Paraíba

ENTREVISTA

Antropóloga fala sobre homenagem a Iemanjá, história da tradição e diversidade religiosa

“Iemanjá tem presença marcante [...] As práticas religiosas repercutem no imaginário popular”, diz Cristiane Nepomuceno

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |

Ouça o áudio:

Durante a 54ª edição da Festa de Iemanjá! Praia de Cabo Branco, João Pessoa, 2019. - Diego Nóbrega

A homenagem a Iemanjá é uma tradição na Paraíba e em muitos estados do Brasil. Diversos rituais advindos da fé em Iemanjá estão presentes no nosso cotidiano, como pular sete ondas na Virada do Ano. Na última terça-feira, dia 07 de dezembro, a Festa de Iemanjá foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial pela Assembleia Legislativa da Paraíba. O reconhecimento se deu através do projeto de lei 1.539/2020. 

Para entender mais sobre a celebração a Iemanjá que, na Paraíba, acontece no dia 08 de dezembro, conversamos, no Programa Paraíba de Fato, com Cristiane Nepomuceno. Ela é antropóloga e professora na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 


Cristiane Nepomuceno, antropóloga e professora na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). / Arquivo Pessoal

Carolina Ferreira (BdF-PB) - Por que a celebração a Iemanjá é tão forte por aqui?

Cristiane Nepomuceno - Possivelmente, é pela mesma razão que a tradição é forte e presente em todo o Brasil. Iemanjá é uma divindade africana, um orixá feminino, que é concebido como a mãe de todos os orixás. Ela representa o poder progenitor feminino, a mãe universal. Portanto, essas características de grande mãe, de protetora, daquela que acolhe os filhos e filhas sem exceção, tornou o culto a Iemanjá, um culto muito forte. Inclusive, é uma tradição que vem ganhando cada vez mais consideração, mais valorização e mais reconhecimento da população.

No dia 8 de dezembro, temos duas datas de celebração religiosa: o Dia de Iemanjá e o Dia de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Se tratando do sincretismo religioso, quais os pontos que as associam e os pontos que as separam?

Bom, eu gostaria de partir do seguinte fato, que é a constatação de que o Brasil é uma nação multiétnica, uma nação pluricultural. Somos “produtos” do encontro de povos distintos e mundos distintos. Estavam aqui os indígenas espalhados por todo território e, sem nenhuma licença, aqui chegam os europeus que vão ocupar esse território.  Gradualmente, trazem para cá milhões de africanos e africanas sequestrados de suas terras para um regime de escravidão. É dessa “união” que vai se originar a sociedade e a cultura brasileira. Se tratando das nossas práticas culturais, a religião é uma dessas formas de manifestação. Quando tratamos dessa fusão, chamamos esse fenômeno de sincretismo. Então, seria o sincretismo esse fenômeno que se caracterizaria pela incorporação de um conjunto de crenças por outra crença, dando origem a uma forma peculiar de prática religiosa, que é o que acontece no Brasil a partir da junção dessas crenças distintas. O que contribui pra isso? A forma como os africanos e africanas foram tratados no processo de escravização: a eles foi negado o direito de professar sua fé e suas práticas religiosas. Houve uma imposição da religião católica. Assim, qual foi a estratégia utilizada pelas africanas e africanos para continuarem cultuando suas divindades, seus orixás? Foi camuflar essa religiosidade, ocultando os orixás através dos santos e santas católicas. Esse fenômeno aconteceu devido à associação de características dos orixás com os santos e santas católicas. Por exemplo, Iemanjá que é concebida como a mãe, a criadora, a protetora da família, a regente dos lares, a promotora do amor, da união, vai encontrar uma correspondência em Nossa Senhora. Mas, qual é o detalhe? É que não há uma única expressão dessa correspondência. Existem festas para Iemanjá, no Brasil, ao longo de todo ano. Essas festas de Iemanjá vão estar associadas a outras santas católicas. Por exemplo, aqui na Paraíba e no estado de São Paulo é o dia 08 de dezembro. Na Paraíba, a santa  católica associada é Nossa Senhora da Conceição. Já na Bahia, a festa acontece em 02 de fevereiro, uma das primeiras festas de rua dedicada à celebração de Iemanjá no Brasil, no início do século XX. A festa no dia 02 de fevereiro, além da Bahia, vai acontecer em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul. No Ceará, a festa acontece no mês de agosto e a santa associada é Nossa Senhora da Assunção. Se a gente pega o Rio de Janeiro, a celebração acontece na virada do ano, com todos aqueles rituais que levam milhares de pessoas às praias, para comemorarem o Ano Novo, pedindo proteção e agradecendo à Iemanjá. Portanto, as nossas festas dedicadas à Iemanjá têm uma aproximação no que diz respeito às características fundamentais, que são atribuídas à Iemanjá, que também vão ser encontradas nas santas católicas. 

Na minha compreensão, o que as separam são suas pertenças religiosas: santas católicas e um orixá, que está ligado à Umbanda e ao Candomblé. Mas, essa junção, traz um elemento que é importante que a gente fale, que é a mudança na imagem de Iemanjá. Ela é um orixá africano, então, ela vai ter características africanas. No entanto, nesse processo sincrético, a imagem que vai representar Iemanjá é uma mulher branca, com cabelos longos e lisos e, em algumas imagens, com olhos claros. Isso vai revelar uma negação das características africanas. Como diz Boaventura de Sousa Santos, é um epistemicídio, um apagamento da memória e da pertença e do vínculo com a África. Assim, é importante que a gente também pense a partir dessa perspectiva. 

Normalmente, qualquer tipo de celebração é repleta de rituais. Quais são os significados ritualísticos da homenagem a Iemanjá, no dia 8 dezembro? 

Apesar de ser uma festa de rua, é uma celebração religiosa. Essa festa começa nos templos, nos terreiros, nas casas, nas roças, nos sítios, nas vilas dos pescadores; os locais são os mais distintos. Em cada local, existe um conjunto de rituais distintos. Se tratando da festa de rua, a culminância da celebração, os rituais vão ser para demonstração do respeito e da fé dos filhos e filhas de Iemanjá. Eles acontecem em lugares formais, que ocorrem em locais sagrados, como também na festa pública, que, via de regra, estão relacionados às oferendas, que se revertem em presentes, na queima de velas, nos banhos, enfim, são os mais diversos. São para agradecer, pedir proteção, fertilidade, fartura na pesca, para atrair amor, fortalecimento. Assim, depende da necessidade de cada filho e filha de Iemanjá, da promessa que foi feita. O pedido, o pagamento ou o agradecimento da promessa é o que vai definir o ritual, como o banho, a cor da roupa, o presente. Nos últimos anos, há uma grande preocupação dos ambientalistas com essas oferendas, pois os presentes são esmaltes, espelhos, bonecas, bijuterias etc. Então, hoje existe uma tentativa de sensibilizar, para que os presentes sejam os mais próximos da natureza possível, por exemplo, as usuais flores ou que sejam confeccionados com produtos naturais, a fim de que possam facilmente ser tornados partes da natureza.

O que a festa de Iemanjá tem de cultura popular?

A cultura popular como expressão das tradições culturais de um povo, generalizada, que se construiu a partir da participação de um coletivo. Iemanjá tem presença marcante e forte, sendo ela o orixá mais popular do Brasil – acredito que com o maior número de festas de rua –, essas práticas religiosas, festivas repercutem no imaginário popular. Essa crença se expressa nas mais distintas manifestações populares no país: na música, na literatura, nas esculturas e pinturas, que ornamentam as casas, os jardins. Quem entre nós nunca pulou sete ondas na entrada do Ano Novo, pedindo bençãos ao mar? Todas essas práticas estão presentes no cotidiano do povo brasileiro, inclusive, associadas às nossas lendas, eu diria um sincretismo popular. A figura de Iemanjá também vai ser associada à mitologia indígena e à mitologia europeia. Na mitologia indígena, ela vai ser relacionada à Iara, que é um ser sagrado, misterioso, que protege os rios, os lagos. Na mitologia europeia, tem a ideia das ninfas, da sereia, daquela que habita o mar para sedução, para conquista. No âmbito das nossas práticas da cultura popular, nós observamos uma forte influência de Iemanjá, indiscutivelmente, nas nossas crenças, no nosso cotidiano, no que nós somos. 

Na Paraíba, existem várias religiões, sejam de matriz africana, indígena, católica, evangélica. Nesse campo, é importante falar de diversidade religiosa. Qual o papel da educação no sentido de que cada vez menos a intolerância religiosa seja uma realidade, principalmente, para religiões de matiz africana e indígenas, que passam, historicamente e socialmente, por intolerâncias?

Uma das mais marcantes características da sociedade brasileira é a sua diversidade, a diversidade étnica do seu povo e a diversidade cultural. Infelizmente, nós não conseguimos, até hoje, reconhecer essa diversidade com um bem, como expressão de riqueza. Infelizmente, o crime de intolerância religiosa está entre os três crimes de intolerância mais praticados no Brasil, o primeiro é o crime de racismo, o segundo é o crime de intolerância religiosa e o terceiro é o crime por orientação sexual. Quando é que nós vamos conseguir ultrapassar essa incapacidade – se tratando de uma nação multiétnica, pluricultural – e aprender a conviver, respeitosamente, com as diversidades que nos constituíram? Um dos princípios fundamentais da convivência humana é a tolerância respeitosa. Tem uma declaração da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) chamada Declaração de Princípios sobre Tolerância, que diz que a tolerância é a abertura do espírito, é a liberdade de pensamento, de consciência de crença, que a tolerância é expressão de aceitação e da valorização da riqueza que se expressa na diversidade cultural. Nós precisamos aprender o valor e o sentido da tolerância, aprender a conviver com o outro, com a diversidade que está no nosso entorno, que nos marca. Nessa perspectiva, a escola, a educação é um instrumento maior, é uma ferramenta fundamental, a fim de formar sujeitos com mentalidades diferenciadas, capazes de compreender que todas as expressões de fé são válidas e legítimas. Portanto, é importante que nós comecemos a pensar estratégias e tornar o ensino religioso, nas nossas escolas, efetivamente ensino religioso e não compreender essa proposta curricular como sendo reverter em doutrinação. 

Gostaria de finalizar, trazendo a lembrança extremamente valiosa, a festa de Iemanjá foi tornada Patrimônio Cultural Imaterial do Estado da Paraíba. O mais significativo é que esse projeto foi aprovado por unanimidade. Essa aprovação representa respeito à diversidade religiosa, reconhecimento de que, sim, as mais distintas manifestações religiosas são merecedoras de apreço, são bens culturais, são valiosas e são referências. Espero que essa conversa nos ajude a refletir sobre as situações que vivenciamos no nosso cotidiano e que, muitas vezes, estão presentes em nós, que é a dificuldade de conseguir conviver com a fé do outro. 


 

Edição: Heloisa de Sousa