Paraíba

Coluna

João Balula, presente: história afro-paraibana

João Balula (1959-2008). - Reprodução Centro de Referência da Igualdade Racial/PB.
João Balula tinha a percepção de que a luta estava apenas começando [...]: "Exija respeito".

Por Elio Flores*
 

Áfricas e amores, bens de tua herança
Flores na ponta da lança
Orixás nos céus e cá na terra os meus
Clamam tua lembrança.
É JOÃO BALULA!!!
Adeildo Vieira, CD África de Mim, 2016.

 

João Silva Carvalho Filho − João Balula nasceu em Pombal, no sertão paraibano, no ano de 1959. Faleceu em João Pessoa, em 21 de fevereiro de 2008. “Balula morreu: viva Balula” é o título de um artigo do jornalista e ativista do movimento negro Dalmo Oliveira, editor do blog Direto do Sanhauá, publicado no dia 13 de abril de 2008, em que narra a doença, as dificuldades finais, o hospital indigno, a amizade, o protagonismo de uma liderança negra e as primeiras homenagens depois de sua morte.

A trajetória de João Balula é multifacetada e pode-se ler no texto visceral de Dalmo: “Balula como agitador cultural dos guetos, periferias e espaços alternativos marginalizados da cultura popular local”; e, na mesma visada, “Balula o típico intelectual orgânico gramsciano (...) que se valia de instrumentais alternativos, como intuição, improviso e atos anticonvencionais”. 1

Nesse artigo, pretendeu-se trazer alguns escritos, falas e posições políticas de João Balula, a partir do movimento negro paraibano, do qual foi um dos fundadores. Os documentos aqui citados, apresentados e destacados faziam parte do acervo digital do MNPB − www.movimentonegropb.vilabol.uol.com.br – que infelizmente não está mais disponível na WEB. O que se preservou consta na obra, resultado da pesquisa coletiva, Africanidades Paraibanas (2011).

O Movimento Negro da Paraíba, especialmente em João Pessoa, começou a se organizar a partir de 1979 e, por cerca de dez anos, uma geração de mulheres e homens agitou a cidade em defesa dos direitos da população negra e do combate ao racismo.

Na sua dissertação de mestrado em educação, a professora, pesquisadora e ativista Socorro Pimentel sugere que Vandinho, Tutu, João Balula, Regina Santos, Raquel, Socorro Freitas, Nicinha de Carvalho, Paula Frassinete e outras estavam impregnadas do “fervor do Recife” cujo movimento negro foi, desde o início, de expressão nacional e, quando retornavam de algum encontro na capital de Pernambuco, vinham com uma determinação: “fundar um movimento negro na cidade”.

Não aconteceu em setembro de 1979, mas nalgum momento de 1980, “com a negritude na ponta da língua” e o aumento de integrantes nas reuniões semanais, as coisas foram acontecendo: “Era o tempo certo das coisas, pois já se tinha fugido demais das responsabilidades que eram nossas: o pessoal de João Pessoa já tinha participado de tudo quanto era reunião, como observador, já tinha tarimba suficiente, e também o pessoal do Recife já estava cansado da nossa observação... Não havia mais do que fugir: era assumir, e assumimos!”.

Assim, foi fundado o Movimento Negro de João Pessoa – MNJP que teria de enfrentar a primeira polêmica da branquitude em provocação nada inocente: “pra que Movimento Negro, se não existe um Movimento Branco?, vocês estão querendo refazer um racismo − às avessas... coisas assim as pessoas nos diziam”, anotou Socorro Pimentel ao historiar o seu próprio protagonismo.

Um ano depois, Tânia Correia em dissertação no campo da ciência da informação, também problematiza da mesma maneira a relação entre o movimento negro da Paraíba e o de Pernambuco. Assim ela afirma: “O Movimento Negro de João Pessoa/MNJP-PB nasceu posteriormente à criação do MNU-Recife (Movimento Negro Unificado criado em 1978), em 1980 a partir da vontade existente entre negras e negros paraibanos em criarem um grupo de militância negra na Paraíba. [...] Os motivos que levaram à fundação do Movimento Negro na Paraíba foram [...] a discriminação [...] a necessidade de informação sobre o racismo junto aos negros paraibanos e a pressão por parte dos negros do Recife para se criar na Paraíba um Movimento Negro com as mesmas estruturas do MNU – Recife”.

Ainda segundo a autora, “as práticas informacionais” do MNJP-PB permitiram traçar a caracterização dos seus integrantes nos quesitos “geração, recepção e transferência de informação”. Os principais canais de informação utilizados foram “os relatórios, os panfletos e as oficinas”.
Arte de abertura do site do MNPB, hoje fora da WEB. / Arquivo Pessoa

Essa prática comunicativa poderia ser visualizada no site da entidade, infelizmente não mais conectável, a partir de uma memória como essa, o movimento negro por ele mesmo. Nesse caso, afigura-se como um manifesto afro-paraibano no contexto do final do século XX. Trata-se de um registro textual, comunicativo e histórico:

Existimos desde 1979. Surgimos da necessidade de lutar em prol dos Direitos do Povo Negro e ajudar a sociedade a acabar com o racismo no Estado da Paraíba. Nascemos com o nome de Movimento Negro de João Pessoa - MNJP, existindo assim por mais de dez anos. O MNJP, enquanto primeiro grupo organizado que lidava com a questão dos negros, gerou diversas outras organizações do nosso Estado (grupos de estudos/pesquisa, grupos de dança, música, religiosidade, formação política, etc.).

Em 1990, ano em que o MNJP findou-se, esses diversos grupos gerados, seguiram atuando sem "direção'; até que no ano seguinte criou-se uma "entidade-mãe"; para congregar as demais, que se ressentiam de estarem dispersas e/ou cada um na sua. As conversas, reuniões e encontros foram acontecendo e somente ao final de 1996 é que resolvemos, de fato, nos sentar e deliberar, oficialmente, a criação desse organismo tão desejado por todos. Dois anos de avaliação foram necessários para que, em 17 de abril de 1999, numa reunião em João Pessoa-PB, fundássemos o atual Movimento Negro da Paraíba (MNPB).

Outro modelo comunicativo são os “PEQUENOS EXERCÍCIOS DE LIBERDADE PARA UMA PESSOA NEGRA DE TENRA IDADE (Ou, para negros e negras ainda inconscientes!)”, de autoria de Vandinho Carvalho e João Balula. Aqui se juntam reflexões sobre o racismo, poema de posição da negritude e manifesto de consciência negra. Vejamos essa extraordinária prática informacional:

E X E R C Í C I O S  P A R A  N E G R O S,

SOU NEGRO(a),
E ÀS VEZES NEGO ISSO: 
POR QUE SERÁ ???
(Vandinho de Carvalho)

 

PEQUENOS EXERCÍCIOS DE LIBERDADE PARA UMA PESSOA NEGRA DE TENRA IDADE
(Ou, para negros e negras ainda inconscientes!)

Realização: 
MOVIMENTO DE AÇÃO-NEGRA
M O V A N E - Coordenação Operacional - 1999 - Xangô.


Apresentação
I
Dierzo Kidanza -
Simbala...
Fala:
Porque quando negro(a) cala
A vida custa a mudar!

II
Dierzo Kidanza -
Simbora...
Pega na luta e vambora.
Pois Negro(a) se não labuta
A puta da vida esfola!

III
Dierzo Kidanza -
Pretume...
Negro(a) com Negro(a), te une
Que a guerra aqui é discreta.
Negro(a) te apruma!
- Desperta !!!
(Poema de João Balula/1985)

 

CRIOULO, MORENO, PRETINHO, MARROM... NEGRO! Nem você sabe a cor que tem!? Não é que VOCÊ não saiba, exatamente... Bom, você tem certeza absoluta que NÃO É BRANCO ! Mas, você não quer ser NEGRO, né!? Você tem medo de encarar você mesmo(a) de frente... Tem horror de se ver assim como é! Ainda sobram aquelas pessoas chatas, que vivem dizendo-lhe: - "negro é aquilo", negro é isto"...

Que cor você gostaria de ter? Branca? Nem pensar... você é negro (a)!... Todo mundo lhe engana quando diz que você é moreno(a), pretinho(a), crioulo(a), marrom ou coisa parecida - quando têm raiva de você; aí reconhecem que VOCE É NEGRO(A), e, tome xingação!!! Exija respeito. Você precisa gostar de você mesmo(a). Corte o mal pela raiz!!! Faça todos saberem que você é NEGRO(A). Só assim acaba essa confusão na sua cabeça.

Por incrível que pareça esses tempos de combate contra o racismo ainda estão na ordem do dia, pois o racismo recrudesceu depois de 2013. João Balula tinha a percepção de que a luta estava apenas começando quando clamava para a população negra: “Exija respeito”. Por último visualizamos o enfrentamento textual, “um recado contra o racismo”, onde João Balula se coloca frente às posições cotidianas da branquitude em relação à pessoa negra e à sua dignidade humana. A dimensão da ancestralidade, da história e cultura negras são aqui uma construção política para o que ainda estamos passando, depois do empoderamento da extrema direita bolsonarista.

UM RECADO CONTRA O RACISMO (João Balula)

            Não espere dos Negros e Negras que estes mudem a sua maneira de encarar o mundo , se você nãomudou a sua maneira de encarar o Povo Negro!

            Não exija dos Negros e Negras que estes sejam "dóceis"; "servís", "pacatos"; ou "coniventes"; com as coisas do seu mundo, se as suas atitudes para com o Povo Negro são de preconceito, de discriminação e de racismo!

            Não queira que Negros e Negras digam "sim";, enquanto você lhes diz "não"; - em todas as coisasque almejam para as suas vidas!

            ZUMBI DOS PALMARES nos deu esta CONSCIÊNCIA NEGRA: você não vai querer que a gente desista de tudo, somente porque você não gosta de Negros!!! Isto é um problema seu!
            Nossa NEGRITUDE é a base do sentimento e do desejo de humanidade. Mas você prefere acreditar que somos os responsáveis pelas mazelas do mundo...

            Não precisamos que você seja "como nós": temos tantas felicidades, com a nossa Negritude, que podemos até dividi-las com você, na hora em que precisar!

            Antes de querer que a gente fique "do seu jeito";, lembre-se que desde o começo da humanidade temos o nosso próprio jeito de ser! E isto não é um problema seu...!

O MNJP-PB participou do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste, realizado no Recife, de 29 a 31 de julho de 1988. Dentre os onze participantes de João Pessoa, João Balula estava lá. 2 O jornal NÊGO, do MNU, na edição de abril de 1988, coluna Aconteceu/Vai acontecer publicou informes sobre o evento, cujo tema seria “O negro e a educação”.

A notícia elencava o temário com seis grandes assuntos: “1. Educação colonizada x educação para a liberdade. 1.1. O negro e a evasão escolar. 1.2. O processo psicopedagógico e seus efeitos sobre o afro-brasileiro. 1.3. O papel do professor na descolonização do ensino. 1.4. Participação do afro-brasileiro na renda educacional.

2. Aprendizagem pela prática cultural. 2.1. Experiências de auto- aprendizagem em comunidades negras. 3. O Racismo no livro didático. 4. A literatura infantil. 5. Introdução da História da África e do afro-brasileiro nos currículos escolares. 5.1. Introdução da língua africana no currículo escolar. 5.2. Sobrevivências linguísticas africanas no vocabulário regional. 6. Participação do Movimento Negro na formação de núcleos afro-brasileiros nas instituições de ensino” (NÊGO, 14, 1988).

Trata-se de um programa de estudos atualíssimo, trinta e cinco anos depois. Teorias e pensamentos decoloniais, descoloniais e coisas tais não deveriam ser, portanto, nenhuma novidade para a branquitude dos trópicos. Ocorre que essa branquitude, ainda totalmente eurocêntrica, não acessa os acervos, os documentos e o vernáculo negros. Lembremos de uma metáfora racial, mais do que cruel, em termos de currículos na educação brasileira: a tartaruga branca é lenta e severa!

João Balula estava lá, debatendo no grupo “Literatura Infantil e Valores Ideológicos”. Os Anais do evento, publicados no mesmo ano, coroam décadas de propostas e resoluções que impactaram o que se fez (e se faz) e o que se deixou de fazer num período importante para os movimentos negros, as governanças petistas (2003-2016). João Balula testemunhou, em 1988, que o MNJP/PB estava “fazendo um trabalho com história em quadrinho”.

Nos debates, a tônica era colocar nos currículos a história da África e do negro no Brasil e, com isso, a reestruturação do ensino. João Balula enceta outra intervenção na dimensão política do processo racial: “A contribuição seria criar formas alternativas. Mas se nós investimos na legalidade desse País, vamos até conseguir reformular.

Na Paraíba a gente tem reformulado o ensino, só não conseguimos tocar num ponto, que é para onde vai o dinheiro desse País, porque os instrumentos racistas, autoritários, retrógados não permitem que coloquemos as perguntas para onde a gente vai enquanto povo, enquanto raça e não enquanto fantoche” (Anais... MNU-PE, 1988).

João Balula, Presente!


PARA SABER MAIS

CORREIA, Tânia Maria da Silva. Lemba Odu: práticas informacionais no contexto do Movimento Negro de João Pessoa-PB. Dissertação (Mestrado em Ciência da
Informação) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1999.

MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO/PE. Anais do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste: o negro e a educação. Recife, de 29 a 31 de julho de 1988. Recife:
MNU/PE; Escola Maria da Conceição, 1988.

PIMENTEL, Maria do Socorro. A identidade dos trabalhadores negros na realidade educacional paraibana. Dissertação (Mestrado em Educação/Centro de Educação) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1998.

NOTAS

1 Dalmo Oliveira. Balula morreu: viva Balula! In: Direto do Sanhauá, dom, 13 de abril de 2008.http://diretodosanhaua.blogspot.com/2008/04/balula-morreu-viva-balula.html

2 Além da João Balula, na lista do MNJP/PB constam mais dez ativistas: Breno Correia da Silva, Edna Nascimento, Gilvando dos Santos Carvalho, Josiana Francisca da Silva, Lúcia Helena do Nascimento Luna, Marcos Antonio B. da Silva, Maria José da Silva, Maria do Socorro Freitas, Maria do Socorro J. dos Santos, Paula Frassinete Lins Duarte (ANAIS... MNU/PE, 1988, p. 190-91).

* Professor titular aposentado da UFPB. Pesquisador do NEABI/CCHLA/UFPB.

 


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Edição: Heloisa de Sousa