.

Após a votação e em busca de justiça, diante dos ataques ao jogo democrático na cidade, o mandato do vereador Marcos Henriques (PT), que foi o único a se posicionar desde o início contra o projeto de lei complementar e a metodologia de participação popular, impetrou uma Ação Popular de nº 0871042-93.2023.8.15.2001, na 5º Vara de Fazenda Pública da Capital, solicitando a suspensão da tramitação do projeto por abuso de poder do Legislativo. 

O juiz Luiz Eduardo Souto Cantalice julgou extinta a ação. E, com esse ato, o atual Plano Diretor foi sancionado pelo Prefeito, no dia 11 de janeiro de 2024. 

Embora as previsões da Constituição referentes à democracia tenham sido ampliadas nos textos infraconstitucionais, é na escala da cidade que as possibilidades de envolvimento direto da população no debate político e avanços de mecanismos de participação direta podem ocorrer. Se as fendas da democracia são corroídas a cada oportunidade, como elas serão fortalecidas? Se todos afirmam ser a favor da participação popular, quem são os inimigos e os falsos amigos da democracia? Nessa questão, como diz o ditado popular “são as nossas ações que falam por nós”.

Estamos em um ano eleitoral e analisar criticamente os representantes atuais considerando como eles se posicionaram diante da elaboração, votação e sanção do atual Plano Diretor da cidade é um dever cívico e um caminho para reparar as fendas democráticas corroídas e fortalecer a democracia local.

*Alexandre Sabino do Nascimento é professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGG/UFPB e pesquisador do INCT - Observatório das Metrópoles – Núcleo Paraíba.

**Andréa Porto Sales é professora adjunta II do Departamento de Geociências/ UFPB e pesquisadora Observatório das Metrópoles - INCT e coordenadora do Projeto de Extensão Pedagogia Urbana.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira