Paraíba

ARTIGO

Entre a espera e a ação: Desertores, do Coletivo de Teatro Alfenim

'Coletivo Alfenim traz um “estudo teórico-prático” voltado a um conjunto de fragmentos escritos por Bertolt Brecht'

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
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Por Ludmila Patriota*

O Coletivo Alfenim, grupo de teatro paraibano sediado em João Pessoa, esteve em cartaz em sua sede com Desertores, seu mais recente experimento, alguns meses depois de circular com o espetáculo pelo Rio de Janeiro, no Armazém da Utopia, sede da Companhia Ensaio Aberto. Há exatamente um ano, o grupo celebrava 15 anos de uma trajetória já consolidada na tradição do teatro crítico e épico-dialético brasileiro inaugurando sua nova sede, também com uma temporada de Desertores, depois de dois anos desenvolvendo atividades remotas em decorrência da pandemia da Covid-19. 


Foto @thereza.helena


Identifica-se, no conjunto dos espetáculos do grupo, o estudo crítico da matéria social e histórica brasileira, especialmente as contradições do capitalismo periférico atrelado à dinâmica global e as especificidades da sociabilidade brasileira e da formação de seu sujeito. O trabalho do grupo, pautado na ideia de “dramaturgia em processo”, caracteriza-se pelo fluxo entre texto e cena gerado na sala de ensaios, com criação coletiva e colaborativa, e dramaturgia final e direção de Márcio Marciano. De caráter também formativo, o grupo promove em sua sede oficinas, seminários e debates abertos ao público e em torno de cada nova montagem. 

Desertores estreou em novembro de 2019 e teve sua carreira interrompida em virtude da pandemia da Covid-19. No projeto que deu origem ao experimento, contemplado pelo edital Rumos Itaú Cultural 2017-2018, o Coletivo Alfenim se propôs a um “estudo teórico-prático” voltado a um conjunto de fragmentos (cenas, diálogos, monólogos, poemas, canções, coros e apontamentos teóricos), esboçados e escritos por Brecht entre 1927 e 1931, à época da República de Weimar. Estes fragmentos foram reunidos em um documento numeroso que ficou conhecido como Fatzer-Material (Material Fatzer), que dariam origem à peça que resultou inacabada “O declínio do Egoísta Johan Fatzer”.

Em um dos fragmentos do documento, Brecht esboça a fábula da peça que não chegou a ser concluída e a partir da qual surge o exercício de experimentação do Alfenim. Durante um ataque com tanques diante de Verdun, na Primeira Guerra, quatro homens somem da tripulação e são tidos como mortos. Fatzer, Kaumann, Koch e Büsching surgem em situação de clandestinidade em Mülheim du Ruhr, na Alemanha assolada pela guerra, onde Kaumann e sua companheira possuíam um cômodo em um porão, no qual ela, Therese, o esperava.


Foto @thereza.helena


Sobrevivendo neste cômodo, sob constante ameaça de serem presos e fuzilados como desertores, os quatro vivenciam as dificuldades para arranjar modos de subsistência em meio à guerra. Diante da discórdia e desagregação crescentes, a única perspectiva que os une é a espera de uma possível revolução coletiva, que poria fim à guerra e perdoaria a deserção, e a esperança de tomar parte neste levante.

Atualizando os fragmentos de Brecht, o experimento do Alfenim explora o vácuo entre a possiblidade da ação coletiva e a espera; entre a coesão interna em declínio diante da ameaça externa e a promessa da revolução. Habitando este vácuo, os desertores se veem diante do imperativo de agir e decidir em meio à destruição da máquina de guerra, ao tempo em que surgem os equívocos, as contradições do movimento revolucionário, os impedimentos da passagem do plano de ação à prática política e a ascensão do fascismo. A urgência da satisfação de necessidades e pulsões imediatas (a comida, o sexo) aparece como um dos principais fatores de acirramento e violência, e terreno das contradições.

Os planos de ação, parodiados na forma de acordos que conduzem a uma moral interna, ora se esvaziam, às vezes convencem, e ora se tornam opressores e orientam decisões e comportamentos associais que os distanciam da ação organizada e do tão esperado levante. A deserção e a clandestinidade não se tornam vias para outro tempo possível, o da revolução, e contribuem para seu declínio. Ao longo de quinze cenas, interrompidas por coros, entrecenas e canções de cena, assistimos às relações potenciais e fracassadas dos quatro soldados no interior de um cômodo e às situações sociais da guerra em um “palco sanduíche”, à maneira de rua.


Foto: @thiagogouvea1


A atmosfera da guerra se inicia desde a entrega do programa do espetáculo tal como a distribuição de “material subversivo”, à entrada do teatro. A plateia, com poucos assentos que nos comprimem contra as paredes do teatro sede, dão o tom da clausura. O cenário é desolador e econômico: há apenas uma árvore desfolhada pela metade, em um dos cantos, e um capacete de soldado pendurado nela.

As paredes do cômodo em que os desertores estão confinados são biombos engradados que se transformam ora em um duplo de material de trabalho das mulheres na fábrica e divisa que as separam em suas perspectivas, ora em signo da opressão e violência que recaem sobre a mulher naquele contexto; ora em demonstrativos da divisão de classes, ora em grades que buscam corrigir a postura do egoísta Fatzer. Esta mobilidade cênica de matriz dialética lança-nos nessa série de acontecimentos, situados entre a guerra exterior e o confronto interno e atravessados por pontos de vista em contradição e pela dimensão política, vacilante e potente que há entre a espera e a ação. 

Sirenes, estampidos, efeitos sonoros, fumaça, imagens de guerra projetadas (em casacos de soldados ou em pedaços de pano) e canções de cena se juntam à temperatura da guerra. As canções de cena, marca dos espetáculos do Alfenim, são composições coletivas executadas ao vivo por atores, atrizes, músicas e músicos e atualizam, poéticas, fragmentos do Material. Os coros somam-se às canções na quebra da linearidade e fragmentação da narrativa, lançando contradições. Este papel também é realizado por entrecenas que, carregadas de um humor ácido, exibem decrépitos de guerra discutindo grandes impasses à emancipação humana e ao entrave da revolução.

As figuras brechtianas do Alfenim, dotadas de qualidades sociais, às vezes usam máscaras e se valem da commedia dell’arte, outras vezes distanciam-se, mostram, narram; outras cantam, são poéticas, melancólicas; depois são coros, vozes coletivas e lançam pontos de vista em desacordo; representam estratégias, planos descolados de ações; são também aturdidas e visionárias, porta-vozes do Anjo da História de Benjamin, buscam acordar os mortos, sacudir os detritos, dizem dos fantasmas que habitam o tempo que se anuncia.

O Alfenim atualiza as questões brechtianas presentes no Material e no teatro épico-dialético de Brecht à luz das contradições históricas e formais atuais em chave dialética. Ao fazê-lo, persegue a necessidade de reacender o vestígio crítico e as possibilidades de experimentar com os desafios postos à ação revolucionária. A fidelidade ao material caminha lado a lado com a sua subversão criativa, pois sabem que há muitas teatralidades possíveis na abertura dada pelo teatro brechtiano e que a atitude crítica e a inventividade formal diante de um material de Brecht em outra conjuntura não ocorrem por mediações temáticas simplistas.

O experimento imerge no Material sem buscar uma solução para “os mistérios do mundo”, mas demonstrá-los em sua concretude, no melhor exercício dialético brechtiano.O resultado dessa atitude diante do Material é um intenso diálogo alegórico com impasses da matéria social, histórica e política brasileira e rebatimentos contemporâneos; com o Brasil de hoje, de ontem e dos fantasmas que assombram seu futuro.

Ainda que não tenhamos vivenciado experiências revolucionárias anteriores enquanto nação, nem traumas de guerras mundiais, as consequências coloniais do projeto falhado do progresso moderno de inspiração burguesa em contexto de capitalismo periférico são incalculáveis.

A trajetória do espetáculo tem dito, ela mesma, da atualidade do experimento, de seu atrelamento ao material histórico com que se defrontou e da busca de pôr em movimento a dialética que se encontra interrompida no limbo da deserção. À época da primeira montagem, o Brasil vivenciava, na esteira do golpe de 2016, o início de um dos governos mais tenebrosos da história do país, sendo inegável a relação com a (re)emergência do fascismo e do militarismo no Brasil e no mundo.

Poucos meses após a temporada de estreia, a carreira do espetáculo seria interrompida pelos efeitos da pandemia da Covid-19 – consequência drástica da crise ambiental e social que estamos vivenciando há décadas e do fracasso do processo de modernização. Assistimos a Desertores confinados, de casa, entre a espera, o medo e a esperança. Quando o isolamento finalmente acabou, os teatros abriram as portas e o grupo pôde inaugurar sua nova sede, o espetáculo foi reencenado com a força do retorno ao coletivo. 

Agora, um ano depois, esta temporada se dá no contexto de um novo processo de retomada da democracia, após as eleições de 2022, e o que prevalece é talvez uma esperança vigilante diante do muito que ainda há por “agir” em meio à espera. Pois, sabemos, estamos no Brasil de frágeis conquistas democráticas, marcado por avanços e retrocessos, pela sua formação contraditória, pela dificuldade de organização coletiva e com o autoritarismo e o fascismo à espreita.

Para concluir, fiquemos com o percurso do epílogo do Desertores, que ecoa trechos de fragmentos do Fatzer. A voz enunciada pelo coro, que nos interpela à saída, suspende a ação da representação e inverte a posição passiva da condição de espectadores, direcionando o moto da ação para o teatro agora preenchido pela plateia “sentada às margens”, “à espera do novo animal (...)”. Após alguns minutos, quando atores e atrizes se unem a espectadores ao final, é o momento em que nos encontramos ali, em coletivo, indivíduos brechtianamente assombrados e ao mesmo tempo inseridos na atitude estética do Alfenim de impulsionar a dialética.

*Ludmila Patriota é doutoranda em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba e atriz. Pesquisa sobre teatro e teoria crítica; sua tese em desenvolvimento é sobre a persistência do teatro épico-dialético no contemporâneo, com foco no Coletivo Alfenim e no Material Fatzer de Brecht. 
 

Edição: Cida Alves