Paraíba

Coluna

A insegurança alimentar no Haiti: muito além da pandemia.

Imagem de perfil do Colunistaesd
Ajuda do Programa Mundial de Alimentos (PMA) chegando no Haiti - ONU/Logan Abassi
Atualmente, o país apresenta 46% da população em estado de elevada insegurança alimentar.

Por Beatriz Gomes Cornachin*

 

Na última semana, especificamente no dia 29 de março, movimentos sociais pelo mundo organizaram o Dia em Solidariedade ao Povo do Haiti. Dentre os temas centrais que levaram tais movimentos a se solidarizarem com a população haitiana consta o atual cenário de instabilidade política e econômica, cujas origens não são recentes, mas que, certamente, agrava sua vulnerabilidade social no contexto da pandemia. Um dos principais motivos é que o presidente Jovenel Moïse, que deveria desocupar o cargo em 7 de fevereiro de 2021, se mantém no poder de maneira arbitrária. Além disso, o país está com o parlamento fechado desde 2020 e o Judiciário paralisado. 

A primeira república negra do mundo, que, após a revolução de africanos e descendentes de africanos escravizados, conseguiu sua independência em 1804 para se ver livre do sistema colonial, hoje, também enfrenta dificuldades para trilhar um caminho independente, sem interferências negativas em seu território. No entanto, o quadro de crise política, que já estava intensificado desde 2018, com ondas de protestos no país por questões relacionadas à dificuldade de acessar combustível e alimentos, além da insegurança, se agravou com os fatos políticos recentes.

Atualmente, o país apresenta 46% da população em estado de elevada insegurança alimentar, ou seja, ao menos 4,4 milhões de pessoas, em um território de aproximadamente dez milhões de habitantes, apresentam lacunas entre uma alimentação e outra, refletindo sinais de desnutrição ou tendo refeições que não são capazes de atender necessidades mínimas. Dentre as 4,4 milhões de pessoas, 1,2 milhão estão em estado de emergência, significando que as lacunas entre as alimentações podem refletir graus severos de desnutrição, incluindo possibilidade de mortalidade, ou, ainda, que podem diminuir as lacunas entre as refeições apenas com estratégias de emergência, conforme relatório do PMA (Programa Mundial de Alimentos) e da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), publicado em março de 2021. 

Além disso, importante pontuar que o custo diário da dieta saudável do país é uma das mais caras da região e do mundo, 4,91 dólares, inacessível para 88% da população haitiana.

O relatório que nos traz os dados foi elaborado para mostrar os países que estão passando por cenários semelhantes, chamados de Hunger Hotspots. Para que menos vidas sejam ceifadas pela fome, as ações de emergência incluem a demanda de ao menos 160 milhões de dólares para destinar alimentos e suprir carências nutricionais das áreas mais fragilizadas no país. Dentre os motivos apresentados como impulsionadores da insegurança alimentar no Haiti, constam dificuldades econômicas crescentes agravadas por instabilidade e agitação social e política, além da colheita prejudicada por índices de chuva abaixo da média. 

Contudo, além dos fatores de conjuntura, a pandemia evidencia certas dificuldades que os territórios já tinham anteriormente. Por exemplo, a adaptação que a maior parte dos países precisou enfrentar para funcionar com isolamento social e com ferramentas virtuais, como o Brasil em relação à educação, é praticamente impossível no Haiti na medida em que boa parte do país não tem estrutura elétrica. 

Destaque-se que o Haiti apresentava situação de desnutrição e de insegurança alimentar antes mesmo da pandemia e, inclusive, antes do terremoto de 2010, que, na ocasião, deixou aproximadamente 300.000 mortos e mais de 1 milhão de feridos. Após o terremoto, a comunidade internacional voltou sua atenção ao território e uma série de ações foram propostas para coordenar a assistência e os auxílios. 

Uma ação que levantou debates, especialmente atrelados à questão alimentar, foi a ajuda que a transnacional Monsanto ofereceu. Entre sementes de milho e vegetais, 475 toneladas foram entregues ao país. Lideranças de movimentos camponeses se opuseram por diversos motivos, dentre eles, a característica híbrida das sementes. Não apenas a impossibilidade de reutilização para o plantio, mas alegação de que, além de híbridas, também se tratavam de transgênicas. Evidente que o que a Monsanto representa mundialmente e os impactos que causa no sistema agroalimentar colaboram para a oposição.

Devemos lembrar o papel da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) e a tentativa de “estabilizar” o país. Liderada militarmente pelo Brasil, a missão durou de 2004 a 2017 e, até hoje, debates são travados sobre a eficiência para melhoria do cenário. Dentre as principais alegações, ganha centralidade as que se referem à violência presente nas operações da missão, além de diversos casos envolvendo assédio e abuso sexual. Soma-se a isso, o próprio quadro atual do país e a persistência de muitos dos problemas que existiam antes e durante a MINUSTAH. Esses fatos levantam questionamentos sobre a efetividade das ações em seu objetivo principal de estabilizar o território haitiano. 

Desde a década de 1980, o país apresenta crescente dependência do mercado externo para abastecer sua população de alimentos, especialmente de um dos itens básicos de sua dieta: o arroz. Dentre os motivos que levaram à crescente dependência, diferentes estudos e o próprio Ministério da Agricultura do país apontam as medidas de liberalização do comércio aplicadas justamente na década de 1980, especialmente sobre o arroz, e a consecutiva entrada do produto estadunidense que, na atualidade, compete com a produção local. Em outras palavras, a tarifa de importação de arroz, que era de 35%, foi para 3% e permitiu que arroz de fora tivesse maior facilidade para entrar no território e competir com o dos produtores do próprio país. Além disso, a produção nos Estados Unidos conta com subsídio de Washington, ampliando a possibilidade de melhores preços. 

Os números evidenciam o aumento da importação: em 2000, a importação era de 184 milhões de toneladas; entre 2017 e 2018, de 412 toneladas. Os preços do produto no mercado doméstico mostram o aspecto da competição com o produtor local. Em 2014, 2,7 quilos de um tipo de arroz local (Shella) custava 215,00 gourdes, enquanto uma das marcas de arroz importado (Tchako - EUA) tinha o preço de aproximadamente 103,00 gourdesi

Outros fatores completam esse quadro de fatores que dificultam o acesso aos alimentos no país. O cenário de pandemia pode trazer à tona números e evidências que, em um primeiro instante, parecem ser resultados exclusivos do momento delicado que estamos vivendo. Entretanto, um olhar mais atento permite uma compreensão mais profunda das estruturas que, dentre outras coisas, permitem a fome. 

A preocupação com as populações e países socialmente mais vulneráveis esteve presente desde o início da pandemia. Neste contexto, o Haiti, considerado o país mais pobre das Américas e que já vivia um cenário político muito conturbado antes da pandemia, se torna ainda mais vulnerável em decorrência da instabilidade política.

 

iDados adaptados para facilitar a leitura. Informações do Ministério da Agricultura do Haiti: Arroz Tchako EUA 25 quilos, custo de 975,00 gourdes.  

 


*Doutoranda em Economia Política Mundial – Universidade Federal do ABC (UFABC). Membro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org) da UFPB.
 

Edição: Cida Alves