Rio Grande do Sul

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O Estado mínimo é pesado demais

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"Recentemente, algumas cidades do Rio Grande do Sul foram assoladas por uma grande tragédia climática. A ação do Estado e a quantidade de recursos alocados é imensa. Será que o mercado teria condições de atender a população da mesma forma que o Estado?" - Foto: Jorge Leão
A ausência do Estado representa apenas a garantia de barbárie, caos e lei do mais forte

O discurso predominante entre os neoliberais e os ultraliberais é de que o Estado social é muito pesado, que pagamos muitos impostos, que os gastos precisam ser cortados e os serviços públicos são ineficientes.  

Esse discurso ganhou destaque, recentemente, com as notícias sobre a votação expressiva, nas prévias eleitorais da Argentina, obtida pelo candidato de extrema direita, Javier Milei, que se autodeclara anarcocapitalista e que rejeita tudo o que é público, defende a liberdade total para o mercado e o incondicional direito de propriedade, chegando ao ponto de defender até mesmo o comércio de órgãos humanos.

No Brasil, defensores dessa corrente ocuparam pontos chaves na estrutura do Estado, no governo anterior, cuja premissa anunciada era de que o Brasil estava à venda. A privatização dos bens e serviços públicos passou a ser a orientação principal daquele governo, a ponto de ter sido criada uma Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, com a orientação de retirar o Estado de tudo o que pudesse interessar ao mercado.

:: Não se engane! Sem tributos, é você quem perde ::

A pequena cidade de Grafton, no nordeste dos EUA, é um bom exemplo do que acontece com a ausência do Estado, que ganhou repercussão na mídia com a publicação do livro “A Libertarian Walk Into a Bear”, do jornalista Matthew Hongoltz-Hetling. O autor narra o fracasso do experimento libertário que se instalou naquela comunidade no início dos anos 2000, onde, cerca de 200 libertários, a maioria eram homens brancos, solteiros e defensores da posse de armas, se mudaram para aquela pequena cidade e passaram a controlar a política local, colocando em prática um experimento de organização social pautada na liberdade individual e na redução do Estado.

A alusão aos ursos no título do livro se deve ao fato de que a inexistência de regras mínimas de segurança e de higiene acabou colocando a comunidade inteira sob ameaça constante de ataques de ursos-negros, a partir de 2012. Dez anos depois do início do experimento, as estradas de Grafton já estavam totalmente esburacadas, a iluminação pública e a coleta de lixo praticamente sumiram, o policiamento foi reduzido e houve um enorme aumento na criminalidade.

O liberalismo clássico defende que o Estado deve ser mínimo e atuar apenas como vigilante e regulador. Para os mais radicais, mesmo sendo mínimo, o Estado é sempre opressor, ou seja, é o inimigo que precisa ser eliminado. O anarcocapitalismo é a expressão dessa corrente mais radical do libertarismo.

Por traz das campanhas contra os tributos que temos no Brasil, são comuns os discursos desse tipo, de que o Estado é ineficiente e muito pesado para os indivíduos e que o mercado seria muito mais eficiente em fornecer serviços essenciais de que as pessoas necessitam. Em outras palavras, eles dizem que se o dinheiro dos impostos fosse usado para adquirir no mercado os mesmos serviços que o Estado fornece as pessoas viveriam muito melhor e esse é um argumento sedutor, se não fosse absolutamente falso.

:: Gastar ou não gastar? Eis a questão ::

Por um lado, a história de Grafton nos mostra que, na ausência do Estado, as condições de vida comunitária se degradam substancialmente e as pessoas passam a viver em constante situação de riscos. Por outro lado, diversas sociedades mais organizadas, com Estados bem estruturados e com ampla proteção social nos mostram que as políticas públicas são determinantes para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, assim como para promover o desenvolvimento econômico.

Os argumentos por trás destas ideias não se sustentam. Primeiro, porque não há dicotomia entre Estado e liberdade, aliás, o Estado social é a própria garantia da liberdade, pois ninguém é livre passando fome, sem ter acesso à moradia, à saúde ou tendo sua vida em permanente situação de risco. A garantia de acesso aos serviços essenciais é forma de igualar as oportunidades, sem as quais não há liberdade substantiva. Por outro lado, necessidades não atendidas são fatores de rebaixamento dos custos do trabalho e de aumento de lucros.

A segunda questão é matemática. Não há dúvida de que tudo o que é coletivo, cooperativo e comunitário tende a ser muito mais barato. O rateio de despesas para financiar bens de uso comum é a forma mais eficiente de garantir o acesso a tais bens. Isso fica muito claro quando analisamos os custos das políticas públicas e os benefícios que tais políticas proporcionam às pessoas.

O argumento de que o mercado seria mais eficiente do que o Estado na prestação dos serviços é totalmente falho. Primeiro, porque o tributo pago não tem relação com o serviço recebido do Estado tal como o preço tem relação direta com o serviço ou a mercadoria, adquiridos. O tributo tem relação, ou deveria ter, com a capacidade contributiva de quem paga, enquanto os serviços, com as necessidades de cada um.

Ainda que na essência sejam coisas distintas, os números demonstram a falácia daqueles argumentos. A metade da população brasileira vive com renda percapita de aproximadamente R$ 500,00, por mês, ou seja, uma renda familiar de aproximadamente R$ 2.000,00. Se essa família fosse onerada com 40% de tributos, pagaria cerca de R$ 800,00, por mês, e, não há dúvida, de que essa seria uma carga tributária bastante alta, relativamente à renda desta família, principalmente porque os mais ricos, no Brasil, pagam muito menos.

:: “O Estado mínimo mata e isso que os dados da pesquisa demonstram”, afirma Giovane Scherer ::

No entanto, tendo, essa família, duas crianças em idade escolar, ela recebe do Estado um investimento de cerca de R$ 750,00, que corresponde ao custo por aluno na escola pública multiplicado por dois. No SUS, são investidos cerca de R$ 130,00 por pessoa, a cada mês, ou seja, são R$ 520,00, para quatro pessoas. Além disso, no valor total dos tributos, há a contribuição previdenciária, que financia a aposentadoria para os trabalhadores, ou algum benefício por acidente de trabalho ou por doença.

Vejam que, somente em relação à educação e à saúde, essa família recebe do Estado investimentos de R$ 1.270,00, por mês. Será que com os R$ 800,00 pagos de tributos, ela conseguiria no mercado serviços equivalentes ou melhores de educação e saúde? Obviamente que não. O Estado mínimo é muito caro para quem é pobre. 

Além desses serviços que podem ser quantificados, há inúmeros outros que normalmente não são sequer considerados pelos ultraliberais em sua defesa do Estado mínimo. Um estudo realizado pelo IPEA revela que, em 2014, o custo público médio produzido por cada acidente de trânsito no Brasil foi de aproximadamente R$ 261 mil, podendo chegar a R$ 665 mil, quando tinha vítimas fatais (IPEA – Texto para Discussão 2565 (2020) - custos dos acidentes de trânsito no Brasil: estimativa simplificada com base na atualização das pesquisas do IPEA sobre custos de acidentes nos aglomerados urbanos e rodovias). Sem tributos e sem Estado organizado, quem bancaria esses custos?  

Recentemente, algumas cidades do Rio Grande do Sul foram assoladas por uma grande tragédia climática. Chuvas acima da média produziram enchentes e enormes destruições, com cidades inteiras debaixo d’água, 47 pessoas morreram e centenas de outras estão em situação de calamidade. A ação do Estado e a quantidade de recursos alocados é imensa. Toda a estrutura de serviços públicos é mobilizada e colocada à disposição das comunidades e essa é a única forma de garantir socorro, atendimento, alimentação, medicamentos, assim como, as condições mínimas para que as pessoas possam reorganizar as suas vidas, depois de tantas perdas. O governo federal anunciou a disponibilização de R$ 741 milhões para regiões afetadas pela enchente no RS. Será que o mercado teria condições de atender a população da mesma forma que o Estado?

Outro dado importante: quase 200 mil pessoas no Brasil necessitam de tratamento renal continuado, com seções semanais de diálise e de hemodiálise. O gasto médio anual por paciente é de aproximadamente R$ 35 mil, que corresponde a quase R$ 3 mil por mês, por pessoa. Será que, com o valor pago de tributos, o mercado daria conta de atender toda essa demanda de saúde? Um transplante renal tem um custo que pode variar de R$ 4 mil a R$ 70 mil e mais de 90% dos transplantes são feitos pelo SUS.

Portanto, assim como na pequena cidade de Grafton, aqui e em qualquer outro lugar do planeta, a ausência do Estado representa apenas a garantia de barbárie, caos e lei do mais forte. Para a imensa maioria da população, o Estado mínimo é muito pesado para ser carregado. O Estado social é bem mais leve.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.   

Edição: Katia Marko