Paraíba

DESPEJO DE DUBAI

Artigo | O despejo de Dubai e a Constituição: há salvação para o Direito?

"Aos olhos do Poder Público, em Dubai não havia seres humanos"

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Despejo de Dubai, em João Pessoa, no dia 23 de novembro. - Reprodução

A autora Shoshana Felman afirma que os tribunais são o principal espaço para a reencenação e confirmação dos traumas sociais. A busca da justiça seria substituída pela repetição desses traumas durante o julgamento. Haveria uma negação encoberta da Constituição e dos direitos fundamentais, que se converteriam em meros instrumentos para a legitimação da violência praticada pelo Judiciário. O despejo dos moradores de Dubai, ocupação que se situava na Zona Sul da cidade de João Pessoa, desponta no cenário pré-natalino para confirmar a colocação de Felman.

Quase oitocentas pessoas foram desalojadas. Entre elas, havia crianças, idosos e deficientes, grupos vulneráveis que contam com especial proteção do Direito e das instituições. É o que dizem a Constituição e as leis. Por isso, antes de haver alguma solução adequadamente planejada para o problema da falta de moradia, nenhuma decisão judicial poderia retirar os vulneráveis das suas casas improvisadas. Mas na verdade isso não importa na dinâmica do sistema de justiça. É um detalhe incômodo, um obstáculo, uma irrelevância, dentre tantas outras irrelevâncias jurídicas, que são comuns no funcionamento do aparato institucional. A prática das instituições jurídicas situa os direitos fundamentais como elementos de segunda classe numa ordem jurídica que nem mesmo o sistema de justiça compreende em sua unidade.

Aos olhos do Poder Público, em Dubai não havia seres humanos. Se ao menos uma pessoa reconhecida como tal vivesse na comunidade, o desfecho do caso seria necessariamente outro. Teria que ser. Também não havia homens, mulheres e crianças tratadas como bichos em Dubai. Nem isso. Afinal, nossos avanços civilizacionais consideram que os animais possuem ou deveriam possuir alguma dignidade. Maltratá-los é crime. E ficamos certamente desolados quando alguém abandona um cachorrinho na rua. Um necessário passo na construção da ética para a sociedade tecnológica de que nos fala Hans Jonas.

Em Dubai havia inimigos, indivíduos odiados ou desprezados, portadores dos piores estigmas sociais. São como presidiários que andam a céu aberto sem qualquer pudor, que arrastam a sua miséria, sem casa, sem comida, sem saúde, ignorantes e maltrapilhos, ferindo nossa virtuosa sensibilidade de classe média. Pena de morte pra eles! Que sejam eliminados, torturados e levados para longe. Não desejamos vê-los, nem saber deles. São escória. Temos nojo. O final do ano está chegando, estamos entre amigos e familiares, e Dubai nos permite celebrar o avanço da eugenia social. 

O Direito quase sempre é capturado pelos estigmas sociais. Um deles é a pobreza, mas também a criminalidade, a cor da pele e a falta de moradia. A prefeitura de João Pessoa também informou no processo que os moradores de Dubai prejudicavam o meio ambiente e o urbanismo. Um momento. Não entende o papel da prefeitura no caso? O terreno ocupado pela comunidade Dubai pertence ao município e a ação para despejar as pessoas foi movida pela prefeitura. Sigamos.

Esses estigmas sociais também capturam a perspectiva institucional. A decisão que determinou o despejo de Dubai levou em conta todos eles. Na prática, os direitos das pessoas afetadas foram convertidos em equívocos da Constituição ou em interpretações errôneas das suas normas. Afinal, como é possível atribuir direitos fundamentais a uma criança de sei anos que vive numa comunidade de pessoas sem moradia? No imaginário coletivo, os estigmas sociais podem ou costumam eliminar a humanidade dessas crianças e dos grupos afetados por eles. Os nazistas, por exemplo, precisaram desumanizar os judeus para enviá-los às câmaras de gás e dar origem ao Holocausto. Em pleno processo (judicial) de desumanização, onde fica a ideia de que as decisões judiciais devem se basear no Direito?

A Constituição e as leis, perdidas nos corredores mofados do sistema de justiça, cumpriram o seu papel tradicional em casos que envolvem o direito à moradia dos grupos vulneráveis: justificar a violência cometida contra quem deveria ser protegido pelo Estado. Nada além da mais desavergonhada instrumentalização. Dessa vez, o trauma social foi gerado pelo próprio sistema de justiça. O Ministério Público, a quem cabe proteger os vulneráveis, nada fez. O Judiciário, instância privilegiada de implementação dos direitos fundamentais, investiu ferozmente contra essas pessoas. Diante desse quadro desolador, é preciso perguntar: ainda há salvação para o Direito?

Precisamos fazer uma separação entre o Direito e as instituições que o aplicam. O Direito em si é inevitável. É um dos caminhos para organizar a vida social. Desde tempos imemoriais, com registros arqueológicos que o identificam na pré-história, as normas do Direito estão presentes para determinar o modo como os grupos humanos devem funcionar. No Brasil de hoje, o Direito consagra a dignidade da pessoa humana e a sua proteção em todas as esferas da vida social, com a prevalência dos direitos dos grupos socialmente vulneráveis. Se assim determina o Direito, como explicar juridicamente o despejo de Dubai?

Este é o ponto. Não há justificativa jurídica para esse tipo de decisão. A justificativa real está no mundo das paixões, das ideologias e dos valores, tudo permeado por doses elevadas de indiferença e falta de contato do sistema de justiça com a vida vivida pelas pessoas. As paixões impulsionam o preconceito e o desprezo pelos grupos socialmente vulneráveis. A visão ideológica, por sua vez, muito ligada às paixões, situa a propriedade acima dos demais direitos fundamentais, abraçando uma perspectiva ultraliberal vedada pela Constituição de 88. No propósito de melhorar as condições de vida no país, a ordem constitucional previu a função social da propriedade como única configuração da propriedade privada no Brasil. Os valores, finalmente, justificam subjetivamente a decisão porque o magistrado tem a impressão de que a decisão é adequada porque ele decidiu de acordo com o que pessoalmente considera correto – é o fantasma do livre convencimento motivado assombrando as nossas vidas.

As pessoas, porém, precisam ser julgadas pelo Direito e não por valores, mesmo que eles aparentemente sejam justos e elevados. É fácil entender por que isso é necessário. Uma sociedade não pode contar com a superioridade intelectual e moral de quem quer que seja para solucionar os seus problemas jurídicos. E não pode contar porque essa superioridade é sempre relativa e, via de regra, serve apenas para justificar a arbitrariedade de profissionais vaidosos, autoritários e distanciados dos casos concretos e das suas particularidades. E ninguém deseja ser julgado com base na verdade que os magistrados abraçam como suas. Os antigos tinham razão. O governo das leis é melhor do que o governo dos homens, uma vez que está menos sujeito às emoções e arbitrariedades encontradas na subjetividade de cada pessoa.  

Não pode haver salvação para o Direito quando ele for aplicado com base em paixões, ideologias e valores. E não há salvação porque nessas situações a proteção jurídica desaparece. Não incide sobre o caso. Essa fuga do Direito é uma constatação preocupante e cada vez mais comum. Talvez as preocupações com a Constituição e as leis tenham perdido a importância em um mundo cada vez mais ignorante, autoritário e cínico, presa de um teatro institucional onde quase nada importa além de formalidades, rapapés e manutenção de privilégios. As respostas estão no futuro.

O despejo de Dubai de fato reforça a conclusão de Shoshana Felman de que os tribunais quase sempre atuam para reencenar e confirmar os traumas sociais. Apareceriam, assim, como um contraponto ou uma negação direta do Estado Democrático de Direito. Essa conclusão é importante para explicar essa sensação de inutilidade da justiça que as pessoas vulneráveis vivenciam no seu dia a dia. Também demonstra que a retórica dos direitos é extremamente seletiva numa sociedade como a brasileira, excludente, desigual, autoritária e fundada sobre bases estruturais escravocratas. Em Dubai, o Estado, o Município, o Judiciário e o Ministério Público se uniram para impor o que o Direito não impõe: a violência de Estado à margem do Direito.

Perguntar pela salvação do Direito pode parecer quixotesco. Talvez seja. O despejo de Dubai e a violência contra os direitos fundamentais que ele promoveu gritam para os ouvidos que se dispuserem a ouvir. A realidade do sistema de justiça desconsiderou o Direito, institucionalizando a marginalização social e deixando de lado a proibição de despejar as pessoas durante a pandemia de COVID-19. Até a crise sanitária cede à arbitrariedade do sistema de justiça contra as pessoas que buscam junto ao Poder Público e os movimentos sociais um caminho para a implementação do direito à moradia assegurado pela Constituição. 

Mas a pergunta sobre se o Direito ainda tem salvação é necessária. Afinal, se nós, profissionais do Direito, não servimos para aplicar corretamente a Constituição e as leis, para que servimos os profissionais do Direito?

*Advogado e professor de Direito Constitucional da UEPB. 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Heloisa de Sousa