Paraíba

Coluna

Vivências e Relatos sobre a Cidade de João Pessoa

Imagem de perfil do Colunistaesd
João Pessoa em perspectiva. - Reprodução
"[...]temos nos interessado em compreender os sentidos que o Centro adquiriu ao longo dos anos"

Por Regina Nogueira*
 

“Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. No entanto, há uma relação entre ambos”.
(Ítalo Calvino In: Cidades Invisíveis).

 

“A vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda, e como recorda para contá-la” (MARQUEZ, G. G., 2002). Recorremos a Gabriel Garcia Marquez, em suas memórias – “Viver para contar” – para o início dos relatos sobre nossas vivências na cidade de João Pessoa/PB. Partimos do pressuposto de que a nossa cidade nunca se nos apresenta como apenas mais uma cidade. Reconhecemos que, no processo de recomposição de nossas memórias, instala-se o entrecruzamento de fatores conjugados na reconstrução das imagens, que traduzem nossa visão da paisagem urbana. De um lado, nossa formação universitária, enquanto geógrafa, e a necessidade de identificação de teorias que representem o substrato discursivo, concernente à nossa pesquisa e aos métodos que lhe são adequados, e, do outro, o peso da memória afetiva, os sentimentos de pertencimento mútuo ao lugar, a assumida postura topofílica de uma cidadã nordestina fortemente ligada aos valores culturais de sua terra.


Do amálgama destas duas situações, intrinsecamente referentes ao lado profissional e individual, resgato parte de minha vida, quando vivi em um bairro central, o Roger. A partir desse bairro, construí minha experiência de tempo e de espaço no universo da cidade de João Pessoa. Ao longo dos anos, acompanhei de perto as transformações que se processaram na paisagem urbana da cidade, principalmente aquelas que ocorreram nos bairros centrais – Varadouro, Centro, Tambiá, Jaguaribe, Torre. Observei de perto as transformações que se processaram na paisagem urbana dessas áreas, a expansão do comércio e dos serviços, a qual se concentrou, por muitos anos, no bairro do Varadouro e no Centro, expandindo-se, ao longo do tempo, em direção à Lagoa do Parque Sólon de Lucena e ao bairro de Tambiá, formando o que nós, geógrafos, denominamos de desdobramento do centro.

Acompanhei, também, a saída constante de familiares e amigos dos bairros centrais em direção a novas áreas residenciais nos bairros que se constituíam ao longo da Avenida Epitácio Pessoa. As famílias de renda mais alta deslocavam-se para os bairros de classe média alta – Bairro dos Estados, Miramar, Expedicionários, Tambauzinho; aquelas de menor poder aquisitivo passaram a residir no Bairro da Torre, no Treze de Maio, no Bairro dos Ipês e nos conjuntos habitacionais construídos a sudeste da área central da cidade, sendo estes novos bairros planejados como fruto da política habitacional do Governo Federal, num período em que o Capitalismo de Estado funcionava na facilitação da aquisição da casa própria por funcionarios públicos e outras categorias profissionais representativas da classe média.   

Assim, paulatinamente, acompanhamos a paisagem urbana desses bairros modificando-se, transformando-se e abrigando novas modalidades de atividades econômicas que, muitas vezes, não se adequavam à área, tendo em vista sua singularidade histórica. Vimos alguns bairros centrais perderem seus atrativos como área de moradia. A classe média que se constituía, mediante a ampliação de ofertas de emprego nos setores secundário e, principalmente, terciário, incluía-se no processo de urbanização e buscava mais qualidade de vida, situação que o Centro não mais atendia. Além, disso, o Centro também convivia com o movimento de  saída de suas atividades econômicas,  buscando outras áreas locacionais da cidade, as quais se apresentavam como mais bem dotadas de condições urbanas e de infraestrutura – setores dotados de estacionamento, modernas instalações arquitetônicas, melhores vias de circulação e acesso, melhores serviços urbanos e mobilidade urbana. 

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, o que hoje denominamos centro histórico de João Pessoa teve sua concentração de capital financeiro diminuído e o seu conjunto imobiliário deteriorado, e os recursos públicos migraram para outras partes da cidade. Assim, ao nos deslocarmos cotidianamente pela cidade, observávamos o surgimento de novas áreas, que seguidamente, recebiam equipamentos urbanos e novas atividades econômicas e repertório de serviços. A chegada dessas atividades imprimia, na paisagem urbana, novos ritmos e significados que, anteriormente, eram características apenas do Centro. Vale salientar que, por uma questão temporal, estas novas atividades já traziam a fisionomia de formas de modernidade, que nunca foram características do Centro. A cada viagem, surpreendia-nos a nova realidade que se constituía diante dos nossos olhos, observando as Avenidas Epitácio Pessoa e José Américo de Almeida (Beira-Rio); as casas misturavam-se ao comércio e aos serviços, o movimento de automóveis crescia consideravelmente e era constante, e, pouco a pouco, estabeleciam-se novos corredores de circulação, que abrigavam funções e usos antes só encontrados parcialmente, na área central da cidade.

Foi nesse espaço vivido que estabelecemos nossos primeiros contatos com a modernidade em sua plenitude. Ou seja, as transformações que se processavam no mundo e no lugar, influenciando as nossas impressões sobre a cidade. Cremos que, por isso, temos nos interessado em compreender os sentidos que o Centro adquiriu ao longo dos anos, com novas formas de urbanização e modernização, processo expresso por meio das alterações no uso do seu espaço urbano, tendo em vista a natureza das trocas ali instaladas ao longo do tempo, dadas as transformações estabelecidas por meio das relações entre os agentes produtores desta área, o restante da cidade e as influências da rede urbana regional. 

O crescimento e a dinamização de novas funções urbanas em direção a outras áreas da cidade – no sentido oeste-leste e sudeste – sobretudo em direção à Avenida Epitácio Pessoa e suas transversais, subtraíram do Centro Antigo atividades que antes os caracterizavam. No momento referente às décadas de 1960 a 1970, assistiu-se a novas formas de ressignificação econômica e social desses espaços. Assim, ao mesmo tempo em que perdia seu significado como área de moradia e de comércio de artigos finos, o Centro Antigo voltava-se para a prestação de serviços públicos, bancários e comerciais, enquanto abrigava na condição de moradores uma população de renda mais baixa. 

Parte-se do pressuposto de que a sociedade, ao produzir-se, o faz num espaço-tempo determinado, por meio de uma prática social, produzindo um espaço urbano com características, formas e dimensões próprias (CARLOS, 2011). Assim, as marcas do intenso processo de transformação e reestruturação que vivemos hoje, em meio ao processo de globalização, estão impressas, tanto na paisagem como no cotidiano vivido pela sociedade. 

Lugar onde se manifesta a vida em sociedade, a cidade é condição, meio e produto da realização da sociedade (CARLOS, 2001) em toda a sua multiplicidade. Nesse sentido, ao produzir sua existência, a sociedade reproduz, continuamente, o espaço. Assim, por contemplar uma dupla dimensão - de um lado, é localização; de outro, encerra em sua natureza um conteúdo social dado pelas relações sociais-, a cidade expõe a realização da vida humana nos atos da vida cotidiana, enquanto modo de apropriação que se realiza por meio do uso (CARLOS, 2011).

A cidade de João Pessoa, suas transformações, revelam a aliança entre o Estado e o capital privado na produção de um tipo de cidade, ou áreas urbanas específicas, reinventadas como mercadoria. Todavia, apesar do processo em curso, o sentimento de pertencimento está presente quando nos debruçamos sobre a sua história, suas transformações, assim nesse relato está presente nossas vivências no lugar. 


*Dr.ª em Geografia Urbana, Prof.ª da UEPB, Departamento de Geografia- Campus III Guarabira
 

Edição: Heloisa de Sousa