Paraíba

DIGNIDADE

Artigo | Afinal de contas, quem (na prática) tem acesso aos direitos humanos?

"[...] sabemos que entre o que está descrito “na lei” e o que ocorre na prática, há uma grande diferença"

Brasil de Fato PB | João Pessoa |
Folder/Associação de Prostitutas da Paraíba (Apros/PB). - Foto: Fernanda Alves. Retirada do instagram @aprospb.

Por Breno Mello e Luísa Câmara Rocha*

10 de dezembro é o dia internacional dos direitos humanos, essa data foi estabelecida quando, em 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 de dezembro é o dia também que marca os 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra às mulheres, que tem início em 25 de novembro (Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres). 

os direitos humanos não são algo dado e estático, mas sim, algo construído, disputado e consolidado a partir das dinâmicas sociais de raça e etnia, gênero, classe social e território

Ao mesmo tempo em que a Declaração é o primeiro documento de caráter universal de proteção aos direitos humanos, a temática do enfrentamento à violência contra às mulheres aparece como uma demanda cada vez mais latente na sociedade. No entanto, sabemos que entre o que está descrito “na lei” e o que ocorre na prática, há uma grande diferença. Isso porque, os direitos humanos não são algo dado e estático, mas sim, algo construído, disputado e consolidado a partir das dinâmicas sociais de raça e etnia, gênero, classe social e território. 

É perceptível que quanto maior a vulnerabilidade social, maior é também a distância para efetivação e garantia dos direitos humanos e maiores são as violações a esses direitos.  Muitas vezes, inclusive, o próprio Poder Judiciário que deveria garantir e buscar a efetivação desses direitos, aparece como o agente violador. 

Pode o corpo de uma prostituta ter direitos?

Joana¹  foi assassinada no mês de novembro. Prostituta, indígena e moradora da periferia, com ela não foi encontrado nenhum documento pessoal que pudesse lhe identificar. Durante a primeira semana, em que seu corpo permaneceu no Instituto Médico Legal (IML), nenhum familiar compareceu para realizar a identificação e o sepultamento. 

Nos últimos dez anos, Joana participou das atividades da Associação das Prostitutas da Paraíba (Apros/PB), na condição de associada. O que permitiu à instituição a possibilidade de buscar os familiares e, constatando a ausência deles, procedesse com a identificação e o sepultamento do seu corpo junto à Polícia Civil.
 
A polícia após todos os procedimentos informou a Apros/PB que o corpo de Joana poderia ser removido para o velório. Ao ingressar com a ação judicial no Tribunal de Justiça da Paraíba para a concessão do alvará de sepultamento, a ONG teve a surpresa da negação do pedido.

O pedido de sepultamento foi negado sob a justificativa, em síntese, de que não existe “probabilidade do direito”. Isso porque, ao mesmo tempo em que a Apros não é reconhecida como entidade que pode requerer um sepultamento digno para uma prostituta assassinada, sob a justificativa de ausência de parentesco (ainda que nenhum familiar tenha reivindicado o corpo); Por outro lado, o judiciário paraibano entende que o corpo de uma prostituta sem documentos, morta de forma intencional e violenta, só pode ser liberado para sepultamento após a finalização das investigações (ainda que a autoridade policial indique que não há necessidade de retenção do corpo). 

Desde o dia 30 de novembro, a organização busca reverter a decisão indicando que a situação de indigência é muito mais degradante para a existência humana do que a “probabilidade do direito”. A “probabilidade”, argumento central do judiciário para negar o sepultamento, tenta reconhecer no parentesco a única possibilidade de conferir a Joana o direito à dignidade. 

Para o judiciário paraibano, o corpo de Joana serve para ser “investigado”, mas não para ser velado. O direito ao choro, à angústia, ao lamento, se perde na lógica da “probabilidade” ou na própria compreensão de que as prostitutas encontrarão as portas da justiça fechadas para suas demandas, estejam vivas ou mortas. O corpo periférico de uma prostituta é “matável”, mas não é “chorável”. 

Primeiro, porque a justiça assentou seus entendimentos na estabilidade dos parentescos das famílias tradicionais, onde a “probabilidade do direito” não reconhece o companheirismo e a solidariedade das lutas sociais. Sendo essa, a justificativa para negar que as prostitutas possam enterrar Joana. Segundo, porque a dignidade é, para a Justiça, um “direito provável” que pode ou não ser concretizado, à medida dos perfis de quem demandar a própria justiça seus direitos. É, na verdade, “improvável” que o estigma da prostituição seja superado para garantir direitos a essas mulheres, ainda que depois de mortas.  

Joana não poderá ser velada por mais de uma hora, tendo em vista o estágio de decomposição do seu corpo. O “sujeito de direito” para o Estado deve sofrer a indigência, o esquecimento e o estigma. Esse sujeito não encontrará, nos limites institucionais, os seus direitos de viver e nem poderão usufruir dos seus direitos de morrer. 

 A Apros/PB tem como único objetivo garantir um sepultamento digno após uma morte violenta de uma associada, muito embora não seja reconhecida enquanto parte legítima, a fim de garantir a dignidade dessa mulher. 

O direito humano ao sepultamento digno não encontra, no Judiciário paraibano, uma prostituta morta como sujeita de direitos.  A “probabilidade de direito” não reconhece dos direitos das trabalhadoras sexuais. 10 de dezembro é o dia internacional dos direitos humanos. 10 de dezembro marca os 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra às mulheres. E Joana ainda não pôde descansar em paz. 

Notas 

1 O nome foi alterado

 *Advogado e advogada popular com atuação na Paraíba por meio do escritório RCM advocacia e direitos humanos. E-mail: [email protected] e [email protected] 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira