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Por que os socialistas são otimistas?

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Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros - Marina Duarte de Souza/Brasil de Fato
Quando vem a explosão social fica claro que é possível mudar o mundo

Jamais se desespere em meio as sombrias aflições da vida.

Das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda.

Sabedoria popular chinesa

         

Socialistas estão engajados em um projeto estratégico que sempre foi considerado otimista. O fim da exploração do homem pelo homem permanece um desafio tão grandioso quanto difícil. Sobretudo, se considerarmos que hoje, diferente das gerações que nos precederam, sabemos que é muito mais difícil do que eles pensavam. 

A disponibilidade subjetiva mais esperançosa permanece digna de interesse. Não há porque não reconhecer que a aposta inspirada no marxismo atraiu, preferencialmente, pessoas rebeldes e entusiasmadas, ainda que haja, também, melancólicos entre nós. 

Essa perspectiva sobre o futuro da sociedade, ou as possibilidades históricas da luta igualitarista dos trabalhadores ajuda a manter, politicamente, um compromisso militante, para além do desalento pelas derrotas mais imediatas.

O que sustenta esta esperança? Nunca, nada foi mais inspirador do que a luta social popular, por menor que ela seja, nos seus inícios. A aposta repousou na expectativa de que o proletariado, uma maioria assalariada que permanece, politicamente, dominada, socialmente, oprimida e, economicamente, explorada seria capaz de lutar por si mesma de forma independente. A luta por reformas sociais foi compreendida como parte de um processo que abriria o caminho para a transformação estrutural da sociedade.

Entre os fundadores, e no marxismo da Segunda e, também, da Terceira Internacional predominou uma invariável confiança de classe, e um robusto otimismo sobre a transição ao socialismo. Este otimismo foi acusado de fatalismo, ou até mesmo de teleologia. Uma das suas expressões teóricas mais criticadas pode ser encontrada no Tratado sobre Materialismo Histórico de Bukharin. Convém notar que a fórmula sempre condenada, porém, pouco compreendida de Bukarin era, essencialmente, condicional:

A condição necessária para um ulterior desenvolvimento é também chamada com muita frequência de necessidade histórica. É neste sentido do termo "necessidade histórica", que podemos falar da "recessidade" da revolução francesa, sem a qual o capitalismo não teria continuado seu crescimento, ou da "necessidade" da chamada "libertação dos servos", em 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar seu desenvolvimento. Neste sentido pode­mos também falar da necessidade histórica do socialismo, desde o momento que sem ele a sociedade humana não pode continuar seu desenvolvimento. Se a sociedade deve continuar sua marcha, o socialismo é inevitável. (tradução e grifo nosso) [1]

As lutas decisivas, ou a hora a revolução, poderiam variar e tardar de nação para nação, mas a estratégia abraçada pelo marxismo era otimista sobre o futuro do socialismo. O capitalismo estaria condenado a sucumbir de crise em crise e, cada terremoto destrutivo, poderia provocar uma reação e resistência do proletariado.

A vitória da revolução socialista, ou seja, a conquista do poder pelos trabalhadores e seus aliados permanecia condicionada pelas reviravoltas da luta de classes: um desenlace incerto. Mas as derrotas parciais e nacionais seriam somente um momento de uma “longa marcha” que preparava, na dimensão mundial, novos combates em condições mais favoráveis à vitória final. 

Entretanto, os medos, as inseguranças e a imaturidade do proletariado diante do desafio da luta pela direção da sociedade permanecem sendo a tese que sustenta o ceticismo na possibilidade de triunfo de uma estratégia revolucionária. O argumento de que o intervalo de 150 anos de luta pelo socialismo teria sido mais que o bastante para demonstrar a inviabilidade do projeto pode impressionar.

O argumento é forte, mas não é novo. Esta posição não deveria surpreender em etapas reacionárias, períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas históricas. Não foi diferente depois das derrotas das revoluções de 1848, ou depois da derrota da Comuna de Paris, ou depois da derrota da revolução de 1905 na Rússia, ou depois da derrota da revolução alemã em 1923, ou depois da derrota diante do nazi-fascismo ou da República na Guerra Civil Espanhola.

O impressionismo foi sempre perigoso em política, e fatal em teoria. Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes se alimentam na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção e conservação da ordem. As forças de inércia histórica, se apóiam, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes estas pressões que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas.

A transição socialista, a passagem do poder de uma classe privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de uma classe proprietária para outra classe proprietária, prometia, previsivelmente, ser um processo extremamente difícil. São, em geral, necessários grandes intervalos para que a classe trabalhadora possa se recuperar da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda, recuperar a confiança em suas próprias forças, e encontrar disposição para arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe, e da mobilização de massas.

O marxismo fez uma aposta nas possibilidades da luta política. Isso significava, para o marxismo clássico, que o capitalismo empurrava o proletariado, apesar de suas hesitações, pela via da experiência material da vida, das crises e catástrofes cíclicas, na direção da luta de classes.

A história está repleta de episódios de rendição política de movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas as classes em luta “não se rendem”. Recuam, interrompem as hostilidades, diminuem a intensidade dos combates, duvidam de suas próprias forças, mas, enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas e voltam à luta. As classes podem agir, por um período, maior ou menor, contra os seus próprios interesses. Mas não podem renunciar definitivamente à defesa dos seus interesses: as classes não “desistem” de si mesmas, não fazem “seppuku”.

As batalhas, os combates, cada luta são nessa escala e nessa proporção, em uma perspectiva histórica, sempre batalhas parciais e transitórias, vitórias ou derrotas momentâneas. As relações de forças se alteram, e podem ser, por um período, mais desfavoráveis ou menos, com seqüelas mais duradouras ou mais superficiais. Entretanto, não existe para uma classe social, a possibilidade histórica do “suicídio” político. Enquanto existir, ou seja, enquanto for econômica e socialmente necessária, resistirá e lutará. Se o fará com disposição revolucionária ou não é outra questão.

Esse é o foco apropriado para a discussão dos vaticínios marxistas sobre o papel da classe trabalhadora. Uma aposta na luta política para o marxismo, significava que o proletariado, mesmo consideradas todas as limitações objetivas e subjetivas que o condicionavam, mais cedo ou mais tarde, se veria diante da última alternativa, o caminho da luta pelo poder.

Poderia precisar de um longo período de aprendizagem sindical e ou parlamentar para esgotar todas as outras vias, para vencer as ilusões. Ilusões nas possibilidades de reformar o capitalismo, por exemplo. Poderia, também, dispensar ou abreviar as décadas de experiência na colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas e, mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes se acentua.

Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros, em diferentes países, e não necessariamente teriam que repetir sempre os mesmos caminhos. Mesmo em um mesmo país, as “vantagens do atraso” permitem que destacamentos da classe trabalhadora aprendam com a experiência dos sectores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira.

Há, todavia, momentos na História em que as massas, exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível. Quando e em que circunstâncias, é um dos temas mais difíceis da elaboração marxista.

Mas esses momentos são mais freqüentes do que usualmente se pensa. E quando a classe trabalhadora perde o medo ancestral de se rebelar, toda a sociedade mergulha em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. O turbilhão da situação revolucionária é uma das tendências mais profundas da época histórica. Quando vem a explosão social fica claro que é possível mudar o mundo.

Quando esse sentimento de que não é mais possível continuar vivendo nas condições impostas pela ordem do capitalismo é compartilhado por milhões, então, a força social da mobilização da maioria assalariada se transforma em uma das forças materiais mais poderosas da história. Uma força material terrível, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas vagas revolucionárias no futuro.

Sim, otimistas. Alguns, incorrigíveis.

*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/Psol e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo