Paraíba

VOCÊ TEM FOME DE QUÊ

Artigo | A Criminalização da miséria: o que é ser humano

Quem são os bichos-homens? Os que comem do lixo, ou os que deixam que pessoas cheguem a este estado deplorável?

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
19 milhões de brasileiras/os estão em situação de fome no Brasil.
19 milhões de brasileiras/os estão em situação de fome no Brasil. - Fotos: Scarlett Rocha

“Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem. ” - Manuel Bandeira

Estas últimas semanas fomos bombardeados por notícias que se tornaram, infelizmente, cotidianas: uma mulher roubou comida para ela e os filhos, acabou presa sob justificativas questionáveis para humanos com humanidade, e enfim, quando finalmente livre, disse: “Eu quero voltar a ser gente”. Rosângela Melo, 41 anos, uma pessoa tratada como menos gente, menos humana, menos viva, se desculpou por roubar comida e por estar com fome. Como havia escrito antes: A fome no Brasil, tem rosto de mulher. Podemos ver então este rosto estampado nos jornais. 

O caso foi exaustivamente discutido nas redes sociais, nas ruas, em casa, até que a anestesia que afeta nossa população em tempos tão miseráveis se transformasse em algum tipo de revolta, de indignação, de humanidade para com o outro. A Justiça de São Paulo havia decidido em favor da manutenção da prisão de Rosângela, após a prisão em flagrante ser convertida em prisão preventiva a pedido do Ministério Público de São Paulo, mesmo o STF declarando ilegal a prisão de pessoas que furtam por necessidade, por fome. É chamado de “princípio da insignificância” ou “estado de necessidade”.

O momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegidas pelos poderes públicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de delinquir”, escreveu a juíza Luciana Scorza em sua decisão de prender uma mãe de cinco filhos que furtou miojo e Coca-Cola. (PONTE, ORG, 2021).

A Ponte Jornalismo, em entrevistas com advogados criminalistas, descreve o que seria o furto famélico e a posição de juízes que no auge da sua renda mensal de R$59 mil mensais, como é o caso do desembargador que manteve a prisão de Rosângela, taxam como nocivas, pessoas em estado de fome e maior vulnerabilidade.

Em outros estados pelo Brasil, filas de pessoas se reúnem para catar restos de ossos e carnes dos supermercados. Em Fortaleza, num bairro nobre da cidade, mulheres e crianças reviram o caminhão de coleta de lixo em busca de comida. O vídeo que nos aproxima cada vez mais do estado animalesco do humano, transforma quem assiste em um telespectador da miséria, anestesiados, até que o choque nos coloque frente ao pensamento: “Meu Deus! Como chegamos até aqui! ” Pois bem: A fome está em cada esquina, em todos os jornais, chegando em presídios por ordens de quem tem à mesa, até o que rejeitar. A criminalização do desespero e da miséria, condena famintos e os trata como animais, todos os dias.

Na mesma onda há a higienização dos ambientes e de exclusão dos povos famintos da paisagem, que ironicamente multiplicam-se pelos territórios, como se transbordassem pobres e famintos nas ruas, nas praças, nas portas de condomínios de luxo. Quanto maior o esforço em não querer vê-los, maior se tornam suas presenças no dia a dia. E aí a violência se veste de terno e gravata, de farda e uniforme, para o trabalho de limpeza dos bichos-homens aglomerados na paisagem. Um crime contra a paz e a segurança do cidadão de bem, um crime existir tão desesperadamente.

Um conhecido trabalho de luz é o do Padre Júlio Lancellotti, que enfrenta diariamente diversos tipos de violências devido ao seu trabalho diário de solidariedade, por alimentar os pobres e denunciar a crise humanitária em São Paulo. Dar de comer a quem tem fome, também tem significado estar como alvo certo da criminalização da miséria. É também criminoso aquele que olha o outro como irmão, e lhe dá a posse da paisagem, de existir ali e de sobreviver.

Pois eu tive fome, e vocês não me deram de comer; tive sede, e nada me deram para beber; fui estrangeiro, e vocês não me acolheram; necessitei de roupas, e vocês não me vestiram; estive enfermo e preso, e vocês não me visitaram'. "Eles também responderão: 'Senhor, quando te vimos com fome ou com sede ou estrangeiro ou necessitado de roupas ou enfermo ou preso, e não te ajudamos?'

Mateus 25:42-44

Pessoas passando fome, com tanta fartura, excesso e luxo, no mundo, nos deixam pensando realmente o que é ser humano. Quando Manuel Bandeira escreve o poema “O Bicho”, que relata um animal ingerindo desesperadamente coisas numa lata de lixo, e este animal era um homem, eu penso se realmente quem são os bichos-homens são os que comem do lixo, ou os que deixam que pessoas cheguem a este estado deplorável?

Os direitos humanos, por exemplo, têm uma trajetória interessante: surgem a partir da reivindicação dos franceses (muitos enfrentando a fome), em relação ao domínio da coroa; a partir daí o povo, como se quer crer, assume o poder do Estado, como cidadãos. Mas aos haitianos, que acreditaram neste conto da sereia, que o direito a serem autônomos e que todos os seres humanos têm direitos, de fato, verificaram que uma nação preta não teria os mesmos direitos que os “seres humanos”, brancos. Sim, até aquele momento, eram escravos, e os direitos humanos eram somente para alguns humanos, os brancos..., portanto, é fundamental olhar como o recorte de raça interferiu e interfere até hoje, no dimensionamento de quem é, e quem não é considerado humano suficientemente.

Indo mais além, todo o processo civilizatório, a criação do estado moderno, é extremamente violento, castrador de diferenças, instituidor de uma ordem, uma língua, uma bandeira, ainda que ela deixe de fora uma porção de subcidadãos. Talvez, nada melhor do que Jessé Souza, para apontar como no Brasil se criam estruturas que mantêm a diferenciação e o distanciamento entre os que podem tudo, os que podem, desde que sirvam aos que podem tudo, e os que nada podem, que irão manter uma subvida, se tanto.

No Estado Liberal em que vivíamos, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, ainda havia uma “ética” ligada ao conceito de cidadania, mas, no estado neoliberal, existe a conexão total dele com a necropolítica, de acordo com Achille Mbembe, que realmente determina formas diferentes de criar políticas públicas de abate e de assassinato, lógicas de gentrificação, de limpeza e expulsão de indesejáveis de determinados territórios, e de morte lenta por fome.

É cruel perceber que Carolina de Jesus é a profeta do que não se quer ver, quando denuncia que “quem inventou a fome são os que comem”. E por que os que passaram por fome não são os que governam?

Portanto, criminalizar os vagabundos, por meio da lei da Mendicância, que só foi revogada em 2009, apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente já a descaracterizar em 1990, na verdade é uma forma de criminalizar o desemprego, a pobreza ou a miséria. Com o êxodo rural para as cidades, e a consequente criação de despossuídos de terra, alimentos, trabalho e renda, as cidades têm se tornado cada vez mais um ambiente hostil. Isso não deixa de ocorrer também no campo. Infelizmente, apesar da revogação da lei, a pobreza e a miséria são vistos como delitos, ainda mais numa sociedade do “mérito”.

Existem estudos que demonstram que a falta de opções de lazer e trabalho limitam e dificultam a possibilidade de rompimento de adições, tal como ocorrem com Rosângela. Então, a falta de opções de vida razoável possibilita a não criação de uma identidade, uma utilidade social, um vínculo de pertencimento. Assim é visto pelo estudo denominado “rat park”, onde ratos confinados, sem opções, consomem compulsivamente drogas, mas se tem diversas opções, escolhem outras formas de prazer e diversão. Isto reforça bastante a ideia de que lidar com os adictos por meio de políticas de redução de danos é muito mais eficaz e menos desumano do que a separação e a criminalização. O documentário Quebrando o Tabu trata bem esta questão[1].

Além disso, o professor afro-americano Carl Hart mostra o quanto a criminalização das drogas está completamente ligada à cor da pele e ao local onde se mora; não há, verdadeiramente, uma preocupação ética no combate às drogas, mas uma preocupação moral excludente, colonialista, separatista. Além disso, as políticas de redução de danos são muito mais interessantes e profícuas do que o isolamento e a segregação. O professor em Psiquiatria Dartiu Xavier da Silveira assim apresenta, na mesma linha de Carl Hart.

Outro aspecto interessante a se abordar é a questão da renda mínima: políticas de renda mínima desafogam as pessoas das preocupações com a sobrevivência, tornando-as mais criativas e produtivas. Portanto, a criminalização da miséria, desde a questão alimentar, passando pela falta de moradia, acessos à educação, renda, são parte de uma política pública de distinção e separação, levando em conta que algumas pessoas são mais humanas do que as outras; por isso a frase, altamente equivocada e discricionária, “direitos humanos para humanos direitos”, na verdade, esconde que o privilégio é somente para alguns, que são direitos antecipadamente, por seu berço, cor de pele e religião, dentre outros marcadores sociais.

E no fim, diante de uma pandemia que arrastou tantos e tantas para a fome, não houve por parte do Governo Federal, nenhuma preocupação genuína, nenhuma medida eficaz, nenhum projeto que até hoje, estivesse voltado à redução da extrema pobreza e fome no Brasil. Pelo contrário: a extinção de medidas, de órgãos (como o CONSEA), de atividades e recursos voltados diretamente para o alívio da fome e da extrema pobreza no Brasil. Vivemos então o grande paradoxo em que a criminalização da miséria se dá no mesmo espaço em que o discurso armamentista, violento e nocivo tomou conta de parte da população “de bem”, tão do bem, que estes bichos-homens latem e esbravejam, julgam e condenam, homens e mulheres, crianças, criminosos da própria e desesperada existência. O bicho também veste faixa presidencial e come o banquete da fome alheia.

 

[1] https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs&t=819s

 

*Mestranda em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (IPPRI/UNESP). 

** Professor universitário e Palhaço Mancada Obom.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Heloisa de Sousa