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INTERNACIONALISMO

Artigo | Em defesa da Palestina

'Estamos assistindo a um genocídio televisionado em tempo real promovido pelo projeto colonial da extrema direita"

Brasil de Fato | Recife (PE) |
"A esquerda tem o dever de colocar a solidariedade à Palestina no centro de sua atuação" - Luciléia Miranda

Nesse exato momento milhares de crianças estão em escombros na Faixa de Gaza. Sob pedras, ferro e concreto jazem milhares de pequenos seres humanos inocentes cujas vidas são tratadas como irrelevantes por boa parte da mídia ocidental. Crianças que há poucos dias provavelmente tentavam driblar a dureza da vida em Gaza com a imaginação infantil, rabiscando o chão com gravetos, sonhando outros mundos possíveis, desenhando-os no terreno agreste da Palestina. Milhares delas hoje já não sonham, nem jamais sonharão. 

As bombas que caem sobre Gaza, disparadas por Israel, mataram, em menos de 20 dias, mais de 2000 mil crianças e deixaram mais de 1000 desaparecidas. Somente entre os dias 22 e 23 de outubro foram mortas, em 24 horas, 100 crianças palestinas. Isso para não falar das que certamente ainda não foram contabilizadas. Além delas mais de 1200 mulheres civis palestinas já foram assassinadas e aproximadamente 50 mil mulheres grávidas encontram-se sem assistência médica. Mais de 200 idosos palestinos foram mortos nos primeiros 17 dias do massacre promovido por Israel. Ao menos 50 famílias foram aniquiladas por completo, entre netos, avos, tios, pais, filhos. Ou seja, perderam-se 50 DNAs humanos. 

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Nesse período já se contam mais de 7 mil mortos na Palestina, no geral. Já são quase 20 mil feridos, entre eles os mutilados. Mais de 47% do total de residências em Gaza foram destruídas e mais de 1 milhão de pessoas tiveram que se deslocar de sua região domiciliar. Nesse período, 11 hospitais e 28 unidades de saúde foram destruídos total ou parcialmente. Dezenas de igrejas, mesquitas, templos e escolas, que servem como abrigo, foram atacados, contra todas as normas internacionais de proteção dos civis em tempos de guerra. 

O povo de Gaza não está a salvo em lugar algum. Está acabando o acesso a água, comida, combustível. Milhões de pessoas fogem sem destino, aterrorizadas pelo Estado de Israel, que age em flagrante desacordo com as leis internacionais.  

A guerra na Ucrânia, condenável - assim como são condenáveis os assassinatos de israelenses pelo Hamas - que comoveu toda a Europa e converteu Putin numa espécie de anticristo, registrou em duas semanas de conflito pouco mais de 1mil civis mortos, vidas igualmente importantes. Mas, por que esse número multiplicado por 5, no caso de vidas árabes palestinas, não comove a ponto de Benjamin Netanyahu ser execrado publicamente? Um político de extrema direita que busca fortalecer-se satisfazendo a sede de vingança de seu público extremista, que não representa todos os israelenses, não é chamado pelo Ocidente por seu nome: criminoso de guerra, responsável direto pela morte indiscriminada de mais de 2 mil crianças e 5 mil civis em duas semanas. 

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Vidas árabes parecem não importar. Por volta de 1 milhão delas foram moídas no Iraque e Afeganistão pelos EUA, e o mundo não só permitiu a invasão e matança estadunidense como assiste inerte a prisão do jornalista que denunciou os crimes de guerra cometidos contra aqueles povos: Julian Assange.

Mais uma vez o cinismo do discurso da “guerra ao terror” é usado pelos EUA para incentivar uma ação militar genocida. Sim, porque a ofensiva do Estado de Israel contra Gaza faz parte do esforço estadunindense para tumultuar o Oeste asiático, recém convertido ao Brics e sob crescente influência da China, notadamente o Irã, a Arábia e o Egito. Está certamente nos planos dos EUA o espalhamento desse conflito pela região, o que pode ocorrer se Israel seguir massacrando os árabes palestinos de Gaza e avançando para a Cisjordânia e o sul do Líbano. Os EUA, em decadência, respondem com guerras nessas zonas em disputa. Fez isso ao fustigar a Ucrania, que agora por ele esquecida, momentaneamente. 

A hipocrisia é sem dúvida o ingrediente principal do macabro banquete de atrocidades do Ocidente. Foi a Europa que exterminou os ameríndios, que colonizou a África, que escravizou milhões de pessoas negras por séculos, que sustentou o apartheid sul africano que provocou duas guerras mundiais. Foi o Ocidente “civilizado” o único a utilizar a bomba atômica. É o mesmo Ocidente que autoriza um Estado, Israel, a invadir por terra um território alheio e promover uma matança indiscriminada de civis. É estúpido o pretexto do direito de autodefesa quando assistimos uma desproporcional resposta que espalha um morticínio criminoso de um povo pobre, mantido acuado, arrasado, indefeso. Quem são mesmo os bárbaros?  

Foi o projeto imperialista da Europa, diga-se, quem criou as bases do conflito histórico entre palestinos e israelenses, quando ainda no final do século XIX, com desenvolvimento mais acentuado nas primeiras décadas do século XX, potencias europeias, que àquela altura repartiam o mundo entre si, notadamente Inglaterra e França, esboçaram o projeto daquilo que viria a ser o Estado de Israel. A região da palestina foi, até 1947, protetorado da Inglaterra, que insistiu em diminuir a força árabe na região com a criação de um Estado para Israel, bem ali, onde milhões de palestinos viviam há séculos e séculos. O projeto imperial do Ocidente está, portanto, na raiz do problema. 

No final da década de 1940 70% da população que ocupava aquelas terras não era judaica, e possuía 90% do território. Com a partilha da região pela ONU, imposta pelas potências da época, inclusive pela União Soviética, registre-se, esses passaram a ter somente 44% do território, e a minoria de 30% judeus enormes 56%. Começa aí o martírio palestino. Entre 1947 e 1948 mais de 250 mil árabes foram expulsos de suas terras ou mortos. Aliás, a esmagadora maioria da população atual de Gaza é composta por herdeiros dessa diáspora. Vivem cercados por muros que os separam de sua própria terra. 

À medida que as décadas foram passando o Estado de Israel foi tomando mais e mais partes do território palestino, notadamente após sucessivas vitorias em conflitos contra árabes, como a guerra dos 6 dias, em 1967. A determinação da ONU, que ao criar o Estado Israelense reservava 46% do território à criação do Estado palestino nunca foi cumprida. Ao contrário, os palestinos foram perdendo terras. Uma última tentativa veio com o acordo de Oslo, na década de 1990, que estabelecia a criação de um Estado para a Palestina no correr de 5 anos. Israel há mais de 6 décadas descumpre sucessivamente mandatos da ONU sem que recaia sobre si qualquer tipo de punição. 

No início da década de 2000 a opressão sobre o povo palestino, que foi se espremendo nos pequenos territórios da Cisjordânia e de Gaza, recrudesceu. Foi nesse contexto que grupos  radicais como o Hamas ganharam força, pregando revoltas armadas contra o domínio opressivo de Israel, até chegar ao poder em Gaza em 2005. A partir desse ano e até aqui, como resposta, o Estado israelense promoveu um brutal bloqueio à região, penalizando todos os palestinos. 


A única solução de paz, agora mais evidente que nunca, é a devolução dos direitos dos palestinos / Gabriela Moncau

Quase tudo que entra e sai ali é controlado há 18 anos por Israel. As mais de 2 milhões de pessoas que vivem na Faixa de Gaza tem acesso a somente 4 horas médias de energia elétrica por dia. Os palestinos têm limite de acesso a água e alimentação mesmo em períodos sem guerra, dependendo de ajudas humanitárias da ONU. Mais de 80% não tem acesso a saneamento básico e 56% estão desempregados. Durante a pandemia da COVID o Estado israelense foi acusado de dificultar o acesso a vacinas para palestinos, enquanto milhões de israelenses já haviam se vacinado. 

Israel controla todas as saídas de Gaza por terra, mar e ar, e proibiu a construção de um porto palestino, bem como restringe inclusive atividades de pesca no litoral de Gaza. Mais de 90% das pessoas com até 17 anos, ou seja, uma geração de jovens palestinos nunca saiu de Gaza. Trata-se, como disse com todas as letras a própria ONU em relatório do início desse ano, de uma verdadeira “prisão a céu aberto”. 

É a Palestina que precisa ser defendida. É o Estado de Israel quem está, nesse momento, cometendo flagrantes crimes de guerra, matando mais de 500 pessoas por dia, valendo-se do momento para buscar uma nova expansão sobre o território palestino, dessa vez com uma brutalidade acentuada. Estamos assistindo a um genocídio televisionado em tempo real promovido pelo projeto colonial da extrema direita de Israel, liderada por Netanyahu, que mantém 2 milhões de pessoas reféns em Gaza. O mundo ocidental, com valiosas exceções, entre elas a política externa brasileira, parece preferir apoiar uma elite política extremista sanguinária a proteger um povo oprimido e seu direito à terra, à vida, à liberdade e dignidade. 

A solidão palestina, no entanto, parece estar diminuindo, dado o aumento da adesão de pessoas à causa desse povo mundo afora, comovidas pelo agora bem mais visível crime de décadas contra sua população. Se em Gaza há muros levantados por Israel, parece que no mundo das pessoas comuns, em protestos ao redor do globo, a linha de fronteira se rompeu, e o isolamento dá lugar a cada vez mais solidariedade.

A única solução de paz, agora mais evidente que nunca, é a devolução dos direitos dos palestinos, seja na constituição de seu próprio Estado, seja na formação de um Estado plurinacional com igual direito de cidadania entre palestinos e israelenses. Mas de imediato, para já, é preciso deter o morticínio e defender o imediato cessar fogo.  

Pelas milhares de crianças que jazem em escombros e pelos milhões de homens e mulheres indefesas vítimas das bombas de Israel, precisamos romper o isolamento palestino e livrá-los da solidão que os ronda há décadas. A esquerda tem o dever de colocar a solidariedade à Palestina no centro de sua atuação. Uma vitória total da extrema direita de Israel significaria o perigosíssimo triunfo do colonialismo e da legitimação do genocídio, em detrimento de valores caros à humanidade. Se militarmente é improvável fazer recuar o consorcio Israel-EUA agora, que ajudemos a mobilizar politicamente o mundo em torno da denúncia da carnificina injustificável que essa associação perversa promove.  

Hoje, mais do que nunca, a Palestina somos todos nós.  

Pedro Alcântara é doutor em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

 

Edição: Vanessa Gonzaga