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A fome é o ponto crítico

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Homem em situação de rua revira o lixo em São Paulo, realidade compartilhada por outras grandes cidades brasileiras - Roberto Casimiro/Fotoarena
A cada 3 pessoas no planeta, uma não teve acesso à alimentação adequada no ano passado

Por Alexandre César Cunha Leite* e Beatriz Gomes Cornachin**

O mais recente relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) sobre “O Estado da Segurança Alimentar no Mundo” foi publicado na terceira semana de julho de 2021. A leitura do documento nos permite constatar o que já era previsto: a insegurança alimentar e a fome no mundo aumentaram em 2020. E, segundo o relatório, estamos distantes da possibilidade de atingir a meta de Fome Zero até 2030, conforme estabelece o segundo dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)
    
A atualização dos indicadores relativos à segurança alimentar evidencia os principais fatores que nos distanciam de um cenário de erradicação da fome e de todas as formas de desnutrição. Tomando o ano de 2014 como referência, uma vez que este ano indica a primeira tendência de leve aumento da prevalência da insegurança alimentar moderada e/ou grave após um período de queda, os dados estimados para 2020 são preocupantes. Em 2019, o índice de prevalência de desnutrição foi de 8,4% da população mundial, enquanto, em 2020, o mesmo índice foi estimado em 9,9%. Por essa régua, estima-se que, em termos absolutos, entre 720 e 811 milhões de pessoas no mundo passaram pelo estado de desnutrição em 2020, 118 milhões de pessoas a mais do que em 2019.

Porém, por outra medida também adotada pela FAO, o índice de insegurança alimentar, estima-se que 2,37 bilhões de pessoas, ou o equivalente a 30,4% da população mundial, tenham vivenciado algum dos níveis de insegurança alimentar, moderada ou severa durante o ano de 2020. Isso quer dizer que 320 milhões de seres humanos se somaram aos 2,1 bilhões que já se encontravam em algum nível de insegurança alimentar em 2019. Para facilitar a compreensão deste indicador, basta entender que, a cada 3 pessoas no planeta, uma não teve acesso à alimentação adequada no ano passado.

Outro dado importante evidenciado no relatório é a persistente dificuldade de obtenção de dietas saudáveis. São, aproximadamente, 3 bilhões de pessoas que não conseguiram acesso a uma dieta saudável em 2020. Da mesma forma, a obesidade e o sobrepeso continuam aumentando, assim como outras doenças relacionadas à má-nutrição seguem persistentes. Entre as patologias observadas, vale ressaltar a anemia (a anemia é, geralmente, decorrente de carência nutricional, tais como as de ferro e de vitaminas do complexo B) em mulheres em idade reprodutiva (15-49 anos), com quase 1 mulher a cada três afetadas. 
    
As pessoas que se encontram nas situações acima não estão distribuídas geograficamente de maneira homogênea. Observa-se que o maior crescimento absoluto e proporcional das patologias ocorre nos continentes asiático, africano e na América Latina. Em relação à prevalência da desnutrição, a Ásia totaliza 418 milhões de pessoas (9% do continente), a África 282 milhões (21% da população do continente) e a América Latina e Caribe 60 milhões (9% da população).

No que concerne à insegurança alimentar, entre 2019 e 2020, a América Latina e Caribe foi a região que apresentou crescimento mais acentuado, com um aumento de 9% e 113 milhões de pessoas sem acesso a dietas saudáveis. A região latino-americana tem vivenciado sérios problemas com instabilidade política, crises econômicas (com ênfase no desemprego e desigualdade de renda) e a presença de governos com agenda neoliberal retroagindo nas políticas públicas inclusivas, reforçando os fatores que contribuem para os indicadores tão ruins relacionados à saúde da população. 

Além da desigual ocorrência geográfica, a desigualdade de gênero também se manifesta nos problemas alimentares. Mesmo antes da pandemia de Covid-19, a proporção de mulheres enfrentando algum nível de insegurança alimentar era maior que a de homens. A pandemia foi um fator intensificador da desigualdade que já era registrada anteriormente. Em 2019, a insegurança alimentar foi 6% maior entre as mulheres e, em 2020, a proporção subiu para 10%. 
    
Ainda que o cenário pandêmico tenha intensificado os problemas alimentares, o relatório da FAO evidencia que a pandemia é apenas a ponta do iceberg e que tal cenário expôs as fragilidades dos sistemas agroalimentares, demandando maiores reflexões. Os motivadores que intensificam os cenários de fome e insegurança alimentar foram elencados levando em consideração as últimas quatro edições do documento. Assim, foram registrados  como os principais motivadores: a ocorrência de conflitos; os choques e desastres climáticos; as desacelerações e recessões econômicas; e a elevação dos custos associados às dietas saudáveis. Além desses fatores, a pobreza e a elevada desigualdade, entendidos como fatores subjacentes, intensificam a ação dos motivadores supracitados.

Outro ponto que merece destaque é o fato de que 90% dos países tiveram mudanças na cobertura de serviços ligados à nutrição, sendo que quase metade dos países relataram queda de 50% ou mais para pelo menos uma intervenção nutricional. 

Segundo o relatório da FAO, a pandemia expôs as vulnerabilidades dos sistemas agroalimentares. Ainda que estas fragilidades não sejam novidades e já tenham sido expostas anteriormente, motivadores tais como a ocorrência das recessões econômicas não são exclusivos do cenário imposto pela pandemia. Diante de cenários recessivos e em países de renda média ou baixa, a tendência é que sistemas agroalimentares dominados por corporações sejam, simultaneamente, exclusivos e prejudiciais ao atendimento das necessidades nutricionais da população. Assim, faz-se fundamental buscar a consolidação de sistemas agroalimentares integrados que gerem dietas sustentáveis e acessíveis para a população.
 
Alguns caminhos são apontados, a saber: 1) a integração de políticas humanitárias tanto de desenvolvimento quanto de consolidação de paz em áreas conflituosas; 2) a ampliação da resiliência climática tanto dos sistemas agroalimentares quanto das populações mais vulneráveis; 3) a intervenção no decorrer das cadeias de abastecimento para reduzir o custo de alimentos nutritivos; 4) o combate à pobreza e desigualdades estruturais; 5) o fortalecimento dos ambientes alimentares e a promoção de hábitos mais saudáveis tanto para saúde humana quanto para o ambiente e; 6) ofertar soluções para que os sistemas alimentares sejam mais eficientes a fim de fornecer dietas saudáveis acessíveis, sustentáveis e inclusivas. 

Ainda no sentido de sugerir ações direcionadas ao combate às mazelas derivadas do cenário pandêmico e da deterioração das condições de acesso à alimentação saudável, o documento menciona a necessidade de fornecer meios de subsistência para os pequenos produtores. O empoderamento dessas comunidades de pequenos produtores rurais pode ser alcançado por políticas que facilitem o acesso a insumos destinados à produção, bem como a necessidade de atenção aos territórios indígenas. 

O novo relatório é rico em informações que possibilitam diagnósticos, constatações e a formulação de propostas destinadas a minorar as situações de insegurança alimentar e de desnutrição. Contudo, dentre as perguntas que o relatório evidencia, uma chama atenção e merece ser levada à reflexão: “Como o mundo chegou a este ponto crítico?” (How did the world get to this critical point?). A reflexão surge de uma pergunta que antecede à necessidade de entender como chegamos a este ponto. Trata-se de nos questionarmos quando a existência persistente da fome não foi um ponto crítico em um mundo com comprovada capacidade para alimentar todos seus habitantes? Pois, uma vez que há produção de alimentos que supera a necessidade para alimentar a população, qual a explicação para a prevalência da insegurança alimentar em todos os seus níveis? Por que convivemos com parcela significativa da população em condição de fome? 

Há que se indagar se o sistema político e econômico vigente não requer a reprodução da condição de pobreza e miséria que impede tantos a ter acesso adequado a bens alimentícios. Não somente ter acesso a bens alimentícios, mas sim alcançar os valores nutricionais adequados para uma alimentação saudável. A pandemia serviu como um catalisador, mas não se pode atribuir à pandemia a causa dos problemas de acesso adequado à alimentação e a níveis nutricionais adequados. Além disso, não se deve esquecer que o sistema agroalimentar atual concentra ganhos, reduz a importância do pequeno produtor e segmenta o mercado consumidor por renda, causando distinção no consumo de bens alimentícios.

Vidas, sonhos e projetos interrompidos

Os números evidenciados no relatório não podem ser tomados apenas como números. São vidas, sonhos e projetos que, momentânea ou perpetuamente, foram interrompidos. As pessoas em situação de insegurança alimentar, principalmente aquelas em insegurança alimentar grave, terão que converter seu dispêndio de energia (se ainda restar alguma) em buscar alimento destinado à sobrevivência (própria e/ou familiar). Alimento esse que, provavelmente, não será o adequado e saudável para, ao menos, 3 bilhões de pessoas.

Tais questionamentos resultam de uma reflexão inserida em um quadro de normalização da barbárie em um país que teria plena capacidade de alimentar sua população. Situação similar pode ser observada com a vacinação. Dentre os países citados no documento, consta o Brasil e seu elevado número de pessoas em situação de insegurança alimentar. Como demonstrado pelo “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil” , parcela significativa da população brasileira encontra-se em insegurança alimentar (ao menos 116 milhões) e mais de 19 milhões passam fome (insegurança alimentar severa). De certa forma, a mesma pergunta que o relatório se propõe a responder pode ecoar em nossas cabeças ao observarmos o estado de calamidade do país: “Como chegamos a este ponto crítico?” 

Como mencionado, dentre as recomendações da FAO, consta a necessidade de tornar dietas saudáveis mais acessíveis, assim como promover hábitos alimentares saudáveis, inclusive chamando a atenção para os impactos negativos do consumo de gorduras trans e industriais. Aqui, vale citar a importância do “Guia Alimentar para a População Brasileira”, que tem sido alvo de ataques e tentativas de modificá-lo para que seja revista a recomendação acerca da limitação do consumo de ultraprocessados. Alimentos que contém, exatamente, elevada concentração dos itens de que a FAO não recomenda o consumo.  

No que tange à questão alimentar, seja em âmbito global, seja nacionalmente, coloca-se como urgente encarar e pontuar as falhas do sistema agroalimentar sob uma perspectiva crítica que não reduza tais características às fatalidades não previstas. Como pontua o relatório, o tema não se encerra em si mesmo, uma vez que a produção de alimentos está intimamente relacionada com as questões ambientais e sanitárias. Por exemplo, pesquisas como a de Rob Wallace apontam a existência de uma relação entre o sistema de produção agroalimentar em voga, a deterioração ambiental e a proliferação de novas doenças virais. 

Neste sentido, para reverter os dados negativos trazidos pela FAO, é preciso que a discussão sobre a fome ocorra em sinergia com a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, agendada para setembro de 2021, e com a COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) prevista para novembro. Mas não basta o discurso nos fóruns multilaterais. São necessárias ações diretas das autoridades locais: federação, estados e municípios.  


*Docente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB) e do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da Universidade Federal da Paraíba (PGPCI/UFPB), coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ásia-Pacífico (GEPAP) e do FomeRI da UFPB.

**Doutoranda em Economia Política Mundial - UFABC
 

Edição: Maria Franco