Paraíba

ARTIGO

Mulheres Negras e o Aquilombar Feminino em tempos pandêmicos: violências e lutas pelo Bem Viver

"Historicamente, vidas de mulheres negras passam por um infindável enfrentamento de desigualdades e luta pelo bem viver"

Brasil de Fato PB| João Pessoa |
"A política da morte construiu suas bases no sistema escravista brasileiro e prolongou-se em tempos de Covid 19" - Divulgação - Freepik.com/Donna Hovey

Por Sarah Daniel*

"Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer". Conceição Evaristo (escritora, 2008)

Se durante a pandemia da Covid-19, houve uma intensidade das violências e das desigualdades sociais/classe e raça, conforme as seculares estruturas do Brasil, houve também resistência e resiliência de mulheres Negras que se aquilombaram para diminuir sofrimentos, e mais uma vez, em 2023, no mês internacional das Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, as lutas sociais estão em destaque em variados espaços sociais e com esforços coletivos confrontando as variadas formas de violência, em busca de reparações e pelo Bem Viver.

Em maio de 2023, a Organização Mundial da Saúde declarou o “fim da emergência de saúde pública da pandemia da Covid 19” em todo o mundo. Entretanto, o flagelo global, deixou marcas de sofrimento e de perdas na população em geral. Em se tratando de mulheres Negras brasileiras, as ligações entre violência e a referida crise sanitária e humanitária alcançaram-nas de forma diferenciada e negativa, uma vez que ocorreu aumento expressivo de violências domésticas, institucionais, pobreza e da exposição à morte. 

Dados oficiais a respeito do impacto da Covid 19/Coronavírus (SARS-CoV-2) no Brasil nos informam que foram mais de 30.460.997 casos confirmados de pessoas com o referido vírus e 663.838 indivíduos mortos, numa população de cerca de 205  milhões de habitantes no país, situando-se no sétimo lugar na esfera global com a perda de vidas humanas mais. estudos mostram ainda que a população Negra e as mulheres vinculadas a tal grupo foram as mais prejudicadas durante o tempo pandêmico.

Nesse sentido, em mês de rememorar as lutas sociais de mulheres Negras da América Latina e do Caribe, exponho algumas estatísticas de violências e maneiras de como essas mulheres enfrentaram, individual e coletivamente, um dos períodos que mais causou sofrimento humano com o crescimento da desigualdade social, da pobreza e da discriminações na atualidade. 

Intensificação da violência doméstica e racial no período pandêmico**

As medidas para evitar a propagação do vírus da Covid 19, com a orientação oficial, a exemplo de confinamento e distanciamento social, ocasionou o aumento de violência domésticas, pois maridos e/ou ex-parceiros violentos exerceram ações contra as mulheres, desde agressões físicas, psicológicas até sexual. As estatísticas*** nos dão mostra das opressões: em cada 8 minutos, durante a pandemia da COVID-19, uma mulher sofreu violência no Brasil; entre elas, 1,6 milhões foram gravemente espancadas e/ou sofreram tentativas de estrangulamento. Além disso, a violência psicológica, como ofensas verbais, gritos e insultos, teve uma prevalência importante, pois atingiu 13 milhões de brasileiras; e 2,1 milhões de mulheres (3,1%) foram ameaçadas com facas ou armas de fogo. no campo da agressão sexual, no Brasil, foram 100.398 casos de estupro relatados por vítimas de gênero feminino, incluindo 386 estupros registrados na Paraíba. 

Importa ressaltar que, de acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), as mulheres negras experimentaram níveis mais elevados de violência, o que representa 52,9% das mulheres vítimas, enquanto 23,5% foram mulheres brancas. Nos casos mais extremos, de perda da vida, elas estiveram em maioria: 61,8% dos feminicídios e 71% dos assassinatos de mulheres, em 2020. No estado da Paraíba, de março de 2020 a dezembro de 2021, houve 65 feminicídios, o que representou um aumento de uma mulher morta a cada 7 horas, sendo que 70% delas eram mulheres Negras.

Além do cenário pandêmico que reduziu o funcionamento de órgãos governamentais de assistência às vítimas de violências, a própria conjuntura política, de um executivo federal, o então presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), que utilizou, largamente, de discursos e práticas negacionistas, não favorecendo a resolução das demandas sanitárias e sociais geradas pela pandemia. Pelo contrário, muito da sua forma de (não) gerir a crise ampliou as desigualdades em quase todos os setores, a exemplo do quase colapso da saúde pública, falta de assistência à Educação e de assistência à classe trabalhadora, sobretudo aos mais pobres, incluindo mulheres, aumentando, assim, as tragédias pessoais e coletivas. 

A pobreza: uma dimensão da violência cotidiana das mulheres Negras

Historicamente, as mulheres Negras brasileiras, e não sendo diferente na Paraíba, constituem uma das classes sociais mais atingidas pela pobreza. Ocupam os cargos mais precários e menos valorizados, como o emprego doméstico, pequeno comércio, entre outros. A maior parte destas atividades é trabalho informal, isto é, sem assinatura da carteira de trabalho, e quando a crise sanitária atingiu o Brasil, as mulheres Negras foram as primeiras a perderem o emprego ou tiveram que “abandonar” suas famílias e se estabelecerem por meses nos locais de atividades de trabalho.

Há respeito das relações de trabalho, cabe registrar que, entre 2020 e 2021, o país registrou uma taxa nacional de desemprego de 15% (mais 879 mil pessoas), a Paraíba, por sua vez, apresentou um percentual de 15,9% (cerca de 23 mil indivíduos), da população com parcos recursos para sua sobrevivência durante Covid-19 e, como foi divulgado, ocorreu elevação de preços (transportes públicos, alimentos, água, gás, combustíveis, etc.), ocasionando mais pobreza, insegurança alimentar e violências.  

Os testemunhos de mulheres apontaram para o aumento da pobreza, mas também revelaram outro problema: o retorno da fome. Em 2021-2022, 45% dos domicílios estavam em Insegurança Alimentar, e em 15,5% já prevalecia a fome no dia a dia das famílias. Em termos de pessoas, isso representa 125,2 milhões em sem saber o que comerá no dia seguinte; e mais de 33 milhões em situação de fome, ingerindo nutrientes insuficientes para uma boa nutrição. 

Sendo que esse fenômeno social abrangeu, principalmente, as regiões Norte e Nordeste do Brasil. Além disso, a fome está ligada às desigualdades em termos de gênero e de raça, pois afetou mais as famílias cujas mulheres eram chefes de família e aquelas cujas chefes se definem como Negras. Para todo ser humano, ser forçado a sentir fome é um atentado à sua dignidade, cabe ao estado implementar políticas emergências em tais situações extremas como ocorreu no decorrer da pandemia. Sem dúvida, a experiência da fome e da pobreza é traumática e, nisto, a consideramos uma violência.

As mulheres Negras enfrentam a morte, Agenda Afro-feminista em 2020, "Em Defesa das Vidas Negras, Pelo Bem Viver"

Durante a pandemia alguns slogans das mulheres Negras foram: “Parem de nos matar:  O povo negro resiste! Nem Fome, nem Balas, nem Covid-19: queremos viver!” Há nestas frases pelo menos duas dimensões da realidade mórbida que as mulheres negras enfrentam.

No caso das mulheres negras, a política da morte construiu as suas bases no sistema colonial e escravista brasileiro, e prolongou-se em tempos de Covid 19 pela possibilidade ou não de se proteger de um vírus, da fome e do continuum das violências. No sentido de que a necropolítica no Brasil se materializa nas relações sociais de raça, classe e sexo nas quais as mulheres negras foram um dos segmentos da população mais expostos à morte durante a crise sanitária e humanitária, intensificando uma sociedade marcada por fatores estruturais da sua organização social, política, racial e de gênero, cuja colonialidade do poder desempenhou/desempenha um papel fundamental de manter desigualdades e hierarquias.

Em tal cenário, as mulheres Negras organizadas se aquilombaram , como aconteceu durante a pandemia, e com esforços coletivos procuraram enfrentar o efeito conjuntural da expansão da pobreza, do coronavírus, das violências de gênero e do racismo estrutural, tendo entre seus compromissos políticos a luta pelo Bem Viver das mulheres Negras e de suas comunidades, com ações sociais de autocuidado e de suporte social às grupos periféricos e quilombolas, como concretamente pelo Movimento de Mulheres Negras na Paraíba, que, com apoio de algumas instituições, atuaram no coração da pandemia para cumprir um papel político fundamental para minimizar tragédias, quando houve (quase a total) ausência do Estado de atenção às populações pobres e, sobretudo, Negras.

Apesar do aquilombamento de mulheres Negras ter sido realizado de forma virtual, nos anos de 2020 e 2021, em atenção aos os protocolos sanitários da pandemia, o enfrentamento ao poder público esteve presente – “Para o Brasil Genocida Mulheres Negras da Paraíba Apontam a Solução” (2021) –, no ano seguinte, o debate esteve focado nas eleições nacionais, assim na 24ª Edição do 25 de julho e na 10ª Edição do Julho das Pretas, o tema  foi “Mulheres Negras no Poder, construindo o Bem Viver”. Enfim, tendo como perspectiva que “nossos passos vêm de longe”, há uma atualização da resiliência no contexto atual para se contrapor ao capitalismo neoliberal e permanência de desigualdades e manter a construção do Bem Viver, sob a inspiração de Aqualtune, Thereza de Benguela, Dandara, Iansã, Oxum e Iemanjá, e muitos outras que deram força à luta diária das mulheres Negras contra as violências.
 




 


Sarah Daniel, autora do artigo / Arquivo Pessoal - Autora

*Sarah Daniel, uma feminista afro-diaspórica, é Mestra em Ciências Sociais e Gênero pela Universidade de Paris Cité. 

**Esse artigo resulta do trabalho acadêmico: DANIEL Sarah, No coração da crise sanitária, social e econômica no Brasil:  do continuum colonial das violências às resistências das mulheres Negras na Paraíba, Universidade de Paris Cité, 2022.

***Os dados sobre as violências contra mulheres e meninas no período pandêmico estão disponíveis no Anuário Brasileiro de Segurança Pública n. 15 (2021), no documento A Violência contra Pessoas Negras no Brasil, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) e no Atlas da violência 2021 e 2022 (IPEA).
 

Edição: Polyanna Gomes