A referência é 'neutralizar' elementos linguísticos que reforçam o privilegiar masculino
Por Cleber Ferreira Silva*
Recentemente, popularizou-se o debate sobre mudanças linguísticas ditas contrárias à supremacia sexista que é cristalizada na gramática do português escrito. Bem, poderíamos afirmar que, em algumas publicações no facebook, instagram e twitter, o “x”, “@” e, agora, o “-e” têm sido frequentes em substituição aos tradicionais “-o” e “-a”, morfemas indicadores dos gêneros feminino e masculino em classes nominais. Doravante, menina, menino e “menine” serão mais comuns do que se pensa. Assim, podemos questionar o motivo de tal “ataque” ao “modelo correto” de escrita e fala das palavras?
Antes de expor algumas particularidades sobre a linguagem nova, devemos saber quais sujeitos são os que propõem essa mudança que, por sua vez, vem causando uma reação neoconservadora que até então se posta em defender o “purismo” da língua portuguesa. Ora, a linguagem neutra ou a linguagem dos não-binários parte unicamente em se contrapor à expressão do gênero dominante na aquisição da relação entre feminino e masculino, na qual o masculino é o privilegiado.
Lembremos que, há dez anos, quando a saudação inicial de reuniões passou de “bem-vindo a todos” para “bem-vindos todas e todos”, houve quem reivindicasse o uso exclusivo de “todos” por concordar com a exclusão do gênero feminino, sempre reproduzindo a regra gramatical do uso da desinência “-o” como totalidade e, assim, incorporando as mulheres por quantidade, invisibilizando-as.
Algo que devemos considerar, nesse debate sobre linguagem, são os avanços da Teoria Queer, conjunto de postulados e reflexões que descontrói a modalidade sexual e trata da visibilidade de gênero. Ou seja, evolui-se o debate simples e puramente convencional no campo da sexualidade, descobrindo que as relações de gênero são mais complexas que os papéis sexuais ou a hipervalorização de corpos e genitálias.
Podemos destacar que obras como História da Sexualidade (1973), de Michel Foucault, Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade (1990), de Judith Butler, e Manifesto Contrassexual (2000), de J. P. Preciado, contribuíram, e muito, para uma ressignificação nas relações que se apreende sobre o gênero. Isto é, o papel identitário que os sujeitos exercem no meio social, que não condiz, de maneira direta, com seus corpos e genitálias.
Sempre associamos gênero a sexo. Isso, inclusive, é o que legitima segregar e discriminar pessoas cujo comportamento e expressão de gênero não se adequem aos regimes disciplinares impostos pelas convenções éticas da sociedade.
Como a linguagem é considerada uma instituição social que rege e articula a comunicação, percebemos que a ela e o discurso exercem o poder regulatório em torno do nosso comportamento. É através da linguagem que se legitimam as opressões mais antigas da humanidade, dentre as quais: machismo, preconceito de gênero, LGBTIfobia, racismo, etnocentrismo, preconceito de classe e antissemitismo.
As pessoas que trazem a proposta do não-binarismo, aqueles que não reivindicam masculinidade e feminilidade, podendo ou não mudar sua aparência sem mudar seu corpo, como as travestis e pessoas trans, pretendem, por sua vez, diluir a supremacia do machismo e patriarcalismo na linguagem. Por isso que a referência é “neutralizar” elementos linguísticos que reforçam o privilegiar masculino e que autorizam a invisibilidade de outros sujeitos e expressões de gênero.
O uso da desinência “-e”, que vem desencadeando até projetos de lei que visam “proteger a estrutura tradicional da língua”, é um recurso para, justamente, questionar a supremacia do masculino na linguagem, sendo os morfemas “-e” e “-u” sugeridos num documento analítico de ressignificação da linguagem chamado de Manifesto I/e ou Manifesto E/u (2010), cuja proposta é ressignificar a linguagem e corrigir o seu aspecto sexista.
A palavra neutra já foi usual até na gramática portuguesa. Antes dos acordos linguísticos e das reformas ortográficas, se admitia o uso de neutros para nomear objetos, influência notória do latim e grego clássico, que preconizavam o uso do gênero neutro para objetos e plantas. Agora, nesse alvorecer do século XXI, quando o objetivo é dar um xeque-mate ao patriarcalismo e suas formas de opressão, nada mais legítimo que redesenhar os modelos morfológicos e semânticos da língua.
No Brasil, já se observa um avanço nesses debates. Em 2014, no governo de Tarso Genro no Rio Grande do Sul, a secretaria de políticas para as mulheres elaborou um material digital sobre a linguagem não-sexista que abrange os termos da linguagem não-binária. Embora tenha originado uma ampla resistência por parte de setores conservadores, houve uma proposta de renovação no que tange às relações de gênero.
Sabemos que políticos de extrema-direita criticam a linguagem não-binária não por ela agredir o sistema “correto” da língua, mas porque a ameaça de reduzir o sentimento de machismo os assusta. Afinal, jamais observamos o Eduardo Bolsonaro ou o Carlos Bolsonaro recitando Camões nas sessões parlamentares ou até incentivando a leitura de obras da literatura nacional.
Em 2019, o governador do Amazonas decidiu censurar até Machado de Assis e Ruben Alves de bibliotecas e escolas, afirmando que são autores de cunho ideológico impróprio aos adolescentes; que, de melhor valia, seria a Bíblia lida e ensinada nas salas de aula. Ora, o desejo de fazer calar e o pavor pelo avanço do debate sobre relações de gênero são as motivações destes machistas de plantão que apelam à censura vil na tentativa de legitimar seus discursos nocivos. Diante disso, vamos seguir descobrindo e ressignificando os novos aspectos da comunicação, a fim de atingirmos uma sociedade menos repressiva.
* Professor de Língua Portuguesa e militante do Movimento Espírito Lilás - MEL
Edição: Cida Alves