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As lutas urbanas e a compreensão da urbanização contemporânea

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Mulheres durante atividade física no Centro da Mulher Jardim Esperança, em Bayeux (PB). - Reprodução Portal Paraíba Feminina
a cidade é um produto (e obra) da sociedade, das relações sociais concretas, realizadas por sujeitos

Por Rafael Faleiros de Padua*

 

Diante do modo como a urbanização se realiza hoje, com uma força gigantesca dos produtores hegemônicos do espaço (Estado e agentes privados), se coloca a importância de se pensar os conteúdos da cidade e da vida urbana a partir das lutas urbanas. Essas lutas, embora sejam resultados da urbanização contemporânea, que ao avançar produz novos conflitos e contradições, são também problematizadoras dessa urbanização, questionando os processos produtores das desigualdades. Nos projetos de pesquisa e de extensão que realizamos junto com alunos de graduação de pós-graduação no Departamento de Geociências da UFPB, estamos refletindo sobre essa noção de lutas urbanas através das diversas lutas que se realizam permanentemente no espaço urbano. Há um aspecto de generalização nessa noção de lutas urbanas, já que ela busca alcançar um conjunto heterogêneo de formas de resistência e de contestação da ordem hegemônica. Ao mesmo tempo ela quer e pode enfatizar o outro lado oposto e negativo dos processos de avanço da cidade como mercadoria ela mesma que avança com os grandes projetos urbanos capitaneados pelas esferas do político-institucional e do econômico, que aprofundam a mediação do dinheiro para o uso concreto da cidade. 

Outra noção fundamental para pensarmos essa questão das lutas urbanas é a noção de produção do espaço, que ilumina o fato de que a cidade é um produto (e obra) da sociedade, das relações sociais concretas, realizadas por sujeitos sociais concretos. O olhar para as lutas urbanas permite pensar a urbanização contemporânea através do modo como os grupos oprimidos da sociedade produzem seu espaço e sua vida nesse espaço urbano. A produção do espaço hegemônica (os grandes projetos de planejamento e as ações das grandes empresas) é revelada aí através dos conflitos e contradições que se impõem a toda a sociedade e que são mais contundentes sobre os mais pobres, que precisam criar de maneira sofrida as suas possibilidades de realização da vida.

As lutas urbanas carregam, portanto, o sentido difuso proposto pelas inúmeras estratégias dos grupos sociais que não têm os direitos sociais básicos garantidos e cuja vida cotidiana é em grande medida uma permanente luta para garantir e realizar sua reprodução no urbano. Essas lutas podem ser mais organizadas nos movimentos sociais, em associações de moradores ou em coletivos de toda ordem (estudantis, sindicais, comunitários etc.), mas também podem ser atomizados, como lutas realizadas de modo mais espontâneo por questões urgentes. Uma característica importante das lutas urbanas é que a maior parte delas é motivada por necessidades cotidianas, como melhorias no lugar de moradia, acesso a equipamentos de saúde e educação, etc.

Um exemplo interessante que nos ajuda a pensar as lutas urbanas são as atividades realizadas pelo Centro de Mulheres Jardim Esperança, localizado na periferia de Bayeux, na Grande João Pessoa, onde pudemos conversar e debater com suas participantes duas vezes nos meses de março e abril de 2023. Esse Centro, fundado há mais de 20 anos, é um lugar de acolhimento e de reflexão sobre a vida cotidiana para as mulheres da região do entorno. Problemas como a violência de gênero, as dificuldades para o acesso à educação, questões relativas à precariedade de condições dos bairros do entorno e todo o rol de questões que envolvem a vida cotidiana das mulheres são abordados. Nesse Centro são dados cursos voltados para que as mulheres desenvolvam possíveis ofícios que lhes permitam a independência financeira e também há curso de Educação para Jovens e Adultos (EJA). Quando passam a frequentar o Centro e a encontrar mulheres que vivem realidades semelhantes e que superaram antigos problemas, há o fortalecimento de um compartilhamento das experiências e o reforço das lutas coletivas. Revela-se para as participantes do Centro a possibilidade de conquistas de direitos e possibilita uma outra postura diante de sua própria realidade vivida, agora mais consciente, transformando sua atuação em todas as esferas da sua vida cotidiana, na família, no trabalho e no espaço público em geral. 

Dessa forma, o olhar para as lutas urbanas nessa dimensão mais ampla de lutas, pode nos permitir a entender o contraditório do processo que avança com força no espaço urbano, que são as estratégias dos sujeitos hegemônicos da produção do espaço. Nesse entendimento do contraditório podemos abstrair os conteúdos da produção social do espaço hoje, olhando também para as formas de produção da vida dos grupos sociais que vivem as opressões do processo hegemônico e revelam as suas brechas e saídas possíveis no seu cotidiano empobrecido. Trata-se, do ponto de vista do pensamento, de uma escolha teórica de pensar os conteúdos do urbano a partir das lutas dos grupos oprimidos, das classes que vivem do próprio trabalho muitas vezes ultraprecarizado, os que vivem no subemprego e no desemprego, pertencentes aos grupos sociais que realizam sua vida nos limites das possibilidades de sobrevivência. As lutas urbanas partem desse contexto liminar da sociedade, revelando uma realidade que é ao mesmo tempo muito visível no contexto da sociedade, mesmo na paisagem, nos bairros precários e periféricos, mas que é também invisibilizada pelas forças do poder e pelas estratégias hegemônicas, que querem dominar todo o espaço urbano com suas ações que necessariamente despossuem e segregam os mais pobres. 

Os grupos oprimidos, no entanto, são maioria na sociedade, e suas lutas urbanas são mais diversas e difusas, se espalham por todo o espaço urbano e podem nos ensinar muito sobre os conteúdos contemporâneos desse urbano, apontando possibilidades para sua transformação. É preciso escutar todo esse conjunto de lutas que são também emissores (vozes) do que é a cidade atual (injusta, segregada) e do que ela pode ser (cidade da realização da vida plena de todos(as)). 
 

*Professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB 

Edição: Heloisa de Sousa