Paraíba

OPINIÃO

Flávio José, forró e resistência no São João de Campina Grande

"Gonzaga e o forró são símbolos do NE; Flávio José também, mas a lógica mercadológica arruinou o viés cultural"

Brasil de Fato PB| João Pessoa |
Flávio José durante show na sexta (2) no Parque do Povo, em Campina Grande - Divulgação - Pref. de Campina Grande

Por Jonas Duarte*

O São João, festa religiosa da Península Ibérica e perpetuada nas terras do interior nordestino, se fez a partir do sincretismo e da junção natural entre o pagão e o religioso. O santo, as crenças e ritos trazidos da Europa, claro, estão presentes nessa festa, mas o São João do Nordeste está profundamente vinculado a festa da colheita.

Seja a colheita do milho verde, para a pamonha e canjica; seja do milho já pronto para o cuscuz. O milho, esse cereal americano, se espalhou em todo Nordeste e, por parte do Centro-Oeste como alimento humano essencial.

Muito antes de Luiz Gonzaga espalhar Brasil afora os ritmos musicais das terras semiáridas do interior brasileiro, a “cabrueira” já festejava suas colheitas de milho em bailes, sambas, forrobodós de maio a julho; de Maria a Santa Ana (Santana – mãe de Maria).

Os diversos ritmos dessas festas foram levados ao eixo Rio - SP, mas só alcançam sucesso estrondoso e nacional com Luiz Gonzaga no Pós-Guerra, quando a Indústria Fonográfica e o rádio se espalham pelo Brasil. Foi um período de valorização das culturas regionais brasileira. Havia um sentimento de integração nacional: o nordestino, expulso da estrutura socioeconômica impostas contra ele em sua terra natal, transformava sua cultura regional em nacional. Luiz Gonzaga e sua música, incorporando esses diversos ritmos nascidos na vida 'severina nordestina' daqueles tempos, se tornaram a expressão mais popular desse processo. 

Gonzaga e Forró se tornaram sinônimos e símbolos de Nordeste, do seu povo e de sua saga. E foram férteis, produzindo um belíssimo legado de artistas e novos ritmos, batidas e síncopes. 

Caso Flávio José

Nesse ultimo final de semana, especificamente na noite junina da sexta (2), apresentou-se em terras campinenses o Flávio José, compositor, cantor e intérprete monteirense, com seu legado de mais de sessenta anos no forró - pois começou suas composições ainda criança, com dez anos de idade, inspirado por figuras como Gonzaga e Trio Nordestino e, desde sempre, foi apresentação primordial no Maior São João do Mundo, visto seu legado e história para a Paraíba e o forró. Na apresentação deste ano, no Parque do Povo, para milhares de pessoas, o artista desabafou sobre terem diminuído o tamanho do seu show, em pelo menos 30 mim, após determinação da organização do evento. Flávio afirmou, em tom de profunda tristeza e descontentamento, que não sabia se iria cantar todas as músicas do repertório por causa do ‘corte’ na apresentação e, reafirmou a falta de compromisso e respeito que estão tendo ultimamente com o artistas nordestinos. O motivo do corte foi para que o cantor sertanejo Gustavo Lima, pudesse se apresentar mais de duas horas no segundo dia de festa. 

Em uma sociedade com as profundas desigualdades sociais e regionais como a brasileira, o povo e a música nordestina serão sempre discriminados. Haverá sempre xenofobia e racismo contra nossa gente. Isso faz parte da cultura estrutural e dominante brasileira. A prefeitura de Campina Grande sob a gestão de Bruno Cunha Lima, se pronunciou na tarde do sábado (03) e pediu desculpas dizendo que "não consegue controlar a ordem dos shows, que está sob responsabilidade da empresa que organiza a festa". Esta, por sua vez, já havia emitido nota no início da tarde de sexta (2) informando que "o cantor Gustavo Lima irá antecipar a apresentação no Parque do Povo, começado às 00h30. A antecipação aconteceu a pedido do próprio cantor, o show do artista no Maior São João do Mundo será estendido e vai durar cerca de 2h30". Depois do ocorrido emitiram novo informe dizendo que o caso tinha sido por erro técnico cronológico. Que feio!

Lógica Mercadológica x Viés Cultural

Em um quadrante temporal emergiram os megashows e artistas de megaeventos com super produções, toneladas de sons e rios de dinheiro. Se nos anos 1960 os cantores dos festivais de música brasileira se espantaram com o Maracanãzinho lotado com 5 mil pessoas, nos anos 1980, os shows de 50, 100 mil pessoas viraram febre. De lá pra cá, esses eventos só cresceram em quantidade de público, em volume de som e de dinheiro, tornando-se um dos maiores negócios do terceiro setor. É uma indústria que movimenta trilhões de reais e milhares de empregos. Nessa dimensão de negócio muita coisa não preza pela qualidade e avança no descolamento de qualquer base cultural, representativa de um lugar, de um povo ou de uma cultura. Padroniza-se música, ritmo, se empobrece letras e vender esse produto se torna a meta, para isso se formou uma cadeia completa, da produção à audição. O controle é total. Dos grandes centros urbanos às periferias das minúsculas cidades a opção oferecida aos ouvintes é esse pacote musical. Martela-se 24 horas por dia nas rádios e nos aplicativos de internet, hoje via algoritmo.

É praticamente impossível não ser envolvido como consumidor passivo desse mega negócio. Lógico que, também há aí muita promiscuidade entre dinheiro público e privado e corrupção, como, aliás, em tudo que circula dinheiro. Esse negócio, movimentando uma economia gigantesca, penetrou em praticamente todas as festas brasileiras. De carnavais a natais, de festas de colheitas no universo rural a festivais urbanos nos centros e periferias. Como disse um velho barbudo alemão: "no capitalismo tudo vira mercadoria". E, na ânsia por dinheiro, essa lógica mercadológica submete o viés cultural. "Money, money, money", gritam os mercadores. Não é de hoje. 

Já vi e ouvi Luiz Gonzaga e Dominguinhos serem vaiados no Parque do Povo em Campina Grande, não só por jovens, mas por pessoas de gerações anteriores a minha. Vi em pleno dia de São João, após vitória da seleção brasileira de futebol em 1994, a organização da festa colocar bandas musicais sem nenhuma relação com forró. É histórico os tocadores de forró locais ficarem meses, às vezes anos, sem receber o cachê prometido por tocarem horas a fio no Maior São João do Mundo, enquanto bandas e cantores de fora já sobem ao palco com o dinheiro em caixa.

Há festas de resistência contra essa lógica mercadológica no Brasil. Conheço poucas. O carnaval de Olinda resiste. Nestes quarenta anos do São João de Campina Grande tornado uma festa vendida nacionalmente já vimos de tudo. De bandas de Rock Pop nacional, Lambada, passando por “Sertanejo Raiz”, por bandas de bundas a tremelicar no palco; 'Sofrência', essa atual onda musical estranha que sequer sei como denominar, mas apesar de tudo isso o forró resistiu.

E resistirá. Não porque eu queira e ame o forró, mas porque essa festa e o forró são expressões de um povo, o nordestino. Mesmo que tenham “zilhões” de nordestinos que sequer se identificam com o forró. Mas entendo ser natural e normal, faz parte de um povo que também resiste, de um povo que está acostumado a ensinar o Brasil a votar, a fazer festa, a trabalhar, a criar.

Milhares de forrozeiros, abraçando o legado de Gonzaga surgem no Nordeste, Brasil e mundo afora todos os dias. A agressão/humilhação que estes empresários "acoloiados" com os gestores municipais - dominados pela lógica pobre da acumulação de dinheiro -  fizeram contra Flávio José, é a expressão covarde e preconceituosa contra o povo nordestino e uma de suas manifestações culturais mais autênticas que existe: o forró. 

No Capitalismo, o dinheiro pressionará sempre contra a festa, contra a cultura popular, mas haverá resistência. O forró e o povo nordestino são resistência. Sempre foram.


*Doutor em História Econômica do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba - CCHLA/UFPB. Pesquisador Visitante no INSA - Instituto Nacional do Semiárido. Seus estudos têm ênfase na História Econômica regional do Semiárido. Vereador de 1983 a 1989, em Boqueirão, também foi líder de movimento estudantil e presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal da Paraíba (ADUFPB), bem como coordenador geral, por cinco anos, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos João Pedro Teixeira

Edição: Polyanna Gomes