Paraíba

Coluna

O Cuidado com 'Corpas Negras Escreviventes' – Entrevista com Lígia Emanuelle, a "Azulão"

Sua arte intensa de axé, referência para jovens negros/as, tem como inspiração o modo como seu avô a chamava quando criança, “Azulão”, um passarinho - Arquivo Pessoal - Ligia Emanuelle
A entrevista expressa uma noção de política de escrita como cuidado ancestral e permanência de saber

Por Natália Bianca Leandro de Moura, Roana Camily Borges de Souza1;

Tâmara Ferreira de Sousa e Luz Santos2 


Neste Novembro Negro as mulheres da Comunidade Colaborativa de Mulheres Afro-indígenas e Ameríndias – COCAM, debateram sobre a necessidade do cuidado com os corpos escreviventes negros e indígenas, dentro e fora da academia. O tema surgiu da experiência de algumas das mulheres da COCAM, cuja escrita-corpa-vida3 esbarra na brutal violência interseccional exigente de conciliar: maternidade, trabalho, estudo, cuidados familiares, e movimentos necessários à resistência e re-existência. 

Obìnrins e cunhãsda COCAM bordam e são bordadas por suas memórias ancestrais, encruzilhada de significado da escrita-corpa-vida. Desse modo, a peleja passa por corpas indígenas conscientes da importância do acesso e permanência em programas de mestrado. Além disso, algumas dessas corpas sofrem de crises de ansiedade diante dos duros cronogramas da pós-graduação. Ainda no contexto da violência interseccional, por vezes corpas negras mães-trabalhadoras-pesquisadoras negam convites para escrever pelo peso dos diferentes papéis femininos ao corpo negro no trânsito entre academia/mundo do trabalho.

Em meio ao cenário de violência do racismo na universidade terceiro mundista ou do Sul Global, a força intercultural de mulheres negras e indígenas apresenta-se como modo de resistência desde seu significado comunitário. Em que pese a importância da denúncia, as ações de cuidado da COCAM levantam-se frente ao racismo à brasileira na produção acadêmica e em defesa do significado de corpas negras escreviventes, encobertas pela violência interseccional, forças exterminadoras do espírito de saberes afro-indígenas e seus cosmos nas palavras escritas na vida (o cosmicídio). 


Momentos da Roda de Conversa & Entrevista / Arquivo Pessoal - Autoras

Numa dinâmica de confluência, corpas obìnrins e cunhãs na universidade reúnem-se na luta por uma noção de produção científica como espaço em demarcação pelos saberes de quilombo e do território originário5. Nesse sentido, a COCAM convidou Lígia Emanuelle “Azulão” para escrever e passarinhar nesta coluna, que declinou do convite. “Quero muito escrever, mas não sei se darei conta”, disse Lígia.

As mulheres da COCAM tomaram a sabedoria do cuidado de uma Ìyá chamada Dona Lú: “quem quer vai, quem não quer manda” e entrevistaram Lígia, que nos recebeu em sua casa com os pés no chão, em sua conexão de axé. A entrevista expressa uma noção de política de escrita como cuidado ancestral e permanência de saberes.

A seguir, um breve e intenso registro da arte de “Azulão” passarinhando memórias com enaltecimento da narrativa preta.

ENTREVISTA

COCAM: Para começar, a gente gostaria de saber, como mulher negra e a considerar o mundo do trabalho, em que momento da sua vida você percebeu que a arte poderia ser uma profissão ou uma luta?

Lígia Emanuelle “Azulão”: Eu cresci num ambiente onde o meu ser artista era estimulado a todo momento, mesmo sem recurso. Não tinha recurso financeiro para bons materiais, mas meu avô repetia sempre: se existe, crie. Você quer, você faz. As primeiras bonecas que minha mãe teve era de sabugo de milho. Eu tive bonecas, de fato, mas as roupas eram com retalho. Então, o fazer, o saber fazer sempre estava ali comigo, do procurar e fazer. Aprendi a transformar o pouco que tinha e materializar o que eu queria no meu imaginário. Transformar. Eu tive esse recurso – a herança do saber fazer que os meus avós passaram para mim. Assim, costurar, bordar, manusear metal, barro – esses modos de trabalho que trago comigo - eram funções de trabalho dos meus avós e da minha mãe. Vieram para mim como vontade de querer fazer e de me expressar num modo artístico, porque eu sempre pensei fora da minha caixa. No entanto, valorizando muito a “minha caixa”, meu território e de onde eu vim.


COCAM: No dia 20 de novembro, celebramos o Dia Nacional da Consciência Negra. Como você apontaria a discussão desse tema na formação do curso de design?


Lígia Emanuelle “Azulão”: Então, em cursos muito germânicos como o Design [a discussão] foi uma das questões a começar pelo questionamento: porque a escolha do Design? A escolha do design porque eu queria criar coisas para o mundo. Era um dos cursos ofertados próximos [em termos de localização]. No entanto, todas as minhas referências pretas na área foram buscadas pós [formação] ou de forma alternativa dentro do curso. E toda vez que eu tinha que falar, apresentar algum projeto, eu saía, ia para buscar personagens e designs pretos que estavam falando o tema.Quando fui estudar design de moda, optei por apresentar um projeto com referências pretas. Pretas e periféricas. Então, eu fazia essa movimentação de mudar a realidade que não chegava até a mim. Dentro do curso de design faltam sim referências pretas. Mas eu acho que hoje em dia está caminhando porque temos muitos designs pretos na área, levando o nome do Brasil internacionalmente. Tanto em projeto, como as ideias. No momento que eu me encaixo como é na arte e moda, eu estou vendo muito isso estar crescendo. Mas quando eu entrei, todas as minhas referências bibliográficas e de livro eram germânicas. Eram brancos e homens, poucas mulheres também. E muito menos na arte. Tarsila do Amaral e Maria Aparecida ainda são faladas na história da arte contemporânea. Essas mulheres eu vi porque teve uma cadeira [optativa]. Mas fora isso, não sei. 


Ligia junto do seu filho Francisco / Arquivo Pessoal - Ligia Emanuelle


COCAM: Quais os desafios de ser mãe preta, conciliar estudo, trabalho artístico e os cuidados conjuntos? Com a cria, quais os apoios que você tem encontrado? 

Lígia Emanuelle “Azulão”: É luta em cima de batalha.Mas agradeço muito pelas mulheres que eu tenho na minha vida. O meu apoio vem das avós de meu filho, a minha mãe e a avó dele, da parte do pai.O apoio feminino que me permite fazer coisas pontuais [como] trabalhar fora quando eu preciso. Ir para uma cidade. Fazer um trabalho pontual artístico.Ou quando eu fiquei grávida e precisei terminar meu curso. Era assim: minha mãe fazia as combinações comigo. Ela só folgava no dia de quarta-feira. Então eu só escrevia meu nas quartas-feiras. Eu virava as quartas-feiras porque ela só podia ficar [com meu filho] nesse dia. E o bebê, novo. Francisco tinha dois meses. Foi muito difícil.
Não foi fácil. Mas eu tenho meu filho por amor e sou muito agradecida por ele na minha vida. Eu pego essas lutas e batalhas, boto um bolso e sigo assim mesmo. Não é nem romantização. Porque eu não gosto de romantizar essas coisas. Porque não era para a gente [mulher negra] precisar viver assim. Eu não queria ser uma mãe solo. Solo no sentido de toda a responsabilidade de educação de meu filho ser exclusivamente minha. Mesmo tendo uma rede de apoio, que são essas duas outras mulheres [as avós de Francisco], elas ficam sobrecarregadas. Se você pensar que todas as duas trabalham de segunda a sábado. Oito horas por dia. E chega em casa e tem que cuidar de filho de outra pessoa. É outra sobrecarga. Mas elas fazem isso por amor e por pensar: eu quero uma oportunidade melhor para essa outra mãe.

COCAM: Você sente que sua arte é capaz de ultrapassar a fronteira da colonialidade?

Lígia Emanuelle “Azulão”: Acredito que pelo fato [da minha arte] já não ser colonial. Não ser de lógica colonial. Falo desde uma perspectiva preta, real e vivida. Logo, as pessoas que vão se identificar não tem nenhum um distanciamento de significado. Já se identificam porque já faz parte da história. Do entorno.O fato de eu olhar para trás. E trazer muito disso nos meus trabalhos. O meu passado. A questão da memória da minha vivência. Enquanto menina que cresceu no interior.Enquanto filha de agricultores e de mãe que trabalhava na cozinha dos outros. Trazer isso para o meu trabalho. Valorizar a materialidade que eu tenho. Valorizar a terra.Valorizar nas minhas telas. As pinturas da botânica. Dos frutos que são dados aqui. Mas pelo meu olhar, sai dessa lógica colonial: prepotente. Minha avó falava muito sobre essa prepotência. Você diminui o teu alcance de visão quando você é prepotente na tua ideia. Você acaba desfazendo. Não querendo ver o que pode ter por trás daquela porta.
Você não quer ler o que está dentro daquele livro. Então a prepotência. E ela te diminui nessa parte do conhecimento. A gente não tem um conhecimento pleno. Uma verdade só. Interessante. Muito mesmo. 

DICAS DE LEITURA

BISPO DOS SANTOS, A. [Nêgo Bispo]. Colonização, Quilombos: Modos E Significados. Brasília-DF, 2007. 
BONA, D. T. Cosmopoética do refúgio. (Título Original: Cosmopoétiques du réfuge). Belo Horizonte: Editora, Cultura e Barbárie, 2020.
BRITO, Louise; SILVA, Marivaldo Wagner; ACIOLY, Angélica (Orgs.). O Design na prática: vivências e pesquisas aplicadas. Rio Tinto-PB, 2021.

1 - Mulheres Indígena Potiguara, acadêmicas na UFPB/Campus IV, integrantes da COCAM e co-criadoras da entrevista.
2 - Mulheres Negras, acadêmica e professora na UFPB/Campus IV, respectivamente; integrantes da COCAM, co-criadoras da entrevista.
3 - O conceito de escrita-corpas-vidas é defendido por Luz Santos em sua tese de doutorado.
4 - Os termos Obìnrins e cunhãs são utilizados no sentido de feminino em Yorùbá e Tupi, respectivamente.
5 - Por ter integrantes mulheres indígenas Potiguara, neste texto referimo-nos ao território indígena Potiguara.


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Edição: Polyanna Gomes