Paraíba

GOLPE CONTRA O POVO

Artigo | A sofreguidão privatista

Venda da CEDAE é uma espécie de vitrine e foi a senha para a demolição do setor de saneamento básico a nível nacional

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Fernando Henrique Cardoso e a privataria tucana. - Reprodução

Alguém já disse que uma imagem vale mais do que mil palavras e esta foi a imagem que escolhemos para abertura do artigo de hoje, que   talvez valha por um milhão de palavras.

Na fotografia acima, assessores entregam ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, o FHC, o martelo “oficial” que foi utilizado no processo da “privataria tucana” onde FHC era o comandante em chefe, tendo o acumpliciamento de algumas figuras públicas que lhe eram próximas como José Serra por exemplo, o mais conhecido dos seus aliados. Todos os tucanos foram chocados e eclodiram no ninho  do PSDB, um incesto daquilo que Requião ainda hoje chama “o MDB velho de guerra!”

Não há necessidade de reprisar os fatos ocorridos no governo FHC, sobejamente conhecidos de todos. Basta relembrar que foi a partir do governo dele que que o Brasil ingressou definitivamente naquilo que se convencionou chamar Consenso de Washington, embrião do neoliberalismo tupiniquim, que era de fato o início de um processo de venda de ativos nacionais, prática ainda hoje em curso, que  não poupou sequer os ativos estratégicos como energia e petróleo, Indiscutivelmente um ato insano como esse, nenhum governante minimamente comprometido com a soberania nacional do seu   país, se arriscaria a fazê-lo.

Recentemente, no dia 30 de abril de 2021, foi realizado o leilão de venda de ativos da Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro – CEDAE, último bem patrimonial daquele estado, que tem experimentado uma política de terra arrasada, tanto no âmbito do estado, quanto no âmbito da antiga  mas belíssima cidade maravilhosa, inspiração dos poetas e compositores, transformada num reduto de violência, de ilicitudes, de corrupção, além de refugio e valhacouto de milícias e grupos de extermínio. Pobre Rio de Janeiro, ex Cidade  Maravilhosa!


O Leilão da CEDAE foi muito celebrado pelos vendilhões da pátria. / Reprodução

O Leilão da CEDAE, muito celebrado pelos vendilhões da pátria, foi realizado em meio a um fogo cruzado entre os poderes executivo e legislativo do estado, disputado em  um cabo de guerra do faz não faz, que terminou sendo objeto de uma decisão liminar  contrária a realização do leilão. A liminar foi emitida pelo ministro Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal – STF em resposta a uma reclamação do TRT que demonstrou preocupação com a iminente   enxurrada de demissões decorrentes da transferência da dominialidade  da CEDAE. para o setor privado.

Além da medida cautelar, paralelamente houve a votação na Assembleia Legislativa de um Projeto de Lei proibitivo da realização do leilão, que foi “derrubado” por um Decreto do governador recém empossado, o anônimo Cláudio Castro, num caso inédito em que um decreto se sobrepõe a uma Lei e no dizer popular é a carrapeta mandando no pião.

Ali estava oficializado, para gaudio e orgulho de Paulo Guedes, o demolidor oficial do estado brasileiro, o desmonte institucional do setor de saneamento  simbolizando também a avant premiére nacional da transformação da água, um recurso natural essencial à vida, em mercadoria.

Voltando ao caso da  CEDAE e do leilão, a área metropolitana do Rio de Janeiro foi dividida em 4 (quatro) lotes (vocês sabem porque não sabem?) que além da área física da cidade incluiu municípios da área metropolitana. Abertos os envelopes houve interesse nos lotes 1, 2 e 4 e o lote 3, o patinho feio, não teve pretendentes. Sabem porquê? Porque as áreas compreendidas no lote 3 são as mais pobres da antiga cidade maravilhosa.

A venda da CEDAE virou uma espécie de vitrine e foi a senha para a demolição do setor de saneamento básico a nível nacional, com prováveis leilões das companhias de saneamento básico dos estados, os quais poderão capitular ao garroteamento financeiro oficializado pela Lei 14026/2020, que poderá catalisar o  desmoronamento sequencial de um serviço público organizado, para substitui – lo por uma incógnita, numa insólita e oportunista  aventura.

As alegações  são repetidamente  as mesmas: Falta de recursos públicos para investimento, recursos esses  que nunca faltaram para comprar carteiras podres de bancos; Necessidade de universalização do saneamento básico,  que padeceu por muitos anos de penúria  e  só agora está sendo visto; Ineficiência do setor publico para gestão, escamoteando que a duras penas e com parcos recursos foi  o setor público  que colocou água em  83% do espaço urbano brasileiro  e  coleta de   esgotos  em 50% desse mesmo espaço; que o investidor privado vai investir pesado para atender 100%, o que é uma meia verdade e   a vetusta Parahyba Water Company que existiu aqui mesmo na  província,  nos primórdios do século passado que o diga.

Os governos que se sucedem  no Rio de Janeiro usam sempre o argumento da necessidade de recursos para alcançar o equilíbrio fiscal do estado, que foi dilapidado por uma sucessão de governantes acusados de corrupção, uma verdade que é sempre escamoteada. 

A consequência disso tudo é que o estado do Rio está em coma financeiro e em processo de recuperação fiscal para saldar uma gigantesca dívida, cujo estoque atinge a astronômica cifra de  R$167,660 bilhões de reais, daí excluída a dívida com precatórios.

 A CEDAE como  a última joia da coroa fluminense, agora é vendida com a promessa de arrecadação de R$ 22,6 bilhões para fazer frente a uma dívida consolidada de R$ 167 bilhões de reais (com B de Bola) ou seja, 13,77% do montante da dívida, nítida e visualmente impagável.

O leitor deve estar se indagando como foi possível acumular um passivo nesse montante, porte num estado cuja economia está entre as maiores do país. Além disso deve estar curioso em saber com que recursos será pago o saldo da dívida, uma curiosidade aliás muito pertinente, já que a CEDAE como dissemos era o último ativo de que dispunha o estado.

O que o leitor talvez não se aperceba é que 6 (seis) governadores do Rio de Janeiro, foram afastados ou presos nos últimos 4 (quatro) anos, acusados de corrupção. Sem entrar no mérito da questão, entendemos que essa descontinuidade, aliada à pilhagem do erário público, com certeza é a raiz de todos os  problemas que afetam o estado, que agora  são cinicamente sacudidos no colo do povo  fluminense.. 

Outro aspecto a considerar e esse é o principal, é que a Lei 14026/2020, que regula o velho novo marco do saneamento básico nacional,  foi elaborada com o propósito de inviabilizar a prestação do serviço através das Companhias Estaduais de Saneamento, impedidas que foram de acessar ao recurso público, até  de forma onerosa. Arrancam - lhe das mãos a possibilidade de contratar diretamente com os municípios a prestação dos serviços, com base no subsidio cruzado  feito com recursos públicos,  onde as maiores cidades custeiam as menores.

Ora, apenas 300 municípios brasileiros têm população acima de 100 mil habitantes e esses serão sem dúvidas, os municípios mais  viáveis economicamente, único objeto de interesse da iniciativa privada. Os pequenos? Esses farão o retorno ao passado, sendo entregues aos governos e municípios, para serem financiados através do “gordo orçamento” dos entes estadual e/ou municipal, ou seja, vão voltar para o jumentinho com as ancoretas, desgraçadamente!

Os mais de 5.000 municípios com menos de 20.000 habitantes, são todos inviáveis que necessitam de água como um recurso insubstituível,  e somente poderão ser contemplados com a universalização se forem subsidiados pelos maiores que são superavitários, ponto. O resto, como diria o saudoso comentarista esportivo de Campina Grande Humberto de Campos, “o resto é conversa flácida para bovino dormitar.” Ou alguém em sã consciência vai acreditar que o ente privado, voltado para o lucro, vai se condoer desses municípios e inclui-los nas suas intenções filantrópicas? 

Mas voltando ao caso da  CEDAE e do leilão, a área metropolitana do Rio de Janeiro foi dividida em 4 (quatro) lotes (vocês sabem porque não sabem?) que além da área física da cidade incluiu municípios da área metropolitana. Abertos os envelopes houve interesse nos lotes 1, 2 e 4 e o lote 3, o patinho feio, não teve pretendentes. Sabem porquê? Porque as áreas compreendidas no lote 3 são as mais pobres da antiga cidade maravilhosa.


Mapa da Área Metropolitana do Rio de Janeiro. / Reprodução

Mutatis mutandis seria o caso de dividir a nossa Parahyba em lotes, onde o lote 01 agrupasse: Cabo Branco, Tambaú, Manaíra, Bessa e Altiplano Cabo Branco Rico; o lote 02 agrupasse: Jardim Luna, Brisa Mar, Tambauzinho, Miramar, Pedro Gondim, Bairro dos Estados e, os lotes 03 e 04 agrupasse o restante da cidade e num eventual leilão fossem rejeitados, mesmo justapostos com o paraíso do  baronato. 

Os estados estão atordoados, tentando organizar Consórcios Regionais, organizar Microrregiões de Saneamento Básico numa busca desesperada pela viabilidade econômica dos sistemas médios e pequenos, a grande maioria.

Uma outra ideia é abrir o capital das empresas nos moldes do que foi feito com a SABESP em São Paulo, a SANEPAR no Paraná e a COPASA em Minas Gerais,  algo que não nos parece atrativo pois se eles podem abocanhar as empresas naquilo que é mais rentável,   como iriam se interessar pelo osso? Além disso, se a intenção é de acumular o lucro dos maiores sistemas para aplica – lo nos menores, a intenção pode ate ser boa, mas precisa ser combinada com os russos (acionistas). como diria o saudoso Garrincha.

Na dúvida é só verificar como a SABESP e  SANEPAR estão fazendo  com os lucros que auferem anualmente e irão descobrir que entre 40% e 50% dele são distribuídos com os famintos acionistas.

O período que se aproxima é no mínimo nebuloso e se tivesse havido um maior interesse político dos governadores, notadamente aqueles dos estados do nordeste que têm 84% do seu território encravado no semiárido, os moradores dos municípios teriam sido advertidos para o perigo que correm e pressionariam os prefeitos e deputados para a cruzada da sede, num verdadeiro e exemplar movimento de resistência. Se ao invés do silêncio de acumpliciamento tivessem capitaneado a reação,  esta história estaria  sendo contada de forma diferente.

Esse cenário com certeza será revertido como já aconteceu em centenas de países em quase todo mundo, restando saber quando e a preço de quantas vidas.  Esse ultra neoliberalismo vigente pode perdurar por muito tempo como ainda acontece no Chile ou ser suplantado mais rápido do que o que se imagina. Mas para o seu paradeiro iremos depender do engajamento e da mobilização da maior vítima que somos nós, o povo.

* Engenheiro Civil e ex-diretor do Sindiágua.

Edição: Heloisa de Sousa