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Lula em Adis Abeba: comparar, sim, racismo e sionismo

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Lula durante a 37 ª Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da União Africana. - Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República.
A ideia comparativa de Lula da Silva [...] não é improvisada, nem intempestiva, nem impensável

Por Elio Flores*

Aqui também há uma ironia complexa: as vítimas clássicas de perseguição antissemita e do holocausto tornaram-se, em sua própria nação, carrascos de outro povo, que passou a ser, portanto, vítima das vítimas. (...) É claro que, se ninguém pode se apresentar e dizer com franqueza sim, os palestinos realmente devem expiar os crimes históricos cometidos contra os judeus na Europa, então também deve ser verdadeiro que não dizer Não, os palestinos não devem mais ser submetidos a essas provações, é um ato de cumplicidade e covardia moral de dimensão singular (Edward Said. A Questão da Palestina, 1979).

A Etiópia tornou-se um país cristão no ano 312 da Era Comum. Antes mesmo do império romano. Ainda hoje, o cristianismo copta, também presente no Egito, é majoritário na espiritualidade etíope. Nessas mesmas terras, comunidades judaicas permaneceram por séculos, o que permitiu que seus membros fossem definidos como judeus etíopes. As igrejas coptas e seus patrimônios materiais e imateriais tornaram esse notável país africano como o segundo mais bem provido de patrimônio cultural pela Unesco. Não custa lembrar que a Etiópia foi uma das poucas geografias africanas que conseguiu deter o avanço do colonialismo europeu na África. A Itália tentou duas vezes, mas foi completamente vencida pelas forças de resistência. 

Na sua segunda viagem à África, neste terceiro mandato, o presidente Lula da Silva esteve neste mês no Egito e na Etiópia. Por razões políticas e diplomáticas, no Cairo, capital do Egito, também sede da Liga Árabe, ele precisou se manifestar sobre a tragédia que se abate sobre o povo palestino, especialmente em Gaza e na Cisjordânia, espaços de intenso colonialismo sionista por parte do Estado de Israel. Lula da Silva participou, como convidado, da 37ª Cúpula de Chefes de Estado e Governo da União Africana, que se realizava em Adis Abeba, capital da Etiópia. 

A viagem diplomática não deixava de referendar o acesso da Etiópia e do Egito ao Brics, o bloco das economias vistas como emergentes que conta com o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os formuladores desse processo no início do século 21. Ao ser recebido no palácio presidencial pelo presidente egípcio, Abdel Fattah El-Sisi, no Cairo, no dia 15 de fevereiro, Lula da Silva foi enfático ao dizer que o governo brasileiro já havia criticado os ataques do Hamas nos primeiros dias de outubro de 2023. A primeira declaração de Lula, ainda no Egito, foi: “Israel, a pretexto de derrotar o Hamas, está matando mulheres e crianças, coisa jamais vista em qualquer guerra que eu tenha conhecimento”.

Uma segunda declaração do presidente do Brasil foi dita três dias depois, no dia 18 de fevereiro, em Adis Abeba. Lula da Silva compara com precisão dois eventos históricos: “Não é uma guerra entre soldados e soldados. É uma guerra entre um exército altamente preparado e mulheres e crianças. O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus."

A primeira declaração ficou nas redações e redes sociais sem alarde. A segunda virou caso diplomático, e parece ter ofendido o sionismo mundial, inclusive o brasileiro, de cores bolsonaristas e não menos racistas.

A primeira declaração ficou nas redações e redes sociais sem alarde. A segunda virou caso diplomático, e parece ter ofendido o sionismo mundial, inclusive o brasileiro, de cores bolsonaristas e não menos racistas. Quarenta e cinco anos antes, Edward Said observava, na mesma obra da epígrafe acima, que nesse caso “geralmente esquecemos que a relação entre israelenses e árabes não é um fato da natureza, mas resultado de um processo específico e contínuo de expropriação, deslocamento e apartheid colonial de facto. Além do mais, tendemos a esquecer que os sionistas chegaram à Palestina vindos da Europa”.

Mas por que o Estado de Israel pratica o racismo e, assim, associa-se aos demais colonialismos anteriores na África e no Oriente Médio? 

Pode-se dizer que o Estado de Israel foi fundado e justificado através de uma matriz colonial específica, a ideologia sionista. No final do século XIX, lideranças e intelectuais, com o avanço do antissemitismo na Europa, começam a construir a narrativa que os judeus deveriam colonizar o Sião, antiga expressão que designava a Jerusalém bíblica e o seu entorno. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o racismo europeu campeou na Palestina britânica (1918-1947).

Não resta dúvida de que a ideologia sionista pregou e realizou sistematicamente, depois de 1948, a Palestina prometida − absolutamente judaica − e, para isso, decidiu não reconhecer qualquer direito humano da população palestina enraizada no mesmo território desde, pelo menos, o século VII. Mais ainda, o Estado de Israel se tornou o principal aliado do regime de supremacia branca da África do Sul, na segunda metade do século XX. A própria ONU, em assembleia geral de 1975, reconheceu  o sionismo como “uma forma de racismo e discriminação racial”. Quase no mesmo contexto histórico em que, na África do Sul, o Congresso Nacional Africano e Nelson Mandela passaram a ser acusados e representados como terroristas, da mesma forma os palestinos, árabes e islamitas foram denominados de terroristas e inumanos no Ocidente judaizante. Esse tipo de orientalismo vem de longe.

“No ano que vem em Jerusalém” talvez seja a metáfora sionista mais evidente para fundamentar a chegada dos judeus na Palestina, cuja última diáspora havia acontecido no ano 70 da Era Comum. As matanças – do russo progroms − de judeus em vários países europeus no século XIX (antissemitismo), o holocausto – Shoah na historiografia judaica – no decorrer do regime nazista alemão (1939-1945) e, por fim, a decisão da ONU em reconhecer um Estado de judeus na região, intensificaram a presença judaico/sionista nas terras palestinas. 

Isso tudo para dizer que a ideia comparativa de Lula da Silva, entre o que o Partido Nazista e Hitler fizeram com os judeus, e o que o Estado de Israel e os sionistas israelenses estão fazendo com os palestinos de Gaza, não é improvisada, nem intempestiva, nem impensável. Uma farta documentação israelense e palestina foi produzida cheia de comparações entre eventos similares, análogos e historiograficamente comparáveis. Mas então, é preciso teorizar o olhar comparativo de Lula da Silva.

No senso comum, a perspectiva comparativa é usual e cotidiana. Comparar não é hierarquizar nem discriminar nem diminuir. Na ciência – que prima pelo argumento racional e verificável – o método comparativo é largamente utilizado com bastante eficácia explicativa e epistemológica. Na segunda metade do século XIX, várias disciplinas praticaram o olhar comparativo. A linguística, por exemplo, foi comparatista desde o seu início. A literatura comparada, ainda hoje, é largamente praticada. 

A sociologia se tornou uma ciência social quando Émile Durkheim criou um método para ela, o método comparativo, desenvolvido na obra As regras do método sociológico (1895). O autor lhe deu um nome específico: o método das variações concomitantes. Pensemos na questão Palestina/Israel, judaísmo/cristianismo/islamismo e mesmo Oriente/Ocidente. Pelo menos na história moderna e contemporânea existiram vínculos, aproximações, enfrentamentos, colisões que foram necessariamente concomitantes  em suas respectivas esferas de civilização e economia. Max Weber foi um grande sociólogo comparatista, basta acessar a obra Ética Econômica das Religiões Mundiais: ensaios comparados de sociologia da religião (1915-1919), de seu vasto repertório. Ao comparar as religiões, Weber chegou a um veredito universalista de que as religiões são duas teodiceias concomitantes: a da felicidade e a do sofrimento.

O método comparativo passou da sociologia para a historiografia e foi o francês Marc Bloch a se entusiasmar pelos estudos comparados. Realizou e escreveu Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio na França e Inglaterra (1924), uma pesquisa brilhante que, em definitivo, inaugurou o método comparativo na historiografia. Para ele, a poderosa relação religião/política nunca deixará de produzir “erros coletivos”. Bloch era judeu, ateu e racionalista e, por isso mesmo, foi assassinado por fuzilamento pelo poder nazista no ano de 1944. Bloch defendia “comparar o comparável”, o que lhe rendeu críticas nas gerações seguintes de historiadores e antropólogos.

Se a historiografia era a “acne da nação” que se “embriagava de sangue e de terra natal”, a abordagem comparativa deveria superar o prudente método de Marc Bloch. E assim foi feito, quando o historiador e antropólogo belga Marcel Detienne, após décadas comparando a Grécia antiga com outras sociedades, resolveu escrever Comparar o Incomparável (2000). Isso para defender a ideia de que nada é incomparável.

Então, é possível, sim, comparar o genocídio sionista contra os palestinos com o genocídio nazista contra os judeus, cujos eventos distam menos de um século. Lula da Silva, na Etiópia, mencionou uma verdade histórica calibrada pelo tempo presente, pois ele não é historiador, é estadista e assim comparou dois eventos dramáticos e terríveis para as vítimas, tamanha a violência perpetrada.

Mas se a analogia de Lula da Silva foi certamente a última a ser dita, ela está longe de ser a primeira, que data de 1948. Foi Albert Einstein que, numa carta aos editores do New York Times, denunciou o surgimento de um partido político – ironicamente nomeado Partido da Liberdade – “muito parecido em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazistas e fascistas”. A longa carta, assinada por outros cientistas e intelectuais, inclusive por Hannah Arendt, também denunciava que “dentro da comunidade judaica, eles pregaram uma mistura de ultranacionalismo, misticismo religioso e superioridade racial”. 

De Menachem Begin (1948) a Benjamin Netanyahu (2024) tudo é comparável, pois não deixa de ser a historicidade da “banalidade do mal” e o pensamento sionista  antecede a própria prática sionista. As evidências de 1948 são definidoras do “sionismo fascista” atual. Não por acaso, no ano seguinte, Hannah Arendt, ao prefaciar obra contundente Origens do Totalitarismo (1949), lembrou que o mal absoluto é “absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis”, permitindo a nós, pelo menos, conhecer “a natureza realmente radical do Mal”.

Também não se deve esquecer que Primo Levi, sobrevivente do holocausto, em carta aberta antes de revisitar Auschwitz, em 1982, carregou nas tintas da ironia, a partir de uma forma secular de dizer a história: “Cada pessoa é o judeu de alguém. E hoje, os palestinos são os judeus dos israelenses”. Eis então a natureza radical do Mal: antes mesmo dos leitores e leitoras terminarem de ler este artigo, os soldados israelenses farão com mulheres e crianças palestinas o mesmo que os soldados nazistas fizeram com os pais de seus pais.

Para saber mais

BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das Cruzadas ao século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

BUTLER, Judith. Caminhos Divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

SAID, Edward W. A Questão da Palestina. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

*Elio Flores é professor titular aposentado do DH/UFPB e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.


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Edição: Carolina Ferreira