Paraíba

EQUÍVOCO

João Azevêdo anuncia pacote de mobilidade urbana, mas só inclui carros no orçamento

"Postura rodoviarista tapa buraco e descobre outro"

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Mobilidade urbana para carros é modelo ultrapassado e agrava desigualdades sociais. - Dave @davenadave

O Governo da Paraíba lançou no último dia 05 de abril um "programa de novas obras rodoviárias e de mobilidade urbana". Com recursos na ordem de R$ 435,17 milhões, a previsão é que seja executado até 2022. Segundo o anúncio, "as ações têm o objetivo de assegurar desenvolvimento e impulsionar a economia de todas as regiões do estado, com a injeção de recursos totalmente do tesouro estadual".

Visando estimular a geração de emprego e renda, o pacote apresentado pelo governador João Azevêdo é uma iniciativa de enfrentamento à crise no pós-pandemia. Entretanto, o programa mobiliza vultuosos recursos de maneira equivocada, pois, tal como divulgado, privilegia  obras essencialmente rodoviaristas, reforçando estratégias ultrapassadas e que vêm sendo abandonadas por planejadores urbanos desde o século passado.

Da mesma forma que é urgente a proposição de investimentos públicos para enfrentar o maior e mais prolongado período de desemprego das últimas décadas, é preciso ter atenção aos sinais que a atual crise sanitária ressaltou. O estado pandêmico alertou o mundo para a correlação entre desequilíbrios ecológicos e pandemias, reforçando a essencialidade da questão ecológica.

Ao optar por investir quase meio bilhão de reais em ações que privilegiam essencialmente o carro, chamando de obras de "mobilidade urbana", o governo atesta desconhecer a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal N. 12.587/2012), que tem como uma das suas diretrizes basilares a "prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado".

Paraíba investe na geração de emprego e renda, mas postura rodoviarista tapa buraco e descobre outro. Política de mobilidade urbana que prioriza carros é insustentável e agrava desigualdades sociais acentuadas na pandemia.


Pacote de obras é fundamental na retomada da economia, no entanto sua aplicação deve ser assertiva


Não resta dúvidas da necessidade de investimentos públicos robustos e de longa duração para reerguer a economia, gerar empregos e renda para a população. A infraestrutura urbana, portanto, surge como um excelente pilar da mobilização desses esforços, já que coloca o Estado na condição de indutor do desenvolvimento, modernizando as suas condições físicas e ao mesmo tempo permitindo a criação de milhares de postos de trabalho na faixa de renda que mais necessita.

No entanto, a mobilização de tamanho volume de recursos deve ser precisamente planejada para que se beneficie não apenas no curto e médio prazo com a geração de renda, mas, também, de forma perene, com o efeito dessas obras na melhoria da qualidade de vida da sua população. Caso essa receita não seja seguida, perde-se uma oportunidade histórica de recolocação do Estado em um patamar adequado com relação ao desenvolvimento efetivamente sustentável.

O investimento baseado nas grandes obras rodoviaristas foram símbolo do desenvolvimento econômico da segunda metade do século passado, e no caso do Brasil deixou profundas "feridas" urbanas que representam problemas até hoje. As externalidades causadas por esse tipo de investimento, portanto, acompanham a vida das cidades durante longo tempo.

Assim, é fundamental que neste momento o poder público reclame o papel de protagonismo de obras de infraestrutura que acompanhem o paradigma da mobilidade urbana comprometida com o meio ambiente e bem estar da população. É preciso investir nos mais variados tipos de sistemas e modais de transporte público, de maneira que essas obras contribuam para a mudança do perfil de deslocamento global da população, principalmente no que diz respeito à região metropolitana.

A pandemia evidenciou o protagonismo da mobilidade urbana na vida cotidiana da população
Uma das questões centrais reveladas pela necessidade do isolamento social e distanciamento físico trazidas pela pandemia foi o modo como estão estruturados os deslocamentos na cidade. Compulsoriamente, a maioria da população se viu exposta ao vírus diante do fato de que os transportes públicos e os modos ativos nunca ou raramente foram prioridade no tratamento das políticas públicas.

Tem sido comum nos noticiários reportagens sobre o número de ônibus lotados em horário de pico, mesmo com todas as restrições impostas pela quarentena. Atitudes de governos em reduzir a frota durante a pandemia apenas contribuíram para isso. Atualmente, quem mais se serve de transporte público é um recorte da população que ou faz parte do grupo de serviços essenciais ou segue trabalhando presencialmente em virtude da flexibilização de alguns setores, como o da construção civil. Além disso, dificilmente as calçadas estão em condições de uso, em especial nos bairros periféricos ou carentes de urbanização adequada (leia-se, aqui, aqueles que não pertencem à população de alta renda). Esse cenário não só desestimula a presença de idosos, crianças e pessoas com mobilidade reduzida no espaço público como obriga pedestres a se locomoverem pelo asfalto, se arriscando com o trânsito de carros. 

Não se deve esquecer, também, a mínima estrutura oferecida aos ciclistas, que, apesar dos poucos e demorados avanços, seguem cobrando rotas mais seguras, confortáveis e integradas entre si. Os dados de mortes de usuários de bicicleta por atropelamento ainda são alarmantes e quase nunca sensibilizam o poder público. Enquanto isso, a minoria que possui condições de fazer seus deslocamentos diários em automóvel particular pôde experimentar durante a pandemia condições mais cômodas de tráfego na cidade, agora com menos veículos circulando.

É urgente o direcionamento de recursos que visem equilíbrio e equidade das formas de deslocamento na cidade. É preciso estimular cada vez mais a implementação de faixas exclusivas de ônibus, por exemplo. Essa atitude, além de garantir prioridade ao transporte coletivo, reduz o custo do sistema e aumenta a sua eficiência. Replanejar rotas, ampliar a frota e garantir acessibilidade universal nos ônibus também é fundamental para a democratização do serviço. Além disso, deve-se incentivar a mobilidade ativa, implantando infraestrutura cicloviária adequada para a bicicleta como meio de transporte, bem como ampliando e qualificando os espaços de circulação dos pedestres, tudo isso aliado a um importante plano de arborização que garanta qualidade de deslocamentos para ambos os casos.

Todo esse novo contexto evidencia a importância de valorização do ambiente público, livre e coletivo, onde hoje o risco de contaminação é menor. Com a expansão das atividades urbanas para o ambiente externo - estabelecimentos comerciais aumentando serviços ao ar livre, eventos culturais, aulas, áreas de lazer etc -, o espaço público na escala humana, dos serviços de bairro e de trajetos de até 15 minutos ganham muito mais protagonismo que o espaço público rodoviário.

Portanto, como visto, o "grande pacote de mobilidade urbana" de João Azevêdo possui graves erros em sua concepção. Em pleno século XXI, anda na contramão do que preconiza o principal documento legal da Política Urbana Federal sobre o tema, é insensível às fraturas expostas pela pandemia e anacrônico frente aos modelos mais contemporâneos de planejamento urbano sustentável e ecologicamente comprometidos com o meio ambiente. Ao se esconder por trás da égide populista da geração de emprego e renda, o governo da Paraíba reafirma sua posição desenvolvimentista camuflada de progressista e assume um desconhecimento culposo sobre o agravamento das desigualdades sócio-territoriais.

Se não foi com o histórico das deficientes experiências do passado, espera-se que com as lições da pandemia o poder público tenha coragem política de romper com o paradigma do planejamento urbano carrocêntrico, poluidor, segregador, individualista e elitista.

 

* Flávio Tavares é urbanista, integra o Conselho Superior de Arquitetos do IAB, a rede BrCidades e o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas de Cidades da Fundação Perseu Abramo.


* Pedro Rossi é arquiteto e urbanista, professor, ex-presidente do IAB.pb, conselheiro estadual do CAU/PB, membro da coordenação da rede BrCidades e pesquisador do LabHab/FAUUSP.

Edição: Heloisa de Sousa