Paraíba

Coluna

“Sem justiça racial não há justiça climática”: desenvolvimento para quem?

Placa com direitos constitucionais quilombolas. - Lucia Andrade.
A IN [nº 111/2021, do INCRA] é uma afronta aos direitos constitucionais quilombolas

Por Eduardo Araújo e Victor de Oliveira Martins*
 

Na atual quadra histórica, há um embate por vezes considerado dicotômico entre a necessidade de desenvolvimento econômico e os direitos fundamentais que tratam da preservação da natureza e da defesa dos modos de vida dos povos tradicionais. Juridicamente, este pêndulo pró (neo)desenvolvimentismo não se sustenta, pois há uma série de normativas nacionais e internacionais prevendo que empreendimentos privados e/ou públicos não podem se sobrepor ao “meio ecologicamente equilibrado” (Constituição, art. 225, 1988) e nem aos “direitos de povos [tradicionais] interessados” (Convenção 169 da OIT, art. 15, 1989).

Em 26 de janeiro de 2022, circulou na imprensa e nas redes sociais, um parecer da Associação Brasileira de Antropologia sobre licenciamento ambiental de obras e afins que impactem territórios quilombolas, o parecer exige a suspensão imediata da Instrução Normativa (IN) nº 111/2021 de 23 de dezembro de 2021 do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), afirma o parecer que a IN “é mais um dos procedimentos institucionais voltado para a liberação dos territórios tradicionais para atividades do agronegócio, de mineradoras, de produtoras de celulose, geradoras de energia elétrica e obras de infraestrutura”. 

A IN é uma afronta aos direitos constitucionais quilombolas, não apenas aos seus territórios, que tem previsão no art. 68 dos Atos e Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), mas também à preservação de sua cultura e aos seus modos de vida conforme arts. 215 e 216 da Constituição de 1988. Em um sentido diferente da IN do INCRA, no ano de 2021, a Coordenação de Matéria Fundiária, tendo como interessado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, apresentou o Parecer nº 00.115/2021 relacionando o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e os direitos quilombolas em caso de dupla afetação (ex. um território quilombola enquanto unidade de conservação). O despacho nº 00668/2021 assinala: “a proteção dos espaços protegidos e a proteção aos quilombolas possuem fundamento na Constituição e, quando direitos previstos na Constituição colidem, a solução não se dá pela exclusão de um em detrimento do outro e sim pela ponderação” (PGF, 2021). 

Por seu turno, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) com o Coletivo de Assessoria Jurídica Joãozinhno do Mangal, acompanha a ADPF n° 742/2020 sobre o reconhecimento do direito à vida quilombola frente à Covid- 19 no Supremo Tribunal Federal (STF). Diante do impacto da IN nos modos de vida quilombola, a CONAQ protocolou, na mesma ADPF, um requerimento solicitando a justificativa do governo brasileiro sobre os motivos que levaram à edição da IN, visto que, a edição pelo INCRA desrespeita e ignora até o Grupo de Trabalho Quilombola instituído pelo STF na ADPF.

Diante destes posicionamentos é preciso realizar a seguinte indagação: para quem serve a IN do INCRA e o desenvolvimento que prejudica tanto a natureza quanto os quilombolas? 

Vejamos, os quilombos são espaços - tempos de resistências, no Brasil, fazem parte do real (e imaginário) contraponto ao modelo explorador na natureza e do escravocrata-colonial racista. O modo de organização coletiva, no qual territórios - corpos - espaços e conhecimentos estabelecem uma biointeração harmoniosa com a natureza (BISPO, 2015) desafiam a monocultura de saberes. Os quilombos incomodam o status quo, afinal de contas, as certificações pela Fundação Cultural Palmares e as titulações de seus territórios pelo INCRA estão paralisadas por interesses do agronegócio no atual governo federal. 

Recentemente, organizações preocupadas em estabelecer diretrizes de combate à crise ambiental, dentre elas a Articulação de Povos Indígenas do Brasil e a Coalizão Negra por Direitos participaram da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 (COP-26) - 1 e 12 de novembro de 2021 - na cidade de Glasgow.  A COP-26, no quesito de proteção das florestas, ressaltou a importância dos povos tradicionais que nelas habitam enquanto guardiões da biodiversidade, ficando a desejar na materialização de compromissos com os sujeitos mais vulnerabilizados. Como ressaltou a CONAQ, “sem justiça racial não há justiça climática”, visto que, a COP-26 poderia ter sido mais enfática sobre modelo econômico, justiça ambiental e combate ao racismo ambiental. 


Parte da comitiva do movimento negro na COP 26. / Marina Marçal

Na esteira das mobilizações por direitos, em janeiro de 2022, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos encaminhou à Corte Interamericana de Direitos Humanos o Caso n°12.569 - Comunidades Quilombolas de Alcântara vs. Brasil, a situação denunciada pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, Justiça Global, Sindicato das Trabalhadoras Rurais de Alcântara e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos em 2001, retrata mais de 40 anos de violações de direitos humanos devido à construção do Centro de Lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira.

Podemos apontar, de forma geral, que os setores dominantes estão por detrás das grandes crises da nossa atualidade (MARTINS e ARAUJO, 2021) e diretamente interessados na IN, estes grupos causam e vivem das crises, dentre elas a ambiental, conduzem um projeto de país no qual os latifundiários, a bancada do agronegócio, as grandes empresas de mineração, os grileiros, dentre outros, sempre lucram com modificações normativas e anistias das multas ambientais, sobrevivem da impunidade diante dos crimes individuais/coletivos cometidos contra às pessoas e comunidades, apostam na continuidade das manobras políticas de gabinete para alteração de INs, revogação/criação de leis e ocupação de espaços de decisão, a aposta é na manutenção da insustentabilidade e instabilidade das vidas. 

A posição contra a IN aposta em futuros dignos com o fortalecimento de instrumentos de direitos humanos ao passo em que consolida os direitos da natureza, bem como a ampliação das experiências de protocolos comunitários, de solidariedade agroecológica e o cumprimento da Convenção 169 da OIT, para quilombolas. Esta IN é mais um golpe racista.


Mulheres quilombolas praticando a agroecologia. / FAO

 

PARA SABER MAIS


ABA (Associação Brasileira de Antropologia). Solicitação de suspensão imediata da instrução normativa N. 111/2021 e seus efeitos: licenciamento ambiental em terras quilombolas pelo INCRA. Disponível em: http://www.portal.abant.org.br.

BISPO, Antonio. Colonização, Quilombos: modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa; Universidade de Brasília; Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2015.

CONAQ. COP26: “SEM JUSTIÇA RACIAL NÃO HÁ JUSTIÇA CLIMÁTICA”. 2021.  Disponível em: http://conaq.org.br/cop26-sem-justica-racial-nao-ha-justica-climatica/. 

MARTINS, Victor de Oliveira e ARAUJO, Alana Ramos. Crise Educacional e Ambiental em Paulo Freire e Enrique Leff: por uma pedagogia ambiental crítica. Educação & Realidade [online]. 2021, v. 46, n. 2, e105854. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2175-6236105854>.

PGF (Procuradoria-Geral Federal). DESPACHO n. 00668/2021/GABINETE/PFE-ICMBIO/PGF/AGU. Disponível em: https://sapiens.agu.gov.br/login (acesso livre, código 772584726). Acesso em: 01 de fev. 2022.

 

*Eduardo Araújo é Prof. do DCJ - Santa Rita (UFPB), coordenador do Projeto NEABI - Baobá Ymyrapytã; membro do Grupo de Pesquisa – Direitos Humanos decolonialidades e movimentos; pesquisador do Grupo de Pesquisa: GEPERGES - Audre Lorde (UFRPE). Victor de Oliveira Martins é discente do DCJ - Santa Rita (UFPB). Extensionista no Projeto NEABI - Baobá Ymyrapytã. Pesquisador Bolsista PROPESQ no Projeto O Supremo Tribunal Federal e a Crise Democrática: controvérsias públicas em torno da acusação de "ativismo judicial". Membro do Grupo de Pesquisa – Direitos Humanos decolonialidades e movimentos. 


 

Edição: Heloisa de Sousa