Paraíba

Coluna

Capoeira como cultura de movimento, afirmação étnica e trabalho na escola

Capoeira. - Reprodução
A capoeira representa a expressão de um patrimônio sociocultural da humanidade

Capoeira como cultura de movimento, afirmação étnica e trabalho na escola

 

Por Sergio Roberto Silveira**

 

A capoeira representa uma manifestação da cultura de movimento de matriz africana que tem assumido forte expressividade de afirmação ética no trabalho com o currículo escolar, em especial, nas aulas de educação física. Assim, nesse texto, tem-se a intenção de criar um espaço para refletir com o leitor a respeito dessa teia de sentidos e significados que cerceiam essa prática corporal. Inicialmente, elege-se como ponto de análise a relação estabelecida entre a expressividade da capoeira e a cultura de movimento.

A interação entre o ser humano com o ambiente através de suas ações motoras é registrada desde os primórdios da existência humana. Na idade pré-histórica, por exemplo, os registros pictóricos nas cavernas descrevem as pessoas em movimento para caçar, pescar, trepar em árvores, escalar montanhas, dançar etc.

A cultura de movimento corresponde a um patrimônio sociocultural da humanidade, relacionado ao fazer corporal, observado na interação do sujeito com o mundo, se movimentando intencionalmente em prol de alcançar determinada finalidade. É representado por um conjunto de manifestações que foram e continuam sendo criadas, transformadas, adaptadas e transmitidas de geração em geração. É representada pelas categorias de brincadeira, jogo, esporte, dança, ginástica, luta e práticas corporais de aventura na natureza e urbana.

Nessas representações um fator que pode ser observado na cultura de movimento refere-se à flexibilidade que as categorias apresentam, com características que a delimitam em seu hard core, mas exibindo contornos que parecem englobar aspectos de outras. Ao pensar a respeito da capoeira enquanto uma manifestação motora, indaga-se se ela seria uma luta, dança ou jogo? Acontece que ao englobar uma manifestação motora em uma categoria corre-se o risco de limitar suas possibilidades de estudos e práticas escolares. A capoeira apresenta elementos constitutivos que são comuns, se localizam e se integram em mais de uma categoria, compondo uma prática motora com múltiplas formas e sentidos.

No Brasil, a composição da cultura de movimento é resultante das diversas influências de matrizes culturais existentes e recebidas no país. Dentre essas matrizes herdadas, as influências daquelas de matrizes africanas assumem importante legado na constituição de manifestações que expressam a composição do patrimônio cultural brasileiro.

São expressões do desenvolvimento de práticas corporais como forma afirmação étnica e cultural, assegurando a transmissão ancestral entre as gerações e, realizadas como forma de resistência e pertencimento a diferentes grupos. Esse é o caso da capoeira. Elementos constitutivos de matriz africana são ressignificados na constituição de uma manifestação afro-brasileira denominada capoeira, hoje considerada patrimônio imaterial da humanidade pela UNESCO desde 2014. Isso significa que a capoeira corresponde a uma manifestação da cultura de movimento que compreende um conjunto de ações motoras que foram tomando sentidos e significados próprios desde sua criação, sendo atualmente, uma das expressões da cultura brasileira, podendo-se identificar elementos de matrizes africanas nos modos de vida das pessoas.


A capoeira tem suas origens no Brasil. / Reprodução

A capoeira representa a expressão de um patrimônio sociocultural da humanidade inserido num universo simbólico, de relações humanas e, de intencionalidades individuais e coletivas dos sujeitos ao elaborá-las e/ou praticá-las.

A capoeira passa a ser observada enquanto um patrimônio cultural humano de matriz africana que foi e é (re)significado na constituição da cultura brasileira. Carrega consigo as histórias e referências africanas que se estruturam na formação da cultura afro-brasileira, expressando africanidades como forma de afirmação étnica observadas no cotidiano da população brasileira. A expressão africanidades, apoiada na definição de Kabengéle Munanga, relaciona-se às características comuns, modos de pensar e de viver oriundos dos grupos étnicos africanos localizados ao sul do Saara, ou subsaariana, que são observadas nos modos cotidianos de ser, estar e viver da população brasileira. Podem ser observadas no vestuário, alimentação e estética; no culto, apresentação e exposição corporal; nas formas de produzir e se expressar através das artes como a música, dança, teatro e artes plásticas; na composição dos ritmos e utilização de instrumentos musicais; nos estilos de vida das diferentes gerações e relações/interações de parentesco; nas formas de culto religioso; no culto à ancestralidade e à energia vital; no poder da oralidade para expressão e transmissão cultural.

A capoeira tem suas origens no Brasil associando elementos das ações motoras de diferentes grupos étnicos africanos que reuniam formas de musicalidade, brincadeiras, jogos e batalhas enquanto formas de defesa e ataque. Surge, assim, a capoeira como forma de expressão de luta, de resistência dos africanos e seus descendentes a favor da libertação e da busca por melhores condições de vida. Expressa em sua composição, o sentido de culto à ancestralidade e culto à energia vital, ambos com sentidos e significados na cultura africana.

O culto à energia vital é um elemento representativo da religiosidade presente nas tradições de matriz africana. A capoeira ao promover em suas práticas sensações como bem-estar, a alegria, a felicidade em momentos cotidianos, fortalecimento muscular, ampliação do estado saudável etc., aciona a expressão da intensidade da força vital presente em cada participante. Cultuar a energia vital no dia a dia é a expressão de africanidade na constituição cultural do(a) brasileiro(a). Não se configura como uma prática religiosa, mas como um elemento de religiosidade de afirmação étnica de matriz africana, exercitada na prática da capoeira e que leva ao aumento e multiplicação dessa força, conectando o ser ao divino presente em si mesmo, de modo a mobilizá-lo(a) em prol de busca pela felicidade.

O trabalho escolar com a capoeira pode ser diversificado em vários caminhos, permitindo aos alunos(as) o alcance de variadas finalidades. É possível identificar se a manifestação foi criada, transformada, adaptada e transmitida com foco no lazer; na promoção e/ou recuperação da saúde, bem-estar, qualidade de vida; no treinamento e alcance da performance humana; na expressividade e comunicação de sentimentos, percepções, ideias; nas subjetividades dos sujeitos ao se inserirem nas sociedades; na relação entre as pessoas com o natureza e meio ambiente; na afirmação de pertencimento e/ou de reconhecimento étnico de uma manifestação à determinada formação cultural; na educação e seus processos de acesso e (re)significação do conhecimento, entre outras. Pode ter foco na reconstituição sociocultural dessa manifestação e sua identidade enquanto afirmação étnica de cultura africana, no culto à energia vital, na recuperação da ancestralidade ao entender a presença da ginga em sua prática, na luta pela liberdade, na resistência cultural de uma matriz.

O trabalho escolar pode agregar discussões a respeito das relações de gênero na capoeira, desde seu surgimento até os dias atuais; a corporeidade das pessoas que a praticam e suas relações pessoais e interpessoais; a produção artística suscitada na manifestação com a utilização de músicas e instrumentos; a associação religiosa com o culto de Orixás etc. Discussões que carregam a presença de elementos da matriz africana constituídas nos modos de ser e estar vivo da cultura dos(as) brasileiros(as).

Referências

MUNANGA. K. Mestiçagem e identidade afro-brasileira. In: OLIVEIRA, I. (Coord.) Relações raciais e educação: alguns determinantes. Niterói: Intertexto,1999.

MUNANGA. K. Negritude. Usos e Sentidos. 2. ed. São Paulo: Ática, 1988.

SILVEIRA, S.R. Religiosidade africana e a cultura religiosa afro-brasileira. In: DAXEMBERGER, ACS; SOBRINHO, RGS. (Orgs.). Comunidades Quilombolas: das reflexões às práticas de inclusão social. 1ed.João Pessoa: Editora da UFPB, 2013, v. 1, p. 11-41.

 

*Organização da coluna História Pública & Narrativas Afro-Atlânticas (NEABI/UFPB: Ana Daxenberger e Elio Flores).



**Sergio Roberto Silveira é Professor Assistente junto ao Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano da Escola de Educação Física e Esporte, da Universidade de São Paulo (USP) e orientador do programa de Pós-Graduação. 

Edição: Heloisa de Sousa