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A memória étnica também é direito humano: o Toré Potiguara como símbolo de (re)existência

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Ritual do Toré, dos Potiguara da Paraíba. - Foto: Gabriela Cristina da Silva Ferreira/Arquivo Pessoal.
O Ritual do Toré [...] é uma das práticas culturais mais presentes e comuns no território Potiguara

Por Gabriela Cristina da Silva Ferreira*

No âmbito da garantia dos direitos humanos e em menção ao Toré Potiguara enquanto símbolo de (re)existência cultural, destaco a contribuição do ancião e líder do movimento Potiguara, Antônio Barbalho, conhecido como “Raqué Potiguara”. A partir de suas memórias étnicas e vivências culturais de luta adquiridas e semeadas no território Potiguara, o ancião traz narrativas sobre a representatividade da prática do Ritual do Toré para a resistência e existência do Povo Potiguara da Paraíba. 

Para tanto, esta escrita se encaminhará a partir do viés de experiências étnicas, evidenciando a importância da memória para autoidentificação e fortalecimento da identidade cultural de um povo – os Potiguara. O historiador Jacques Le Goff pontuou a memória como um monumento histórico que a sociedade produziu. Assim, ressalto o Ritual do Toré, que é para o nosso povo um ritual único na sua forma de dançar: a pisada é diferente, ao som do bombo, do maracá e da gaita. Em círculos se cumprimentam uns com os outros, demonstrando respeito, humildade e igualdade, sendo assim, considerado um monumento histórico cultural produzido pelos nossos ancestrais e a partir das rememorações reproduzidas atualmente e de modo secular.


A autora Gabriela Potiguara e Antônio Barbalho, ancião indígena/Momento de entrevista. / Foto: Arquivo Pessoal.

Corroborando, é válido pontuar de forma sucinta o que é o Ritual do Toré. Como ele foi reaceso no nosso território Potiguara? E qual a sua representatividade? Não podemos trazer uma definição única, quando referido ao que é o Ritual do Toré. Entretanto, podemos pensar nessa ocasião como um ritual sagrado que interliga o mundo terrestre ao mundo espiritual. Nele, é possível aclamar a proteção e sabedoria ao nosso Deus Tupã e aos nossos encantados, a fim de que nos deem a força necessária e discernimento para momentos de enfrentamento e reivindicações de melhorias aos direitos humanos básicos, como garante a Constituição Federal de 1988 e demais marcos regulatórios, asseguradores do direito a expressar nossas vivências e características próprias.

Em complemento, é muito comum a realização do Ritual do Toré em celebrações de conquistas de políticas públicas no/pelo nosso território, bem como em funerais, quando há o encantamento dos nossos parentes.

O Ritual do Toré, em sua essência ritualística, é uma das práticas culturais mais presentes e comuns no território Potiguara, não em detrimento a demais práticas culturais locais. Todavia, o Ritual do Toré é praticado cotidianamente e realizado em qualquer momento de aglomeração. Isso acontece em respeito ao nosso Deus Tupã e aos encantados que resistiram para hoje podermos existir. 

Como retrata a nossa historicidade, nem sempre nós, povos indígenas, tivemos liberdade de expressão cultural. Assim como toda e qualquer minoria, tivemos nossos direitos violados e a prática da expressão étnica, que não seguia os padrões da cultura eurocêntrica, era tida como demoníaca e, logo, vetada de reproduzir. 

Mesmo diante dessa errônea interpretação, o povo Potiguara não se distanciou da sua realidade, na qual resquícios de violações, torturas e perseguições disseminadas pelos invasores europeus ocasionaram o adormecimento das nossas práticas e costumes culturais, a exemplo do Ritual do Toré.

Contudo, na década de 80, se iniciava de forma tímida o retorno da prática do Ritual do Toré. No nosso território, ele foi reaceso e protagonizado por iniciativa do ancião Antônio Barbalho, que corajosamente pregava no território Potiguara a importância de voltarmos às nossas raízes, por intermédio de um projeto que acolhia os curumins da Aldeia Alto do Tambá, para junto incentivar as demais aldeias que já não praticavam esse costume cultural.
 
Antônio Barbalho conta sobre seu protagonismo nesse projeto de ascensão cultural: “Naquela época a gente não tinha muito o incentivo da prática do Toré. Então eu pensei... O povo não tem muito conhecimento, então, vou lá levar o Toré nas aldeias. Então, o falecido João Borges tinha uma Mercedes, né!? Aí encheu de índio e fomos dançar o Toré. Eu mandei convite para todas as Aldeias e fomos muito bem recebidos, né!? E já estavam nos esperando... E já estava nos esperando mesmo! Fomos muito bem recebidos e tinha muita comida. E cada dia fui levando um pouquinho do Toré em cada aldeia." 

O projeto objetivava a motivação e valorização dos nossos costumes que, aprendidos através do Ritual do Toré, foi propagador de um vasto aprendizado acerca da educação indígena, espiritualidade, autoidentificação e a afirmação das identidades. 

A partir dessa iniciativa, ao longo dos anos, o protagonismo e empoderamento de várias ações e organizações deram ainda mais visibilidade e fortalecimento à prática do Toré no território Potiguara sendo, atualmente, uma das principais práticas culturais de propagação da (re)existência do povo Potiguara. 

Isso porque, surgiu de um forte adormecimento e a partir da resistência às mazelas coloniais. Buscou-se a memória para propagar um costume étnico e próprio do nosso povo, garantido o direito de expressar e vivenciar nossos costumes, valores e crenças sem medo de termos nossos corpos sentenciados. Sobre a importância da memória para o fortalecimento da identidade Potiguara, o ancião relata:

Sem memórias, não podemos saber quem somos, concorda? Aprendemos com os nossos antepassados o que fazemos hoje, minha mãe sentava com a gente no quintal de casa mesmo, e contava histórias, cantava e nos ensinava os cânticos que dançamos hoje no Ritual do Toré. Hoje temos alguns cânticos escritos por ela, como “Hó mãe de Deus”. Então, tudo isso é memória, né!? Eu acho que a memória é isso. É uma continuação de nossa história pra gente não se perder aí, pelo caminho.

Portanto, o ritual do Toré tem em sua representatividade a marca da nossa continuidade cultural, ou seja, (Re)existência Potiguara. É nesse momento ritualístico que, a partir do espírito da coletividade, buscamos a sabedoria ancestral para continuarmos propagando nossos costumes rememoráveis. Esse momento de conexão com o místico não pode ser descrito, embora tentemos. Mas, só vivendo para sentir o peso do seu real significado. 

O ancião Indígena Raqué comenta sobre a representatividade do Toré para o fortalecimento do nosso povo:  “o Toré pra nós é como uma religião. É sagrado! Ele tem força desde a hora que a gente entra, buscamos a sabedoria ancestral diretamente com a fé no universo e no nosso Deus Tupã. Quando dançamos o Toré, temos o respeito com o outro e a partir desse respeito nos mantemos fortes para nos proteger e assim manter firme nossa cultura, né!? Um povo unido garante a defesa do nosso território e o Toré nos ajuda com isso."

Concluo que, a escrita não esgota o tema e que ainda há muito do que se falar sobre o Ritual do Toré, entretanto, o que foi trazido reflete de maneira genuína uma educação étnica que tem promovido uma grande representatividade cultural de pertencimento em nosso meio, não só para o fortalecimento da nossa cultura, mas também, reforço, para nossa (Re)existência.

Dicas de leitura:

LE GOFF, J. 1924. Documento Monumento. In: História e Memória. São Paulo: UNICAMP, 1990.

BARCELLOS, Lusival Antonio. Práticas educativo-religiosas dos índios Potiguara da Paraíba/Lusival Antonio Barcellos. – Natal, 2005.

*Gabriela Cristina da Silva Ferreira é potiguara da Aldeia São Miguel - Município Baía da Traição (PB). Graduada em Pedagogia - Educação do Campo - CE/UFPB. Graduanda em História/ UNIASSELVI. Mestra em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas – PPGDH/ UFPB. 

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.


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Edição: Carolina Ferreira