Paraíba

Coluna

SOB AS BÊNÇÃOS DO ROSÁRIO: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Mamanguape/PB

Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Mamanguape – PB - Fonte: Arquivo Pessoal (2017)
"A distância entre o local que era cativo até a igreja, não existia na sua alma, na sua fé..."

Por Eliane Cruz de Lima

A narrativa envolta a história da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Mamanguape/PB sempre foi muito suscita. Nas minhas memórias, cresci com o relato de que se tratava de uma construção de negros escravos. Eu a achava linda! Quando adulta, nas vezes que ali estive, me indagava sobre a capacidade de como negros escravos poderiam tê-la construído.  

A primeira vez que li sobre o assunto foi através do livro Mamanguape, a Fênix Paraibana, de autoria de Adailton Coelho Costa, no capítulo que relata a visita de D. Pedro II, em 1859, a cidade e os locais que o mesmo teria visitado, dentre eles, a Igreja do Rosário. O autor fez menção da construção do prédio por mãos negras escravas e a existência da Irmandade do Rosário.

Anos se passaram, e concluindo a licenciatura em história, um querido amigo de sala Bergson de Lima, já falecido, esteve na minha cidade na época como fotógrafo de um casamento na referida igreja. Relatou-me que ficou encantado com a igreja, falando da sua arquitetura barroca e da imagem de São Benedito, indagando-me sobre sua história e a presença de irmandades negras no local. Eu apenas reproduzi a mesma narrativa que sempre ouvi. Não lembro exatamente das suas palavras, lembro-me que ele disse que seria uma boa pesquisa.  Suas palavras, inquietaram-me. E foi nesse contexto que iniciei o caminho em busca de fontes que pudessem contar a história da Igreja do Rosário e sua irmandade negra para o meu trabalho de conclusão de curso¹.

A partir das orientações do professor Ms. Cristiano Amarantes da Silva, um pesquisador das irmandades negras na Paraíba e meu orientador, iniciei algumas leituras em jornais da época, dissertações, teses e livros sobre a temática.  Visitamos arquidiocese, setores de arquivos e não encontramos documentos com informações sobre a irmandade do Rosário ou sobre a igreja. Apesar das pesquisas, eu não encontrava quaisquer documentos oficiais, a exemplo, do compromisso da irmandade. Minha procura levou-me ao encontro da tese da professora Dr.ª Maria da Vitória Barbosa Lima, a partir dessa leitura e surpresa pelo que ali estava escrito, obtive informações acerca do compromisso da Irmandade do Rosário, finalmente sabia e poderia provar que ela realmente existiu.

Extasiada diante de tal fato, o próximo passo foi como encontrar a professora e obter informações sobre o documento, e finalmente, após conversas por telefone, fui ao seu encontro na Universidade Federal da Paraíba, e que grata surpresa, um ser humano admirável que em sua imensa grandeza de pesquisadora me entregou um arquivo pessoal contendo fotos da Lei da Província da Paraíba, que constava o Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da então Vila de Mamanguape aprovado no dia 07 de julho de 1852, pelo Presidente da Província da Paraíba do Norte Antônio Coelho de Sá e Albuquerque, através da Lei de nº 19, sendo o mesmo composto por vinte e seis capítulos. E assim, comecei a narrativa sobre a história negra da minha cidade, que era desconhecida ou devo dizer, não mencionada em sua tão grandiosa relevância.

Discorri no meu trabalho acadêmico a dinâmica estrutural daquela confraria, aberta a todas as pessoas que quisessem servir a “dita Senhora”² . Os cativos deveriam trazer autorização dos seus senhores, estes também responsáveis pelas taxas. Havendo irmãos brancos não poderiam fazer parte da mesa regedora, exercer cargos e votar. A mesa regedora era completa com doze irmãos, Rei, Rainha, Conde, Condessa, Juiz, Juíza, Escrivão, Escrivã, cargos mais importantes e ocupados pelos irmãos mais possibilitados e devotos. Havia ainda o Tesoureiro, Zelador, Mordomo e Procurador. A nomeação da Rainha e da Juíza era realizada pelo Capelão, passando pela aprovação da mesa.

Os oficiais mais velhos davam posse aos mais novos no dia da festa, dia 27 de dezembro, com muita pompa e alegria, missa cantada, igreja adornada, a procissão, ou seja, o ato de rua, seguindo os padrões hierárquicos saiam pelas ruas da cidade e cantorias e batuques embalavam a madrugada na frente da igreja, onde todos podiam assistir. Tratava-se de uma instituição econômica estruturada, que emprestava dinheiro a juros, aceitando ouro ou prata de maior quantia como penhora. Realizavam coletas aos domingos pelas ruas da cidade e vizinhanças, incumbidos dessa missão estavam o irmão zelador e um companheiro, que deveria ser o irmão esmoler, citado no compromisso. Na ausência de ambos, poderia ser tirada por qualquer outro irmão e entregue ao tesoureiro. Se nenhum dos responsáveis cobrassem a esmola, deveriam pagar por cada falta (ou seja, dia da não coleta) a quantia de quinhentos reis. O sepultamento dos irmãos, era uma das obrigações da irmandade, o que para negros escravos ou libertos era uma garantia que seu corpo teria um sepultamento decente, uma boa morte.  Aqueles que ocupavam cargos na irmandade, teriam um sepultamento mais pomposo. Aos brancos, irmãos ou não, também poderiam ser sepultados na igreja, desde que pagassem determinada quantia. Aos irmãos de cor, mais pobres, não havendo quem pagasse seu sepultamento, a irmandade patrocinava.


Altar da Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Mamanguape-PB. / Fonte: Arquivo Pessoal (2017)

Nesse universo de fé, festa e irmandade, relato a história do irmão Honorato, escravo, morando certa distância da igreja, veio participar das festividades a Nossa Senhora, cumprir o seu papel de devoção, de irmão e cristão, mas por descumprir a ordem do seu senhor quanto ao horário do retorno das festividades, sendo duramente castigado. Diante do castigo a ele imposto, em um ato de resistência, tira a própria vida. Antes, preocupou-se em deixar uma quantia com o vigário pela sua alma, e encontrando sua mãe, em gesto de despedida, deixou-lhe certa quantia. Gestos que nos leva a entender que se tratava de um escravo de ofício. Para Honorato, a distância entre o local que era cativo até a igreja, não existia na sua alma, na sua fé, a “dita senhora”, estava no coração livre de Honorato.

Sobre a data da edificação da Igreja, pesquisas revelaram datar-se de 1781. Verifiquei também a existência da Irmandade de São Benedito, porém, sem maiores detalhes. Em 2018, a história da irmandade foi retratada em vídeo³ pelos alunos da escola da rede municipal Ana Cavalcante de Albuquerque, onde leciono. Participamos de um concurso e saímos vitoriosos. O vídeo trouxe maior visibilidade e a minha cidade pode conhecer um pouco da história negra que a edificou.  Não poderei dizer com exatidão quando a irmandade teve início e fim, ou a edificação do seu prédio. Mas, ao ver-me diante de tão ricas informações, pude finalmente conhecer um pouco da história da igreja e sua confraria, sua relevância enquanto espaço libertário e grande prestigio para os irmãos que a frequentava. Externado, a exemplo, no 'escravizado-irmão' Honorato, que participou efetivamente das festividades, onde as obrigações de irmão se sobressaíram as de escravo, ficando claro que a fé, a irmandade era imprescindível.

Acredito que a Irmandade de Nossa Senhora do Rosários dos Pretos de Mamanguape, ainda tem muito a nos dizer sobre a fé, o negro, o irmão, a dinâmica escravocrata da sociedade da época e ainda sobre sua função libertária, social, cultural e religiosa para os que ali se inseriam. Não sei se encontrarei respostas as minhas indagações, mas continuarei buscando. 

Assim, quero aqui exaltar aos pesquisados, a mim, celebrar a desconstrução de olhares e ressignificação diante do que me fora ensinado sobre a história negra do meu país. É preciso desmistificar estereótipos, inseri-los como parte constituinte da nossa história.  E nessa questão, ainda temos um longo caminho a ser percorrido.


*Eliane Cruz de Lima é professora de História na rede municipal de Mamanguape. Graduada em História (UNAVIDA), em Ciências Naturais (UFPB) e em Pedagogia (UNAVIDA); pós-graduada em Supervisão e Orientação Educacional (FIP), em Coordenação Pedagógica (UFPB) e em Pedagogia Sexual (UFPB). Esta produção é parceria com a Comunidade Colaborativa de Mulheres Afro e Ameríndias - COCAM/RECOSEC/UFPB

_______________________________________________________________________________________________________________

Referências:

1   Dica de leitura: artigo ‘sob as bênçãos do rosário’ nos Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR: Religião, direitos humanos e laicidade: resistências, diversidades e sensibilidades / Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (organização). Disponível em: https://www.academia.edu/41990666/ANAIS_ABHR_NORDESTE_2019_Fogo_Editorial Acesso em: 11/05/2023.

2 Referência a Nossa Senhora do Rosário. Compromisso da Irmandade, capítulo 1

Vídeo
 

Edição: Polyanna Gomes