Paraíba

ARTIGO

A morte de mulheres singulares no jornalismo moralista brasileiro

Jornalismo da Folha de S. Paulo apropria-se de valores morais para realizar o julgamento midiático pós-morte de mulheres

Brasil de Fato PB| João Pessoa |
Jornalista Glória Maria, as cantoras Rita Lee e Sinéad O'Connor, e a atriz Aracy Balabanian - César Alves; Guilherme Samora; David Corio; Isabella Pinheiro

No jornalismo, a polêmica, a controvérsia, o negativo e o sensacionalismo sempre foram elementos fundamentais para acrescer interesse ao fato e a alçá-lo como notícia. Os títulos compõem um papel essencial nessa construção. Segundo os manuais de redação, este não pode entregar toda a informação de uma vez, mas deve ser atraente o suficiente para atiçar a curiosidade do leitor. 

Se comparado a outros eventos, o anúncio da morte de uma personalidade não precisa de tantos malabarismos. Entretanto, plataformas de comunicação como a Folha de S. Paulo têm um modelo próprio de reportá-la. O exercício para identificar esse padrão não é tão complexo. Basta pesquisar os mais recentes falecimentos e observar as disparidades. Logo, suspeitará que há uma ética jornalística que oscila conforme o gênero da personagem e se esta seguiu ou não um suposto código da moral e dos bons costumes.

Este código dita, por exemplo, que um homem morre como “grande” e que sua obra é “célebre”, como ocorreu como o diretor teatral Aderbal Freire Filho. Nos títulos, para o sexo masculino não faltam superlativos que os descrevam como revolucionários ou que marquem o seu valor na história das artes, da escrita ou da política, seja no Brasil ou no mundo. 

Quanto às mulheres, a Folha permite uma distinção. Se esta não transgrediu, em algum momento de sua vida, o padrão feminino da sociedade patriarcal – como o casamento e a maternidade –, é possível que as manchetes louvem a sua trajetória e o seu papel na família. No entanto, caso pertença ao segundo grupo, a chamada de seu obituário listará supostas “violações” de artigos desse código de conduta moral.

É óbvio que esse dispositivo legalmente não existe, mas o jornalismo da Folha apropria-se dos valores morais nos quais a sociedade brasileira ainda se fundamenta para realizar o julgamento midiático pós-morte de mulheres. Com a jornalista Glória Maria, endossou, por exemplo, o etarismo de um “fazia de tudo para esconder a idade". Para as cantoras Rita Lee e Sinéad O'Connor reservou a instabilidade e os vícios com um "se deixou guiar por drogas e discos voadores" e "foi casada por 18 dias em 2011 e se separou por causa de maconha", respectivamente. Para a atriz Aracy Balabanian, que dedicou a vida ao trabalho, a Folha preparou a narrativa do não-vivido em "fez aborto, não casou nem teve filhos”.

Personagens femininas com uma história que caminha de encontro às convenções sociais e aos papéis impostos às mulheres são o que o biógrafo Lira Neto chama de “indivíduos singulares”. São justamente estes percursos de vida atípicos e que fogem do padrão que despertam o interesse de escritores e leitores. A finalidade de tais narrativas de não-ficção não é apresentar o biografado como um ser imaculado, nem focar apenas em suas contradições, mas sim compreendê-los em conjunto com todos estes elementos. 

Entretanto, o recorte dos títulos das matérias da Folha revela mais de uma ética própria do veículo nas quais foram publicadas e dos valores sociais da sociedade na qual se contextualizam do que da narrativa de dubiedade que propuseram impor sobre as escolhas de vida das mulheres mortas. Nestas peças, os jornalistas atuam como moralistas e não como narradores, como descreve o biógrafo Sidney Lee.

Há, porém, outro fator, além do machismo e da misoginia. No ambiente digital no qual as matérias foram postadas, termos como “drogas” e “aborto” não foram acidentalmente escolhidos. Ambos são conhecidos como pautas de costume que geram polarização e, logicamente, acessos, tanto do público conservador, quanto daqueles de perfil mais progressista. Seja para o aplauso ou apedrejamento do jornal e das personagens em destaque, a polêmica resulta em assinantes e compartilhamentos. Nesta era do online e da reação instantânea, ao que parece, o engajamento é uma política editorial chave e, como descreve Caio Túlio Costa, a interatividade é rainha. 

Este é um caminho preocupante para o jornalismo no qual machismo, misoginia, etarismo e gordofobia – só para mencionar algumas das formas de discriminação –, foram elevados à categoria de “valores-notícias”. Segundo a jornalista Marina Amaral, este é o perfil das empresas de comunicação com compromisso de agenda de mercado que têm, entre outras características de cobertura, a meritocracia, a redução de direitos trabalhistas e a marginalização e/ou a criminalização de movimentos sociais. Conteúdos com tais abordagens representam o alinhamento da maior parcela de seus assinantes.

Neste cenário, o curioso é que o engajamento tão buscado pelos veículos de comunicação é também uma arma contra eles mesmos. Veja o exemplo da reação do público no caso dos títulos e chamadas das publicações sobre as personalidades femininas mortas. Alguns foram, inclusive, alterados após as manifestações críticas da audiência heterogênea que alcançam nas plataformas virtuais. Esse é precisamente o primeiro passo de mudança: a pressão social por outros modos de enquadramento de sujeitos e grupos. 

Conforme dois teóricos da comunicação, Luís Mauro Sá Martino e Ângela Marques, os meios de comunicação e as redes sociais digitais podem construir representações positivas e negativas de qualquer assunto ou pessoa. Segundo eles, a sociedade deve apontar caminhamos para uma melhor construção de identidades individuais e coletivas em vez de depreciar e estigmatizar. A reação do público às matérias sobre Glória Maria, Rita Lee, Aracy Balabanian e Marília Mendonça, por exemplo, refletem essa postura. 

O segundo aspecto se refere aos jornalistas e as empresas jornalísticas em si. É necessário compreender que o impacto de uma reportagem ou notícia é a recompensa do jornalista, não o número de acessos. Esse impacto é medido na construção de relações de empatia, de solidariedade, de memória, de transformação social e na geração de debates que interessem a coletividade. Nestes objetivos residem a verdadeira ética da comunicação. O sensacionalismo, o machismo e a misoginia exercido pelas próprias mídias e jornalistas não cumprem esse papel.



*Marcella Machado é Jornalista e mestre em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Tem experiência como assessora de imprensa, repórter e pesquisadora de mídia nas áreas climática-ambiental e de narrativas de vida.
 

Edição: Polyanna Gomes