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O que tem de Nordeste em Juliette

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Juliette Freire, o fenômeno nordestino no BBB 21 - Reprodução
Então, o que é Juliette? É a mulher nordestina atual. Valente e destemida como sempre.

O último Big Brother Brasil (BBB) que eu havia assistido foi o que revelou Jean Willys. Faz tempo.

Programa de reality show, de entretenimento, que atiça o espírito de disputa entre as pessoas na lógica terrível de que fama e dinheiro são sinônimos de felicidade, e que, de resto, cumpre o proposto pelas TV's comerciais: lucro para elas e para os seus patrocinadores. Receita que envolve monopólios vinculados ao Capital Financeiro; cumprindo o papel de alienar os telespectadores dos reais e graves problemas sociais do país.

Em um país com o nível de contradições que vivemos, é natural que surja no BBB, parte dos dilemas sociais que naturalmente emergem em nossa sociedade.

No microuniverso do BBB tem pululado questões que estão na pauta do dia em nossa sociedade: homofobia, machismo e racismo emergiram fortemente.

Mas o fenômeno do atual BBB que me fez, com alguns meses de atraso, procurar assistir o programa é Juliette. 

Dos grupos de WatsApp da família, aos grupos de intelectuais, passando pelos grupos de estudos e debates políticos, muitas vezes se fala e cita Juliette; se usam “expressões nordestinas” de Juliette. 

Já fizeram músicas, afixaram outdoors e organizaram torcida pela moça. De jovens despolitizados e alheios às brigas políticas a militantes de esquerda tem-se organizado torcidas e militância por Juliette.

É um fenômeno nacional. Impossível ficar alheio.


Algumas questões

Juliette expressa o Nordeste ou é mais um estereótipo? O que a faz tão querida no Brasil é sua nordestinidade expressada ou sua (até agora) autenticidade e lealdade com o restante da casa? Ou as duas coisas?

O que é esse fenômeno? O que representa?  

São questões que merecem análise antropológica e psicológicas mais profundas, impossível de analisar em um minúsculo texto. 

Algumas observações necessárias.

O Nordeste é muito diverso. Geográfica, social e culturalmente não é possível dizer que existe o Nordeste “uno”, homogêneo. O Nordeste-Maranhão é muito diferente do Nordeste-Paraíba, como também dos nordestes baiano, cearense ou pernambucano. Isso dá uma diversidade cultural, também, muito grande. De uma riqueza realmente impressionante.
Da mesma forma, econômica e socialmente, esse macro-espaço denominado Nordeste é muito diverso.

O Nordeste do Agronegócio empresarial do Oeste baiano, Sul do Piauí e Maranhão é muito diferente do imenso Nordeste Semiárido, majoritariamente “coalhado” pela Agricultura Familiar. Nesse Semiárido ainda constam as ilhas de áreas irrigadas, produzindo outra dinâmica econômica. Todos esses nordestes são muito diferentes do Nordeste-litoral, de grandes centros urbanos, industrializados, como Recife, Salvador e Fortaleza; do Nordeste-Turismo, de praia e sol. 

Existe o Nordeste das oligarquias rurais, dos coronéis, dos fisiologistas da política. 

Enfim, quando falamos de Nordeste é preciso retomar Tânia Bacelar: Nordeste, nordestes, que Nordeste? De qual Nordeste estamos falando? Creio que o que há de unidade nessa imensa diversidade econômica, social, territorial e cultural que forjou o Nordeste foi seu papel no processo de industrialização do Brasil.

Foi a forma como se inseriu no contexto da industrialização brasileira, que se forjou uma nordestina/ um nordestino que carrega consigo um traço comum diante dessa diversidade. 

Esse produto do Nordeste da excluída / do exluído, expulsa/expulso. O Nordeste do retirante para ser mão-de-obra barata no impulso urbano-industrial do eixo sul-sudeste. 

Esse, que foi expulso das secas do Semiárido, da concentração de terras do Agronegócio no MATOPIBA, ou das “plantation” de Cana-de-Açúcar do litoral é um só. É o nordestino peão, zelador, porteiro, operário; é a nordetina faxineira, empregada doméstica ou apenas uma/um “Paraíba” se estiver no Rio ou um “Baiano”, se estiver em São Paulo. Esse é um só.

É a nordestina / o nordestino vítima de “mangoça” por seu sotaque, seu cabelo, sua altura, sobretudo, sua condição social. É sobre essa nordestina/ esse nordestino que recai toda sorte de preconceito de um tipo de “xenofobia à brasileira”.

Essa nordestina/esse nordestino emigrou, expulsa/expulso por uma estrutura socioeconômica perversa, complementar da economia em vias de industrialização e urbanização das outras partes do mesmo Brasil. 

A imagem do Nordeste e da nordestina/ do nordestino erguida e trabalhada em outras regiões do país é a partir dessa verdadeira “diáspora” nordestina, que levou desse território cerca de 12,5 milhões de pessoas entre os anos 1950 e 1990.

Daí o estereótipo, o preconceito, a violência. Como diz a poesia de Patativa do Assaré: “Faz pena o ‘nortista’ tão forte e tão bravo, viver como escravo nas terras do Sul”. 

Parece-me que Juliette expressa com legitimidade essa/esse nordestina/nordestino. Ou melhor, essa nordestina arretada, que veio de baixo, da favela. Certamente de família emigrante de algum “sertão nordestino” para Campina Grande, cidade polo que recebe, há séculos, os diversos nordestes e sertões por caminhos de quem vai e de quem vem para esses mundos.

Ao contrário do estereótipo, Juliette não é a boba, o bobo, sempre motivo de galhofa dos de outras regiões. Lógico que, com seu sotaque e nordestinidade tentaram isso contra ela. Não deu certo. Porque ela não é a mão de obra barata, do qual se extraiu tudo, tirando seu sumo, seu suco e desprezando o bagaço humano para esperar a morte distante da terra natal, “tão seca, mas boa”. Fenômeno comum na história dos retirantes nordestinos. 

Então, o que é Juliette? É a mulher nordestina atual. Valente e destemida como sempre. Só que agora: culta e com capacidade crítica. 

Juliette é a prova viva de que vale a pena se investir em gente. Em educação. É a prova e a expressão de que se se investir no povo trabalhador, pobre, ele responde com altivez, com capacidade. 

É a prova de que foi política acertada investir em educação, em ampliar as vagas na educação superior, em criar as políticas afirmativas para inserir pobres nas universidades. 

Juliette expressa o Nordeste dos de baixo, de grande riqueza cultural

Expressa uma nova geração de nordestinas: de autoestima elevada, que luta contra o machismo, com sabedoria e inteligência. Com firmeza e segurança, sem perder a afetuosidade e a graça nordestina.

Juliette é resultado de um Nordeste que recebeu políticas públicas afirmativas, de inclusão social, e por isso, soube se posicionar politicamente. Depois de cursar Medicina, a garota saída do “Pedrega” (bairro do Pedregal) de Campina Grande, uma ex-favela da cidade, resultado do fim do ciclo do algodão no estado e dos impactos econômicos na cidade, ela opta por concluir Direito no Campus da UFPB de Santa Rita. Um curso criado pelo REUNI, na expansão da Universidade Pública Brasileira, que se destaca na formação do conhecimento técnico do Direito, mas também prepara a meninada com uma formação crítica muito especial, fortalecendo-as para a vida, para os imensos desafios da vida.

Certamente o BBB em tempos de pandemia tem recebido muita audiência-fuga daqueles que estão procurando algo leve para arejar minimamente o Brasil que naufraga sob Bolsonaro e essa fusão trágica entre fascismo e neoliberalismo. 

Mas, no seio desse caos e desses interesses meramente mercadológicos é possível enxergar alguma lucidez e esperança. Esperança de ver gente leal, autêntica. Esperança de sentir uma conexão entre pessoas verdadeiras e uma população carente de verdades.

Talvez seja esse o segredo para Juliette ter caído nas graças do povo brasileiro. Juliette representa esse Brasil que resiste, enfrenta as desigualdades, se reinventa e se impõe forte, leve, cheio de alegria e cultura a mostrar um Nordeste positivo, antifascista e uma Paraíba feminista. Na medida que ela expressa autenticidade e lealdade, expressa as significativas mudanças sociais ocorridas no Nordeste, mantendo a essência desse povo, que é muito da alma mais pura do brasileiro. 

Edição: Heloisa de Sousa