Minas Gerais

PESQUISA

UFMG participa de estudo de vacina contra HIV que pode evitar 28 milhões de infecções

Estudo já está na fase 3, caso aprovado evitará 28 milhões de novas infecções em 10 anos

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
"Se é um corpo vivo, humano, é vulnerável ao vírus do HIV" - Créditos da foto: Arquivo/Agência Brasil

“Falar de uma vacina contra HIV é um ganho extraordinário para a humanidade.  Estamos vivenciando a ciência no nosso dia a dia com a covid-19 e estamos vendo a importância das pesquisas, das vacinas e dos voluntários. Sobre o estudo do HIV, acredito que é promissor e é mais um avanço na nossa luta”. A avaliação é de Jeferson Carvalho, que é coordenador de educação comunitária do estudo Mosaico (aqui), realizado no âmbito da Rede de Ensaios de Vacinas contra o HIV (HIV Vaccine Trials Network – HVTN, em inglês).

A Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais é uma das instituições de oito países que fazem parte do estudo, que está na fase 3 dos testes. O Mosaico irá testar a eficácia de duas vacinas (Ad26.Mos4.HIV e Bivalent gp140), que juntas podem prevenir contra a infecção por HIV. As vacinas – desenvolvidas por pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos – são fornecidas pelo fabricante, Janssen Vaccines & Prevention BV, parte da Janssen, empresa farmacêutica da Johnson & Johnson.  

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O estudo também envolve institutos e centros de pesquisa dos Estados Unidos, e, no Brasil, além da UFMG, participam o Centro Médico São Francisco, no Paraná; a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, no Amazonas; o Hospital Geral de Nova Iguaçu e o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz, ambos no Rio de Janeiro; o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e o Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo.

A novidade é um alento – em meio à crueldade da pandemia do coronavírus –, sobretudo para as pessoas que vivem com HIV, como o é o caso de Jeferson, que há 19 anos recebeu seu diagnóstico positivo. “Sempre levei o meu diagnóstico com muita leveza e sempre tive muita vontade de viver. Sempre que acolho alguém que recebeu um resultado positivo para o HIV, gosto de frisar que viver é muito bom e que é preciso dar tempo para si mesmo e nunca desistir. Dar as mãos e mostrar que podemos viver com o HIV, mas com o preconceito, jamais”, relata Jeferson.

O preconceito e o estigma, que ainda existem muito fortemente em torno do HIV, tornam o assunto ainda pouco falado na sociedade, embora o Brasil já conviva com o HIV/Aids há mais de 40 anos. Rafael Sann, que é secretário executivo da Rede de Adolescentes e jovens que Vivem e Convivem com HIV, afirma que, apesar de seu diagnóstico positivo ser uma forma de atuação política, ainda é muito difícil falar sobre sua sorologia para todas as pessoas, inclusive familiares.

Estudo de vacina contra o HIV, com participação da UFMG, está na fase 3 de testes

“Pelo medo do preconceito, né? Imagina: eu que sou bem resolvido, militante, tenho medo da exposição. Acho que infelizmente, muitas pessoas escondem [o diagnóstico] por causa do preconceito, que é muito forte. Falar de HIV/Aids é tão difícil hoje porque sexo é um tabu”, aponta Rafael, que também é redutor de danos e educador social e há seis anos vive com HIV. Ele, assim como Jefferson, enxerga com esperança a pesquisa que a UFMG está participando, uma vez que a vacina contra HIV será benéfica para todo mundo, pois pode evitar 28 milhões de infecções nos próximos 10 anos.

“Tanto para quem não vive com HIV, quanto para quem vive com HIV, [a pesquisa] é uma esperança de não se preocupar mais com essa doença que tem uma carga social pesadíssima. E tudo que vem da ciência em relação ao HIV nos remete à cura também. Como militante, fico muito feliz e como mineiro, fico muito orgulhoso da UFMG”, avalia.

Fase 3 de testes

Antes de iniciar a fase 3, o estudo contou com testes em macacos e humanos, e se mostrou seguro. Concomitantemente ao Mosaico, o ensaio clínico chamado Imbokodo já está em andamento na África do Sul, Zimbábue, Moçambique, Zâmbia e Maláui, com mulheres cisgênero de 18 a 29 anos de idade. Em todos esses países, a epidemia de HIV está concentrada neste perfil de mulheres cisgênero heterossexuais.

Nos voluntários do Mosaico, serão aplicadas quatro doses da vacina em um intervalo de três meses, sendo que metade do grupo, sorteado aleatoriamente, receberá o placebo. Somente um comitê externo saberá quem recebeu de fato o imunizante, mas todas as pessoas serão acompanhadas por 30 meses.

Vacina promete ser multivalente, com capacidade de proteger contra vários subtipos de HIV

A vacina de vetor viral que será testada, chamada de Ad26.Mos4.HIV, é fabricada a partir de cópias sintéticas de partes do HIV inseridas em um adenovírus – um vírus inofensivo parecido com o do resfriado comum, ou seja, incapaz de causar infecção por HIV. A terceira e quarta injeções serão de uma vacina de proteínas gp140m, que compõem o envelope de várias cepas do HIV. A promessa é que a combinação desses dois imunizantes proteja a pessoa contra vários subtipos de HIV.

Nos oito países – Estados Unidos, Espanha, Polônia, Peru, México, Brasil, Argentina e Itália – que participam do estudo serão aplicadas vacinas em 3.800 pessoas, 120 delas recrutadas pela UFMG até julho deste ano. Os testes já começaram, mas homens cisgênero ou pessoas trans que fazem sexo com homens cisgênero e/ou pessoas trans ainda podem se voluntariar, mas é necessário ter entre 18 e 60 anos de idade.

Jeferson Carvalho, que faz parte do projeto, explica que os voluntários devem comparecer em média 14 vezes para receberem o acompanhamento que será realizado por uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiros, assistentes sociais, farmacêutico e por membros da equipe de educação comunitária, que fazem o trabalho de recrutamento e retenção dos participantes. “O acompanhamento dos voluntários junto aos educadores faz com que as consultas sejam mais acolhedoras”, aponta. O recrutamento está sendo realizado por pares, ou seja, homens gays recrutam homens gays, e pessoas trans recrutam pessoas trans.

Todos são vulneráveis

São muitos os esforços científicos que, desde a identificação do vírus nos anos 1980, são empreendidos em diversas partes do mundo para entender o funcionamento do HIV, as melhores estratégias de prevenção e as formas de tratamento mais eficientes. Segundo o pesquisador Matheus Salvino, que é mestre em comunicação social pela UFMG, a epidemia da Aids não foi a primeira causada por uma infecção sexualmente transmissível (IST) – a de sífilis, por exemplo, é muito mais antiga.

No entanto, a Aids foi a primeira epidemia que, no início, se achou que teria como principais vítimas pessoas de grupos específicos. Homens gays foram os primeiros a serem taxados como “grupo de risco” pela própria ciência, o que contribuiu para a estigmatização que até hoje existe na sociedade. Com a ampliação do conhecimento sobre o vírus e seu comportamento, se mostrou que toda a sociedade está suscetível ao HIV, independente do sexo, identidade de gênero, orientação sexual, nacionalidade. 

Se é um corpo vivo, humano, é vulnerável ao vírus do HIV. Mas, ainda no discurso persiste aquela ideia de grupo de risco. E daí surge outra coisa que foi a que a ciência colocou, que é a metáfora bélica: a guerra contra a Aids, a guerra contra o HIV, a guerra contra o vírus. E a ciência de fato entrou numa guerra. Mas o homem gay, por exemplo, acaba se tornando um inimigo nessa guerra anunciada”, aponta Matheus, que há quase 11 anos vive com HIV.

Antes de iniciar a fase 3 o estudo contou com testes em macacos e humanos, e se mostrou seguro

Para o pesquisador, o estigma de hoje não é o mesmo da década de 1980, que remete à imagem do Cazuza estampado na revista, que amedrontava homens gays que viam seus pares, amigos, namorados falecerem todos os dias. Hoje, o estigma está dentro das casas em que as pessoas têm contato com o vírus cada vez mais jovens, muitas vezes ainda dependentes de suas famílias. Além da violência e do silenciamento que acontecem, muitas vezes, dentro de casa, outra manifestação do estigma se dá no mercado do trabalho.

“Ter a sorologia pública para o HIV, dizer ‘eu vivo com HIV’, é quase correspondente a abdicar de um emprego digno. Os empregadores não contratam. Porque isso está sempre relacionado à moralidade, às dissidências sexuais. Talvez o estigma seja uma mácula, uma marca menos visível, igualmente traiçoeira, e que traz consequências psíquicas mais internas”, avalia.

Avanços farmacológicos

Diversos avanços já foram desenvolvidos ao longo da história. A medicação para tratamento, por exemplo, saiu do famoso AZT, passa pelo Efavirenz e, mais recentemente, há o Dolutegravir, que causa muito menos efeitos colaterais comparado aos dois primeiros. O AZT, embora seja uma droga muito danosa, chegou ao Brasil “traficada” dos Estados Unidos pelas aeromoças da Varig, ficando ainda restrita às pessoas que tinham dinheiro.

Desde 1996, o Brasil distribui gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) todos os medicamentos antirretrovirais e, desde 2013, o SUS garante tratamento para todas as pessoas que vivem com HIV, independentemente da carga viral. Em 2010, o então presidente Lula quebrou a patente do Efavirenz, que possibilitou a negociação com laboratórios mais baratos.

Além da medicação, o SUS também disponibiliza preservativos, e medicamentos que compõe a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição ao HIV (PEP). Para Matheus, a prevenção combinada ao HIV pode ser considerada como um dos principais avanços da ciência, na qual entraria também a possível vacina em desenvolvimento pela UFMG.

“A prevenção combinada permite dizer que o único modo, cem por cento seguro de evitar infecção, é transar com uma pessoa que vive com o vírus, sabe que tem o vírus e está em tratamento eficaz. Isso é mais seguro do que só usar o preservativo, porque coloca o bem-estar e a qualidade de vida da pessoa que vive com HIV em evidência”, aponta o pesquisador.

Atualidade HIV/Aids

No Brasil, cerca de 920 mil pessoas vivem com HIV, segundo estimativas do último boletim epidemiológico de HIV/Aids, divulgado no dia 1º de dezembro de 2020, pelo Ministério da Saúde. Desse total, 89% foram diagnosticadas, 77% fazem tratamento com antirretroviral e 94% estão em tratamento e não transmitem o HIV por via sexual por terem atingido carga viral indetectável.

Segundo o documento, entre 1980 e junho de 2020, foram identificados 1.011.617 casos no país, que, em média, tem registrado, anualmente, 39 mil novos casos nos últimos cinco anos. As pessoas na faixa etária de 25 a 39 anos, de ambos os sexos, concentram o maior número de diagnósticos positivos, chegando a quase 493 mil registros.

Documentário: três décadas de HIV no Brasil

Dirigido por André Canto, o documentário Carta para Além dos Muros refaz três décadas de história do HIV e da Aids no brasil. Com relatos de ativistas, médicos e outros especialistas, a narrativa é inspirada no trabalho do escritor gaúcho Caio Fernando de Abreu, que assumiu sua sorologia e faleceu dois anos depois em 1996 em decorrência de complicações da Aids. A obra está disponível nas plataformas digitais de streaming.

Mais informações

Interessados em participar do estudo ou obter outras informações podem entrar em contato pelo e-mail [email protected] ou pelos telefones/WhatsApp (31) 99216-0407 e (31) 99331-3658.

Edição: Elis Almeida