Paraíba

Coluna

Maracatu, batuque e cantorias africanas pelas ruas da Paraíba escravista e no imediato pós-abolição

Reis do Congo, Pombal/PB (1938). - Fonte: Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade (1938).
Até a década de 1880, o maracatu havia migrado do sagrado para o cotidiano da vida dos trabalhadores

Por Diego S. Canuto* 

São inúmeras as expressões culturais de africanos na diáspora atlântica. Na Paraíba, Ademar Vidal (1897-1986), historiador e memorialista, registrou no texto A tradição do Maracatu (1944) valiosos dados acerca dos cortejos de maracatus, destacando suas vestimentas, perfis de seus integrantes, os seus toques e cantos nas ruas da então cidade da Parahyba (atual João Pessoa), da fase final do escravismo e das primeiras décadas do Pós-Abolição. Jornais oitocentistas noticiavam também as festas negras como a chamada “Batuques Africanos” para informar sobre a Festa do Rosário. Destacavam que a “irmandade dos pretos celebrou no dia 4 do corrente a festa de Nossa Senhora do Rosário na igreja da invocação da mesma Senhora, havendo à tarde procissão, que percorreu a cidade alta e baixa, sendo acompanhada pelo rei e rainha de Congo, e diversas crioulas, que na forma costume cantavam o terço. No período da noite, após a missa e a ladainha, ocorria nas ruas ‘o célebre maracatu à frente da igreja’” (Jornal, A Esperança, de 06/01/1867). Como podemos observar, pessoas do continente africano praticavam uma maneira diferenciada da fé cristã, introduzindo nas procissões sons de percussão o que, certamente, resultou num afro-catolicismo, para uns, uma nova forma de vivenciar o sagrado, para outros, maculava-se a tradição.   

O Maracatu é o resultado da (re)humanização e da expressão cultural de milhões de mulheres e homens africanos na diáspora atlântica nas Américas, ou dita também como a “modernidade” que garantiu melhores condições de vida para parcela de europeus por meio da submissão da escravização e diferentes formas de violência daqueles sujeitos sociais no continente americano. Na Paraíba, não foi diferente, pesquisas apontam que o comércio escravista fixou milhares de africanas e africanos em tal território, que mesmo vivendo em meio a uma sociedade hostil, estes em contato puderam gerar novas formas culturais e identidades diversas. Assim ocorreu com o maracatu, cujas origens estão vinculadas às alterações ao catolicismo tradicional com a participação histórica de pessoas negras. Além da criação das irmandades especificadas para devoção de seus santos e santas e para auxiliar os “irmãos” e as “irmãs” (durante momentos de doenças, por exemplo), os atabaques e a coroação de Reis e Rainhas de Congo passaram a integrar as festividades religiosas, como a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (outubro de cada ano). Nos escritos dos séculos XIX e XX, publicava-se que os “negros” de diferentes “cores”, condição social, ou seja, pretos e pardos; escravizados, livres e libertos, respectivamente, “dominavam inteiramente no maracatu da rua Direita (atual Duque de Caxias), não se vendo nem uma cara branca”. Estas, estavam na assistência, pois “preponderavam os brancos que aplaudiam e tomavam partido por uma das figuras”. Ouvia-se o característico rumor monótono dos atabaques. Uma coisa só, ali, constante, sem variar. O chapéu encarnado era o centro do movimento, vendo-se ao longe sua oscilação gloriosa. Aquilo regulava e dava sentido ao maracatu.

Tendo Vidal (1944) como nosso interlocutor para captar a memória desse segmento social, é importante destacar que ele testemunhou, ainda criança (por volta de 1907), “na porta da igreja da Misericórdia [construção iniciada no fim do século XVI] na rua Direita, num tumulto de gente, de som e de muita cor vermelha, de luz em grandes tochas encarnadas. Também paravam em frente ao Rosário [então localizada na região central da capital], para uma homenagem à Nossa Senhora que protegia os pretos”, sendo que as mulheres e homens que compunham a Irmandade assistiam a tudo e mais um ano, “venciam” aqueles que criticavam e desvalorizavam suas manifestações de fé e de alegria, considerado um costume dos ditos “incivilizados”.

Em duas décadas do século XIX, percebemos mudanças nessa experiência religiosa, uma vez que moradores da capital não deixaram de publicar nos periódicos seus incômodos com as festas negras: na década de 1860, o sagrado estava na centralidade dos ajuntamentos desse grupo social. Contudo, em 1880, mencionava-se que “as vizinhanças acordaram com o barulho infernal de batuque e algazarra, parecendo que os trabalhadores improvisaram um maracatu, no fundo das barricas vazias” (Diário da Parahyba, 08/01/1885). Meses depois, utilizavam o mesmo jornal para “denunciar” que o batuque, gritos e cantarola africana dos padeiros a ponto do Sr. João de Hollanda estar procurando casa para se mudar [...]”. Essas reclamações nos mostram que, pelo menos, até a década de 1880, o maracatu havia migrado do sagrado para o cotidiano da vida dos trabalhadores, como a dos padeiros. Talvez, a cantoria estivesse marcada pela língua portuguesa, mas também por sons da língua de origem banto, dos territórios de Congo e Angola. Afinal, esse grupo étnico foi o mais presente no processo da diáspora africana no Brasil.
 
O certo é que temos nos dias de hoje, em 2023,  um forte e rico legado cultural deixado por africanas e africanos e seus descendentes em todas as regiões do Brasil. São grupos de coco de roda e ciranda localizados em quilombos remanescentes; “cambindas”; congos, mazurca e dança do Espontão, situados desde o litoral até o alto sertão, no caso da Paraíba. Vale também mencionar os atuais grupos de Maracatu que renasceram nos últimos anos em João Pessoa/PB, de alguma maneira, fazem ressoar a herança negra dos atabaques ancestrais.

Para saber mais:

AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cocos: alegria e devoção. Natal: UFRN, 2000.

CANUTO, Diego de Souza. Cultura popular negra como forma de resistência político-cultural no Pós-Abolição (Paraíba, 1910-1930). Monografia de Graduação (História), Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2017.

LIMA, Maria da Vitória B. Cidade e Festas Negra. In: ROCHA. Solange; GUIMARÃES, Matheus S. (Orgs). Experiências históricas da gente negra na diáspora africana: Paraíba colonial e imperial. João Pessoa: Editora UFPB, 2018, p. 239-262. 

*Diego S. Canuto é graduado em História pela UFPB e pesquisador de expressões culturais negras. 

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Edição: Carolina Ferreira