Paraíba

Coluna

As desigualdades na formação médica superior e a demanda por novas políticas afirmativas

Médicos negros. - https://portalodia.com/noticias/brasil/pandemia-medicos-brancos-foram-mais-contratados-e-com-salario-18,7-maior-que-negros-379589.html
A pergunta ainda cabe! Tem preto de jaleco branco?

Por  Jusciney Carvalho Santana (UFAL)*

 

A reflexão aqui proposta – sobre  os motivos que culminam para a persistência das desigualdades sociais e raciais na formação médica – é feita justamente no mês que consagra o 20 de novembro como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, feriado nacional instituído desde 2011.  

É preciso lembrar a simbologia desta data, que faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares – situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco. Quilombo que protagonizou parte importante da história de resistência de negros e negras contra o regime da escravidão, situado exatamente na Região Nordeste, que apesar da adoção da reserva de vagas (lei de cotas nº 12.711/2012) destinada a estudantes provenientes da escola pública e/ou autodeclarados pretos, pardos, indígenas, que também contempla deficientes, ainda concentra as maiores desigualdades no acesso ao curso de Medicina (SANTANA, 2017), considerada a carreira mais branca e elitizada no Brasil, conforme apontam as pesquisas do IBGE, desde a década de 1960. 

Tal discrepância regional por si só já deveria ser alvo de enfrentamento e combate no Plano Nacional de Educação (2014-2024). No entanto, é preciso destacar que o PNE foi inviabilizado pela Emenda Constitucional 95 de 2016, que reduzida ao termo empregado “teto de gastos”, cumpre o objetivo de congelar investimentos sociais durante 20 anos (até 2036), culminando com medidas de austeridade e a adoção das necropolíticas assumidas nos governos Temer e Bolsonaro, que atingem diretamente a população negra no país. 

Não menos importante, é preciso também considerar os efeitos perversos da pandemia do novo coronavírus na saúde da população preta e pobre brasileira (GÓES, RAMOS e FERREIRA, 2020), e que no campo da educação, tais efeitos também colaboraram para aprofundar as desigualdades sociais, étnico-raciais, especialmente nas famílias dos estudantes mais vulneráveis nas escolas e nas universidades. De certo modo, o fenômeno da pandemia ressignificou a dualidade existente na educação brasileira. 

Para a população negra, da qual faço parte, é fácil constatar que há dois projetos de educação existentes e que funcionam para legitimar e conservar as desigualdades educacionais na escola (LIBÂNEO, 2012) e, também na universidade pública (SANTANA, 2017).  

Por outro lado, o mito da democracia racial – de  que não há distinção entre nós, que somos todos seres humanos e que a cor da pele ou os traços fenotípicos não nos limita, ou que as oportunidades são para todos – são ideias falaciosas, já que é muito fácil perceber que as coisas não são assim na realidade.  

Já foram piores, bem da verdade. O conjunto de políticas  públicas afirmativas tem ajudado ao menos a pautar o racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) que mesmo inconscientemente até contribuímos para naturalizá-lo, afinal desde cedo internalizamos que o sol nasce para todo mundo mas a sombra é naturalmente possível apenas para alguns afortunados. 

Ocorre que isso não é verdade! Isso é parte de um discurso hegemônico que permite compreender que se trata de um projeto da sociedade brasileira que insiste em não reconhecer o racismo. E essa visão negacionista, em pleno século 21, no ano 2022, depois de tantas mazelas sociais e estragos causados pelo processo de genocídio da população negra. 

Avaliando o cenário desigual no caso específico da Medicina, 7 anos atrás, em 12 de novembro de 2015, defendi a tese de doutorado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas. A pesquisa intitulada Tem preto de jaleco branco? Os primeiros 10 anos de políticas afirmativas na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas, que teve como objetivo principal avaliar a efetivação e os limites da política adotada na UFAL, a partir da aprovação do seu Programa de Ações Afirmativas, com primeira entrada de cotistas no vestibular de 2005. 

 


Capa do livro "Tem preto de jaleco branco?", de Jusciney Carvalho Santana. / Edufal, 2017

A pergunta ainda cabe! Tem preto de jaleco branco? Sim... avançamos um pouco, talvez com a inclusão de mais autodeclarados pardos, a partir das importantes bancas de heteroidentificação adotadas nas instituições, mas temos muito menos do que deveríamos ter.  

Temos poucos professores médicos negros concursados e atuando nos cursos. 

Temos um currículo que ainda não prioriza a saúde da população negra.  

Temos baixa assistência médica sobretudo no Norte e Nordeste, nas populações do campo, ribeirinhas, quilombolas e indígenas.  

Temos a desigualdade regional resultante do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) que favorece a entrada de mais estudantes oriundos das regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste em seus próprios estados e também migrando par as regiões Norte e Nordeste.  

Temos uma educação básica que ainda não pauta o antirracismo no currículo escolar e muito menos ainda no projeto político pedagógico, na rede de escolas públicas e privadas, apesar da alteração em 2008, na Lei das Diretrizes e Bases, com a obrigatoriedade curricular da inclusão da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. 

Esses desafios continuam atuais e compreendo que precisarão ser enfrentados no novo governo Lula, a partir de 2023, lembrando que, sem dúvida alguma, Lula fez a diferença em seus mandatos anteriores, quanto a criação de políticas públicas afirmativas, não somente com a Lei de Cotas, mas com a criação de mais vagas e universidades e institutos federais no interior dos estados e ainda com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (2010). Com a avaliação do que deu certo e do que precisa ser revisto, o novo governo poderá avançar com novas políticas, justamente como estratégia para barrar todos os retrocessos gerados nas gestões golpistas de Temer e Bolsonaro.  

Que tenhamos a volta, com as devidas correções, do Programa Mais Médicos.  

Que tenhamos a valorização do SUS e a implantação de novos hospitais no interior dos estados.  

Que tenhamos ampliação das políticas públicas afirmativas na saúde, na justiça e na educação.  

Que no novo decênio da política de cotas, tenhamos maior ênfase em ações de permanência estudantil, já que acessar a universidade pública deve significar responsabilizar-se pela garantida da qualidade e da igualdade, durante a formação de todos os estudantes, especialmente os que enfrentam menos condições de finalizar seus estudos.  


Dia da Consciência Negra. / https://sindjusdf.org.br/2019/11/20/dia-da-consciencia-negra-um-dia-de-luta-e-de-reflexao-em-prol-do-respeito/

Do lado de cá, sigo com meu compromisso em contribuir com novos estudos e pesquisas sobre gestão e política na educação brasileira. É para isso que também deve servir a produção na ciência: para evidenciar as demandas e, a partir de estudos sérios e éticos, nortear a construção de novas políticas sociais que pautem  a superação das desigualdades educacionais de raça, de gênero e de classe, não somente na Medicina, mas nos demais cursos de bacharelado e nas licenciaturas, que possam colaborar para garantir a mobilidade social da população negra que historicamente esteve privada de ocupar espaços de poder na nossa sociedade, em função do racismo estrutural que hierarquiza as relações raciais.  

Por fim, penso que propor novas políticas públicas afirmativas na Medicina, e nas demais carreiras que naturalizam apenas o acesso da elite, deveria ser prioridade nas metas do PNE e, em paralelo,  nas deliberações das políticas avaliativas e curriculares no âmbito do Conselho Nacional de Educação e em todas as instituições que ofertam educação superior, inclusive as privadas, até que o racismo institucional seja descontruído socialmente por nós, pela sociedade e pelas instituições que colaboram para legitimá-lo. 

 

PARA SABER MAIS 

ALMEIDA, Sílvio Luiz. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen, 2019. 264 p. (Feminismos Plurais/coordenação de Djamila Ribeiro). 

LIBÂNEO, José Carlos. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres, 2012. Disponível em: //www.scielo.br/j/ep/a/YkhJTPw545x8jwpGFsXT3Ct/?format=pdf&lang=pt.  

GOES, Emanuelle F.; RAMOS, Dandara O.; FERREIRA, Andrea J. F. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, 2020, e00278110. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00278. Disponível em: http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/upload/revistas/r942.pdf. Acesso em: 30 jun. 2021. 

SANTANA, Jusciney C. Tem preto de jaleco branco? Os primeiros 10 anos de políticas afirmativas no curso de Medicina da UFAL (2005-2015), Maceió: Edufal/ Imprensa Graciliano Ramos, 2017. 218 p. 

 

*Doutora em Educação. Professora do Centro de Educação da UFAL. Pesquisadora sobre gestão e políticas educacionais. Autora e coordenadora do projeto de extensão on-line: Diálogos Necessários: a desconstrução social do racismo. Autora do livro Tem preto de Jaleco Branco: os primeiros 10 anos de políticas afirmativas na Faculdade de Medicina da UFAL. Colaboradora no projeto de extensão “Identidade afro-brasileira e enfrentamento ao racismo: Construindo novas relações sociais”, vinculado à PRAC/UFPB, sob a coordenação da Profa. Ana Cristina Silva Daxenberger e do Prof. Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho.  YouTube: https://www.youtube.com/c/JuscineyCarvalho/ . Twiter: https://twitter.com/jusciney 

Edição: Heloisa de Sousa