Paraíba

GUERRA CULTURAL

Artigo | Lei Rouanet - Ideologia é igual mau hálito, só os outros tem!

A falácia de que a arte e cultura são dominadas por esquerdistas que "mamam" na Lei Rouanet

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Cultura no alvo é alvo de mentiras e perseguição no Governo Bolsonaro (PL). - Reprodução

Nunca houve tanta ideologização da Lei Rouanet como no atual governo. Este mecanismo de investimento em cultura nunca foi o que prometeu ser ou fazer, pelo fato de ter sido modelado dentro de políticas do que se chama neoliberalismo. A Lei Rouanet é, na prática, a Mão Invisível do Mercado escolhendo quem será incentivado e como a marca do incentivador usará isso.  É necessário dizer que uma das justificativas da criação da Lei, em 1992, é que, com esse mecanismo, seria criado nos empresários a cultura do patrocínio e do mecenas. Algo que foi defendido sem qualquer base teórica e que ao longo dos anos provou ser uma charque de carne de unicórnio.

 

Como Funciona a Lei Rouanet? Renúncia Fiscal!

 

Artistas ou produtoras submetem suas propostas numa plataforma virtual chamada Salic (salic.cultura.gov.br). Realizadas as análises, se promove a publicação no Diário Oficial e o Governo abre duas contas bancárias (captação e movimentação) para o proponente que fica apto a captar. O proponente ou uma agência captadora ou por edital público ou privado busca o recurso. Somente empresas com lucro real podem incentivar. Se o projeto for enquadrado no art. 18,  a empresa poderá destinar até 4% de seu Imposto de Renda devido para projetos culturais, que pode variar de R$10 mil a R$300 milhões, segundo o tamanho da empresa. Nos casos de projetos classificados no art. 26 da lei, a empresa poderá investir de 30% a 70% do IR.  A Pessoa física poderá destinar até 6% do IR.  A empresa se interessará em incentivar por filosofia da empresa ou pela parte de divulgação. Até 2021, o valor de divulgação que interessava a empresa ver sua marca era de 30% do valor global do projeto. Se diz isenção fiscal ou renúncia fiscal. As empresas podem preferir projeto de art. 18 ou 26, segundo suas estratégias. As que optam pelo art. 26 conseguem isenção se tiver uma planificação de contabilidade capacitada, todavia as empresas preferem os projetos enquadrados no art.18. As empresas poderão ter a visibilidade de sua marca associada a um projeto cultural.

 

Guerra Cultural e a falácia de que a arte e cultura são dominadas por esquerdistas

 

 A Guerra Cultural é uma ideologia que acusa setores da sociedade como a educação e artes de defenderem o marxismo. Educadores seriam meros panfletários de esquerda e artistas seriam a agitação e propaganda do Marxismo Cultural e ambos deveriam ser combatidos. Neste sentido, criaram algumas falácias que tiveram acolha de alguns eleitores, principalmente religiosos e conservadores, mas não somente esses.

 
Se for tomados os dados da tabela abaixo se verá que os maiores captadores de recursos são grandes organizações, fundações a associações. A CPI da Lei Rouanet, em 2017, em seu relatório final não mencionou de forma alguma uso ideológico de esquerda nas ações culturais incentivadas, nem em volume de recursos, nem em segmentos da arte e cultura. A razão disso é simples e conhecida desde a origem da Lei. O projeto passa por vários crivos e após aprovado 50% deles, em média, não conseguem captar. O grande censor de projetos com tendências políticas é a famosa Mão Invisível do Mercado, afinal, o projeto só recebe recursos da empresa que deseja associar sua marca àquele bem cultural. 
 


As maiores captadoras pela Lei Rouanet 2010-2018. / Versalic e Salicnet

A falácia que a Lei Rouanet é uma mamata da esquerda se expressa no fato de que a CPI da Lei Rouanet não verificou uma preferência e exclusividade de artista de esquerda que viviam exclusivamente de projetos incentivados pela Lei Rouanet. Há, porém, algumas fundações e associações de grande envergadura que por anos trabalham com reedição de projetos e nunca precisam se preocupar em captar.

Desde os ataques iniciados ao Ministério da Cultura, em 2016, até os dias atuais, inicia-se uma caçada a projetos de músicos e artistas com ideias progressistas ou com filiação partidária mais à esquerda e que por vez ou outra são pinçados para serem usados como exemplos de facilitações, mamatas e outros termos ideologizados e pejorativos que foram rapidamente acolhidos pela classe trabalhadora conservadora e ou religiosa. Os políticos e religiosos dessa linha só faltaram utilizar o termo “Arte Degenerada” para convencer essas pessoas de que o governo investia em arte contra a família, contra os bons costumes e em favor do comunismo. Nunca importou para essas pessoas os dados, as comprovações e informações concretas em razão de que o impacto ideológico de falar essas inconsistências possuem fácil assimilação. 

 

A falácia da centralização dos recursos 

 

Esta questão foi a apropriação de uma crítica da esquerda e de alguns especialistas com fundo de verdade, mas não absoluto. A crítica baseada em dados e endereços dizia que 80% dos recursos da Lei Rouanet eram investidos em 2 quarteirões de São Paulo e um do Rio de Janeiro. O uso ideológico dessa meia verdade pela esquerda dizia que havia concentração no eixo Rio-São Paulo. Há muitas coisas para acertar nessa crítica superficial e que eu já fui defensor incauto dela. Os maiores captadores estão nesses lugares que são também estados carros chefes da cultural nacional. A indústria cultural que mais emprega artistas e demais profissionais estão nesses cidades. Empregam profissionais de todo o país.

Outro fator que precisa ser estudado é que grandes companhias circulam todo o país e o único modo de um grupo de renome sair de são Paulo e ir para o Amapá é através de projetos da lei Rouanet porque os custos de circulação são altos. Deste modo, a suposta concentração de recursos não levou em conta a circulação interna aos estados onde ocorreram as captações e nem a difusão pelo Brasil. A crítica central, portanto, não é a concentração de recursos, mas que o tal do espírito de incentivador é mais acolhido nesses estados e os incentivadores desejam que suas marcas sejam vistas nesses mercados e, por fim, que os potenciais incentivadores com sede nos estados desconhecem ou temem incentivar, portanto, o problema da centralização está também no fato de que os estados de maior concentração de recursos percebem mais vantagens em incentivar do que nos estados fora desses eixos.


A falácia de auditorias permanentes

 

Este governo alimentou um “Macartismo Tupiniquim” através de grupos como MBL, alguns religiosos e políticos conservadores. Essas pautas ajudaram alguns a se elegerem e/ou a se reelegerem. Todos os secretários de cultura, desde o início do governo, falavam de auditorias na Lei Rouanet, porém foi Mario Frias que conseguiu realizar os piores entraves.

Se for verificado os dados de 2019 e 2020 não houve redução de aprovações, ao contrário, teve aumento de aprovações. Porém, no ano de 2021 se iniciou um ataque às comissões de análise, atrasos de contratação e imposições sanitárias que o governo no geral é contra, mas que para projetos da Lei Rouanet passou a ser um entrave.

Em abril de 2021, se lançou uma portaria que exigia mudança dos projetos já aprovados para o modo virtual, híbrido ou com medidas sanitárias para projetos com público. Essa medida que já deveria ter sido tomada em 2020 passou a ser um filtro. A demora de montar uma nova composição do Conselho Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) causou atrasos e serviu para criar outros filtros ideológicos e finalmente, em outubro de 2021, Mario Frias dispensou 174 pareceristas sobre alegações de que produziam “pareceres insatisfatórios”. Recentemente o Tribunal de Contas da União (TCU) encaminhou um questionário para proponentes de projetos com foco nos anos de 2020 e 2021 com perguntas sobre atrasos, recusas por discriminação, demora de análise, prejuízos pelas medidas sanitárias impostas e podemos suspeitar de que o TCU foi provocado a investigar se ocorreu algum ato lesivo por condutas de imparcialidade e condutas que ferem a administração pública, fruto do Macartismo Tupiniquim.

 

Governo pegou firme no pincel e tirou a escada


O atual governo pegou essas falácias e as adotou com o argumento de que havia centralização de recursos e iria democratizar o acesso para todo o Brasil, sendo que a primeira medida, em 2019, foi reduzir Projetos Simples ao teto de 1 milhão de reais e grandes projetos, como Carnaval, ao teto de 5 milhões, deixando projetos plurianuais de fundações sem teto. Por isso que recentemente a Fundação Fernando Henrique Cardoso teve incentivo de R$17.000.000,00.

Se observarmos os investimentos da Lei Rouanet, ano a ano se percebe que o valor cresce muito gradualmente e os incentivadores são os mesmos ou como pequenas variações. Os que mais investiram e ainda investem são estatais como Petrobras, Vale, Eletrobrás e de capital misto ou grande participação acionária do Estado.

A Petrobras é a grande incentivadora histórica, ação interrompida em 2012 e, definitivamente, em 2016 com o golpe e sumiu do topo, mas ainda é uma campeã em todos os quesitos e acumula incentivos de R$1,7 bilhões. As estatais e empresas de capital misto são disparadas as principais responsáveis pelo incentivo na Lei Rouanet e não o setor privado. Somados os incentivos das principais estatais e de capital misto se chega a R$ 5 bilhões em toda a história e acumulam, desde 1993, R$ 19,6 bilhões de investimento. Desde 2013, a Petrobras deixou de figurar como maior incentivadora e foi precedida a liderança pelo BNDES, depois a Vale. Em 2017, a Petrobras não aparece nem entre a 40 maiores incentivadoras do Brasil e isso representou uma retirada de 80 milhões/ano, em média, da cadeia produtiva da cultura, em parte por mudanças de objetivos e agravados pela Lava Jato, que teve como foco central a Petrobras. 

Em resumo, os valores mais descentralizados e democraticamente distribuídos são os realizados por estatais ou capital misto e o que o governo tenta resolver com firulas ideológicas já era feito por essas empresas e com muito profissionalismo e transparência.


A nova mentira do teto de 1 milhão

 

Com a argumentação desse teto, o governo provocou uma nova mudança reduzindo para o teto de 500 mil reais para projetos simples e cada proponente a concorrer, no máximo, com dois projetos, deixando as demais áreas com tetos de 6 milhões, mas se for patrimônio e fundações, o teto pode ser ajustado. Nota-se pelas informações, que não houve crescimento global de valor incentivado expressivo e se acredita que dividindo esse valor global se apoiará mais projetos, inclusive com a chave mágica que a cada 1 milhão de incentivo se destinará 10% para projetos não incentivados. Assim, basta o incentivador doar 999 mil reais que não precisa incentivar um de 100 mil. Também podem destinar a projetos correlatos e criar mil estratégias para continuar incentivar seus pares históricos. A firula ideológica agrada aos conservadores, mas nunca se confirmará na prática. Outras questões podem ser levantadas, afinal, grandes fundações como a FHC, Roberto Marinho, entre outras não teriam o mesmo aporte que já tiveram dois anos seguidos.


 A nova mentira do incentivo apenas duas vezes

 

As mudanças ocorridas em fevereiro de 2022 definiram que cada incentivador só poderia investir 2 anos seguidos. O governo imaginou que, se empresas tivessem que mudar de projetos de sua preferência, poderiam ampliar para outros projetos. Isso é fácil mudar, basta uma produtora criar um CNPJ diferente, dar outra roupagem ao projeto e não haverá legalmente como impedir essa preferência. Há muitas estratégias de driblar essa tolice. É outra firula ideológica para agradar um eleitor muito limitado a informações filtradas e de pouca profundidade.
 


Maiores empresas incentivadoras do Brasil. / Versalic

 

A Paraíba e a ideologia da Lei Rouanet

 


Historicamente, a Paraíba tem uma média de projetos apresentados com potencial de captar 10 milhões/ano, mas a verdade é que se realiza uma captação de R$1,5 milhão nos melhores anos. Há anos de pouquíssima captação. Poucas empresas de envergadura nacional incentivam os projetos da Paraíba. Sendo as empresas instaladas na Paraíba que investem mais. Tal fato só muda quando o projeto incentivado consegue, por edital nacional, obter o valor de incentivo. A captação é portanto o maior gargalo para estados com uma cadeia produtiva da cultura pouco desenvolvida. Ainda assim, os projetos captados concentram suas ações em João Pessoa, mas existem esforços de interiorizar tanto no estado como no Nordeste e seus interiores. 


Maiores Investidores na Paraíba 2018. / Versalic

 

As recentes mudanças tiveram um corte de 30% para 20% na divulgação para projetos regulares. Esse valor era a principal moeda de troca no momento de solicitar um incentivo, pois num projeto de 300 mil reais se destinaria R$90 mil para publicidade e há empresas que aproveitam esse valor. Um prejuízo local é que vários projetos como Festival Aruanda e Natal Energisa, entre outros, recebem recursos de um mesmo patrocinador em montantes que outras empresas não desejam incentivar. Poderão esses projetos, em caso disso não mudar, ficar com lapsos de edições ou redução de suas propostas. De todo modo, mais atrapalha do que favorece, dando para o caso da Paraíba um efeito nulo em todos os seus vieses ideológicos.


Projetos da Paraíba pela Lei Rouanet – 2009-2018. / Versalic

 

Cuide de seu hálito que eu cuido do meu! A Lei Rouanet é pura ideologia de mercado


Um debate se abre e a frase popular: 'Mau hálito só os outros tem!'  serve para dizer que quando alguém diz que o outro está sendo ideológico, isso só revela a própria ideologia e que isso é saudável quando se tem igualdade de armas, votos, lugar de fala e debates democráticos. Não prescindimos de ideologia no trato da sociedade e algumas provocam danos e outras permitem correções, mas uma ideia pura e limpa de ideologia no trato social é bem difícil de extirpar. A ciência, a democracia, a legislação e a crítica dialética ajudam a amenizar e até erradicar ideologias destrutivas. Tudo isso é saudável e precisa ser multilateral. Como este governo não prima pelos valores democráticos não se pode pedir nada além de que ele acabe e, se houver crimes, que o TCU e demais instâncias responsáveis cumpram seus papéis o mais adequadamente possível.

A Lei Rouanet, do meu ponto de vista ideológico, deve ser extinta ou limitada e os 2,5 a 3 bilhões de reais que ela representa atualmente deve ser substituído por outro mecanismo 100% público. O professor de políticas públicas da UFPB, Marco Acco, um dia nos explicou que a Lei Rouanet desresponsabilizou o orçamento federal de reverter recursos para difusão cultural. Hoje, o orçamento federal da Cultura também oscila de R$ 2 a 3 bilhões, só que isso pode reduzir em um ano de crise, com a queda de arrecadação fiscal. O governo criou uma regulação pela a arrecadação fiscal. Anos bons de arrecadação terão maior renúncia fiscal pela Lei Rouanet e anos ruins, menos. O mercado então regula esse investimento e o Estado faz paliativos por editais que figuram mais como marketing  “estou fazendo algo” do que com políticas públicas. Os produtores e artistas não podem lutar contra a queda de arrecadação. Só que os cidadãos sempre cobrarão aumento de verbas públicas para cultura independente do mercado. 

Essa decisão é puramente ideológica, não há um respaldo científico e estatístico que esse é o melhor modelo e isso só não foi totalmente derrubado porque as empresas têm forte interesse em manter assim. Há forte correlação de forças para isso permanecer exatamente como está por benefício próprio empresarial e talvez porque se os projetos aprovados por mérito forem incentivados diretamente por editais federais, sem o crivo dos capitalistas e financistas, se poderá ampliar um recorte da democratização da cultura que ampliaria a formação cultural transformadora. 

A Lei Rouanet é o que traz o pão para uma grande parte dos trabalhadores da cultura, desde que acorrentados.

 

*Antônio Sobreira é Doutor em Geografia pela Faculdade de Ciência e Tecnologia (UNESP). Tem experiência na área de Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: produção cultural, arte educação social, pensamento geográfico, anarquismo, formação de professores, ensino e cidadania, agrotóxicos e meio ambiente. Atuou na auto-gestão do Ponto de Cultura Prudente em Cena-Federação Prudentina de Teatro e Artes Integradas- FPTAI, Pres. Prudente-SP e como palhaço, equilibrista, malabarista e músico excêntrico do Grupo de Circo Teatro Rosa dos Ventos, Pres. Prudente - SP e autor do blog: educanarquista.blogspot.com (2011-). Ex-Gerente de Identidade Cultural da Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba. 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Heloisa de Sousa