Rio Grande do Sul

JUSTIÇA

“Quero poder cuidar do meu filho”: a luta de uma família afastada do bebê na maternidade

De acordo com a lei federal, o acolhimento institucional de menores deve ser aplicado apenas em caráter excepcional

Bebê nasceu em 25 de maio no Clínicas, em Porto Alegre, e esteve nos braços da mãe em apenas duas oportunidades - Mariana Carlesso/Arquivo SES

Como julgamentos apressados e falhas de comunicação levaram a Justiça a decretar medida protetiva para separar um bebê de sua família, que agora batalha para provar que pode cuidar do filho

No dia 8 de julho, o bebê Bruno* completa um mês longe de sua família. Desde que deixou o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde nasceu em 25 de maio, ele esteve nos braços da mãe, uma mulher negra moradora do Morro da Cruz, em apenas duas oportunidades. O pai, um jardineiro desempregado, o viu em três ocasiões, uma delas pela janela de um dos abrigos pelos quais o recém-nascido passou a morar desde os 13 dias de vida. “Só o que eu quero é poder cuidar do meu filho”, desabafa Gustavo*, 33 anos, antes de deixar a cabeça desabar entre os braços, apoiados sobre a mesa.

Depois que um laudo do serviço de assistência social do Hospital de Clínicas, onde Bruno nasceu, indicou que o bebê estaria “em situação de risco, caso receba alta hospitalar acompanhado dos genitores”, a Justiça determinou que a criança fosse recolhida a um abrigo. A família nunca entendeu ao certo a razão para a decisão, que considera exagerada. Desde então, Gustavo, a esposa Karla*, 27, e os avós paternos e maternos empreendem uma luta para reaver o direito de estar com o bebê, amparados pela Defensoria Pública e pelo Conselho Tutelar, que apontam excessos na condução do processo.

“O bebê foi acolhido ao arrepio das determinações legais do Estatuto da Criança; não havia nenhum motivo plausível”, escreveu a defensora Aline Caspani Collet, em 15 de junho, quando entrou no caso.

Conselheiro tutelar no Partenon e em bairros próximos, Marcelo Fraga concorda: “Totalmente equivocado”, classifica. “O acolhimento é uma medida que só deve ser adotada após o esgotamento de todos os recursos, mas nós nem fomos consultados, só ficamos sabendo depois que o bebê já estava no abrigo”.

De acordo com a lei federal 12.010 de 2009, o acolhimento institucional  de menores deve ser aplicado apenas em caráter excepcional, sendo necessária a elaboração de um plano de atendimento que busque a reintegração da criança na família biológica. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que os pais ou responsáveis sejam devidamente “informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa”.

Mas a família de Bruno diz que nada disso foi seguido no seu caso. O roteiro do afastamento da criança dos pais incluiu avaliações apressadas sobre as condições socioeconômicas da família, comunicação falha sobre o procedimento para reaver a criança e desencontros sobre seu paradeiro. Mesmo após diversos testemunhos de assistentes sociais sobre o interesse de Gustavo, Karla e dos avós do bebê em vê-lo, o pai reclama que não consegue visitar o filho no abrigo — a ordem judicial de autorização de visita está apenas em nome da mãe, que foi hospitalizada com um quadro grave de depressão e anemia.

“A institucionalização prolongada impede a ocorrência de condições favoráveis ao sadio desenvolvimento da criança, especialmente um bebê, como no caso dos autos, face à inequívoca precariedade de atenção individualizada no abrigo e da falta de vida em família, sem a possibilidade de trocas afetivas emocionalmente significativas”, alerta a defensora Collet em uma de suas manifestações pedindo o fim da medida protetiva.

Sem contraditório

O laudo elaborado pela assistência social do Hospital de Clínicas listava preocupações que convenceram a juíza Paula de Mattos Paradeda a decidir, em liminar, separar o bebê da mãe ainda na maternidade. Antes do parto, os obstetras identificaram em Karla “histórico de má adesão ao tratamento especializado de saúde e ao pré-natal de alto risco (PNAR), além da dificuldade de aceitação da gestação”. As assistentes sociais descobriram que o agente de saúde do posto que atendia a jovem mãe foi ameaçado pela família dela quando tentou buscá-la para as consultas que havia faltado. Registrou inclusive um boletim de ocorrência. Nas consultas prévias ao nascimento, o casal admitiu que pensava em abortar porque a gestação não fora planejada.

A isso somaram-se o histórico de dependência química de Gustavo e uma briga na maternidade que assustou a vizinha de quarto de Karla. Acionada, a segurança do hospital proibiu o rapaz de visitar a companheira. Os dois negam que tenha havido agressão física ou mesmo verbal. “Foi coisa de casal, a gente já estava muito nervoso com aquela situação”, justifica Gustavo.

Mas havia mais a ser considerado antes de tomar a decisão pelo afastamento da família. Um exemplo está no próprio laudo hospitalar, que informa que apesar das faltas no pré-natal, “Karla realizou oito consultas de pré-natal no HCPA, o que representa um pré-natal completo”. “Karla não foi nas consultas quando estava com muita dor, ou quando o tempo estava muito feio. E ela sempre ligou para remarcar quando não pôde ir”, contrapõe o pai, que a acompanhou em quase todos os atendimentos.

A narrativa do aborto também tem justificativa plausível. Karla é portadora de anemia falciforme, uma doença hereditária que causa fraqueza e apatia, mais comum em pessoas negras, que piorou após o nascimento do filho. Um dos irmãos da jovem morreu em decorrência da mesma doença. Foi justamente por medo de morrer que Karla procurou informações sobre seu direito ao aborto legal, no Sistema Único de Saúde, conforme registra outro parecer técnico sobre o caso, assinado por uma assistente social judiciária. Era uma gravidez de alto risco para a mãe e ainda havia a possibilidade de que o bebê fosse também portador da doença falciforme, que é hereditária – no primeiro teste do pezinho de Bruno os genes apareceram, mas a situação ainda pode mudar.

Mas como a gestação só foi confirmada dois meses depois da fecundação (a anemia de Karla alterava os testes de gravidez com frequência), os exames mostraram um feto já desenvolvido, e os pais desistiram da ideia. Ainda assim, ficou o estigma de uma gestação indesejada na análise feita no Clínicas: “a mãe apresenta frágil vínculo com o recém-nascido, mostrando-se distante afetivamente”, descreveu o laudo do hospital. Em nenhum momento, as assistentes sociais do hospital consideraram que a anemia falciforme de Karla causa, entre seus sintomas mais comuns, uma visível apatia, que poderia ser uma das razões do seu comportamento “distante afetivamente”.

O pai, por outro lado, “demonstra afeto e preocupação com o recém- nascido”, informa o laudo. Mas o medo de que ele fosse agressivo e usasse drogas selou o destino de Bruno, mesmo que ele tenha mencionado às assistentes sociais os meses que passou em uma fazenda de recuperação mantida por igrejas. Desde que saiu, em 2019, admite apenas um episódio de recaída, que foi controlado, segundo relata. “Estou limpo e quero retomar o acompanhamento psicológico”, ele garante, enquanto mostra uma declaração assinada por terapeuta ocupacional atestando que não consome substâncias psicoativas há seis meses. 

Depois que Bruno já estava em um abrigo, a assistente social do poder judiciário notou razões para acreditar que ele será bem cuidado pelos pais: “De maneira geral, eles enfrentam dificuldades a nível socioeconômico, mas estas não extrapolam a possibilidade de atendimento das necessidades básicas da criança. Tanto os pais quanto os avós manifestam interesse pelo bem-estar do menino e por tê-lo em sua companhia”.

Sequência de mal-entendidos

A defensora pública Cleusa Trevisan diz que são comuns os casos de abrigamento rápidos baseados em laudos estigmatizantes sem a devida investigação sobre as condições da família. “Por causa das dificuldades financeiras e da falta de informações, as famílias ficam perdidas”, completa. Após autorizada a medida protetiva, fica nas mãos do judiciário, nem sempre célere, avaliar se há condições para o retorno da criança. Isso pode durar meses.

Gustavo recorda ter ficado confuso com o tom usado pela assistente social do Hospital de Clínicas quando comunicou o afastamento do filho: “Ela disse que sabia que era doloroso, ruim e difícil, mas eu não imaginava que ia praticamente perder a guarda do meu filho. A ficha só foi cair muito tempo depois”.

No laudo, as próprias assistentes sociais observam a dificuldade dos pais de Bruno em entender o que estava acontecendo: “A Sra. Karla demonstra importante dificuldade de comunicação e de entendimento das orientações passadas pelas equipes de saúde, assim como os demais membros da família”.

“Foi desumano. É dever do hospital informar a família de todos os detalhes e procedimentos, mas isso não foi feito”, critica Trevisan.

O Clínicas diz que tomou as medidas necessárias e que seguiu à risca o ECA. “Em casos de identificação de potencial risco a bebês, são mobilizados os órgãos de proteção como Conselho Tutelar, Ministério Público e Juizado da Infância, visando a proteção e melhor cuidado. Todas as informações dos encaminhamentos e decisões legais são sempre compartilhadas e informadas aos pais ou responsáveis pelo bebê”, informou, em nota, o hospital.

O Ministério Público, que pediu a medida protetiva com base no laudo, não quis comentar.

Justiça também falhou

O processo judicial que determinou o recolhimento de Bruno a um abrigo infantil correu à revelia da família por quase duas semanas. A solicitação de medida protetiva para o bebê foi feita pelo Hospital de Clínicas em 1º de junho, e a decisão da Justiça saiu sete dias depois. A defensoria, entretanto, só entrou no caso no dia 13 de junho – a família só soube que devia tomar esse caminho por acaso, quando os pais já não tinham notícias de Bruno havia seis dias. Em um ato de desespero, Gustavo percorreu a cidade a pé batendo de porta em porta em todos os abrigos infantis que descobrisse perguntando se o filho estava ali. “Foi num abrigo na Caldre Fião. A pessoa que me recebeu informou que eu deveria ir à Defensoria Pública para buscar meu filho de volta”, conta Gustavo.

A Justiça também falhou, diz a defensora Trevisan. Em casos como este, é preciso chamar a família extensa (avós maternos e paternos, tios ou até primos mais velhos) para deixar todos a par da situação. “O ideal sempre é que a Justiça, diante de um caso como esse, promova uma audiência com a assistência social e a família, para ficarem claras as razões do acolhimento e se ela é mesmo necessária. Isso também não ocorreu”, lamenta.

É o procedimento prévio antes de solicitar um pedido de acolhimento  porque o bebê poderia ser acolhido por um familiar próximo, sem necessidade de ir para o abrigo.

O lar dos pais de Karla foi descartado inicialmente porque havia uma acusação (negada por toda a família) de abuso sexual infantil por um de seus membros. Já os avós paternos, embora sejam mencionados no laudo inicial do Clínicas, não foram considerados. 

“Nunca me procuraram, isso foi muito errado”, acusa Eugênia*, mãe de Gustavo. Assim que percebeu o tamanho do problema envolvendo o neto, ela largou trabalho e família em Pelotas e se mudou para Porto Alegre para dar apoio a Gustavo e Karla. “Eu aluguei uma casa para a gente morar, estou atrás de um emprego. Já disse para todas as assistentes sociais que estou disposta a ficar o tempo que for necessário para estabilizar a vida do casal com o bebê”, assegura.

A busca em abrigos

Bruno nasceu prematuro, quando Karla estava fechando a 36ª semana de gestação. “Foi um parto difícil, eu achei que ele fosse morrer porque nasceu bem roxinho”, recorda o pai.

A situação do casal não era a ideal para receber o bebê, que chegou antes que eles conseguissem se estabelecer em uma casa própria. Gustavo e Karla não se conheciam há muito tempo quando descobriram a gravidez — coisa de um ano e meio — e moravam em uma peça nos fundos da casa dos pais dela, no Morro da Cruz, onde se cruzaram em uma esquina e se apaixonaram. 

Por isso, quando soube que o filho seria levado a um abrigo infantil, Gustavo nem achou tão ruim. “Eles disseram que seria bem perto de casa, que poderíamos visitar o bebê. Eu até fiquei aliviado, achando que era uma solução para dar tempo de arrumar as coisas em casa antes de ele vir”, recorda.

Só que ao invés do abrigo com fácil acesso prometido à família, Bruno foi parar em uma instituição no bairro Cristo Redentor, do outro lado da cidade, e que não recebe visitas de familiares. “Karla esteve no abrigo a fim de amamentar o filho e lhe foi negado acesso, sob a alegação de que ela não conseguiria ir de três em três horas, pela distância”, registrou a defensora Aline Collet em uma petição que solicitava o “imediato desacolhimento” de Bruno.

Quando Karla finalmente conseguiu pegar o filho no colo, depois de muita discussão na porta do local, Bruno recém tinha mamado e não quis pegar o peito. “Ela ficou muito triste, o leite jorrava do peito dela”, conta o companheiro.

A pedido da defensoria, a criança foi transferida a um abrigo mais próximo da residência da família, e a Justiça determinou visitas da mãe para aleitamento. “Imagina a angústia dessa família que não soube onde estava essa criança por quase uma semana”, pontua Trevisan.

Mas uma nova saga começaria a seguir. Abatida e com medo de não poder ver o filho, Karla se recusou a tomar a medicação da anemia falciforme, que é incompatível com a amamentação. Em uma das petições da defensoria, consta a informação de que ela está deprimida, o que agravou seu quadro de saúde frágil. Quando cedeu à pressão familiar e retomou o tratamento médico, seu corpo já estava muito debilitado e ela precisou ser internada, com um quadro que evoluiu para pneumonia – está no mesmo Hospital de Clínicas, onde pariu Bruno e dele se separou. “Ela fica lembrando o tempo todo disso”, lamenta Gustavo.

Gustavo foi excluído do processo no início da tramitação e, agora, não consegue ver o filho porque a autorização de visitas está em nome apenas de Karla. “No sábado meu filho tava gripado. Agora parece que melhorou, mas eu fico preocupada, pensando um monte de coisa porque ninguém tá podendo ir lá ver ele. O Gustavo tava indo, mas agora estão falando que ele só pode quando eu tiver junto. Mas eu tô aqui dentro e vai demorar para eu sair”, diz Karla, por videochamada feita de dentro do hospital.

A avó paterna contratou uma advogada particular para auxiliar no caso, que ingressou na Justiça com pedido de guarda para a família. “Estamos aqui querendo ficar juntos e resgatar o pequeno Bruno”, completa o rapaz, abraçado à jovem, na cama do Clínicas.

* Os nomes da família foram trocados para proteger a identidade do bebê, conforme determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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Edição: Matinal News