Paraíba

Coluna

A Lava-Jato no banco dos réus

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O líder da Lava-Jato, o ex-juiz Sérgio Moro, cuja suspeição está sendo julgada no STF. - Lula Marques
A Lava-Jato se tornou uma ferramenta de perseguição política para impor um projeto próprio de poder.

Por Yago Licarião*

Não é fácil traduzir a linguagem daqueles que, usando uma capa preta, articulam termos técnicos para encobrir intenções e realizar manobras. Seria certo pressupor que, em uma sociedade que se pretende livre e democrática, os julgamentos sejam acessíveis aos cidadãos que estão sendo protegidos pela aplicação da lei. Nada mais irreal para todos aqueles que, com o encerramento do plantão da Globo, simplesmente se perguntaram o que lhes interessa na recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o ex-presidente Lula.

Para quem estava residindo em uma caverna e sem acesso a tecnologia – e eu sugiro que retorne para lá, até a pandemia passar –, vale a pena relembrar: o Ministro Edson Fachin, do STF, reconheceu a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para processar e julgar os supostos crimes praticados por Lula, denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF).

Mas o que é incompetência? Entre as regras básicas de qualquer processo judicial, encontramos o chamado “princípio do juiz natural”. Isso significa que o julgador deverá ser imparcial e independente, não podendo as partes escolher o juiz que irá proferir o julgamento, nem os juízes podendo escolher as causas em que irão atuar. Trata-se de um critério de validade, com o qual pretende-se garantir que os cidadãos brasileiros não serão submetidos a um tribunal de cartas marcadas, onde as decisões já estão pré-fabricadas. 

Para isso, os órgãos julgadores são divididos em diversos critérios, como a matéria tratada, o valor da causa ou, ainda, a abrangência territorial que alcançam. As duas denúncias apresentadas contra Lula se referiam a crimes que teriam sido praticados em Brasília, envolvendo dois imóveis localizados em duas regiões diferentes de São Paulo: um triplex no Guarujá e um sítio em Atibaia. Como, então, esses casos foram parar na mesa do então juiz Sérgio Moro em Curitiba?

Foi arquitetada, pelos procuradores do MPF, uma estratégia que eles mesmos sabiam não se sustentar nas supostas provas com que basearam sua acusação, como ficou demonstrado, posteriormente, pelas conversas divulgadas pela Vaza Jato e confirmadas pela Operação Spoofing: bastaria alegar que os supostos crimes estariam relacionados com os contratos firmados pela construtora OAS junto à Petrobrás. Bingo! 

Como a 13ª Vara Federal de Curitiba estava processando julgamentos que envolviam os crimes da Petrobrás (e não cabe, aqui, partir para a discussão dessa validade), todos os demais processos criminais que envolviam a estatal haveriam de ser “conectados” para evitar decisões conflitantes proferidas por juízos diferentes.

Acontece que os crimes que os procuradores pretendiam comprovar, ainda que existissem, em nada se relacionavam com a Petrobrás, algo que, surpreendentemente, foi reconhecido pelo próprio juiz Sérgio Moro em sentença, quando afirmou textualmente que "este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”.

Esse argumento sobre a incompetência da 13ª Vara Federal, na realidade, foi sustentado pela defesa de Lula desde o início do processo e persistiu nos inúmeros recursos apresentados, mas contou com as vistas grossas do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em Porto Alegre e do Superior Tribunal de Justiça. Também contou com o longo atraso de sua análise pelo STF até que, passado o impeachment sem crime de responsabilidade contra uma presidenta eleita – verdadeiro golpe de Estado, o impedimento da candidatura do principal adversário de Jair Bolsonaro nas eleições, a nomeação de Sérgio Moro como Ministro da Justiça deste mesmo Jair Bolsonaro, e as revelações das conversas ilegais e imorais entre os membros do MPF e Sérgio Moro, apenas agora foi reconhecida a incompetência territorial da 13ª Vara Federal de Curitiba.

A medida do ministro Luiz Édson Fachin, portanto, está correta por reconhecer uma grave violação aos direitos e garantias fundamentais, já que um cidadão foi submetido a julgamento e prisão determinados por um juiz que não tinha legitimidade para fazê-lo. Em outras palavras, significa que Lula foi escolhido pelos procuradores do MPF e pelo próprio Sérgio Moro como réu. 

Mas o momento em que ela é proferida e, principalmente, as consequências que o próprio ministro pretendeu conferir ao seu ato, trouxeram suspeitas sobre suas reais intenções.

Explicamos. Com o reconhecimento da incompetência territorial da 13ª Vara Federal de Curitiba, todas as decisões (inclusive aquela que aceita a denúncia oferecida) são anuladas, e o processo retorna a esse ponto, após ser transferido ao lugar correto para julgá-lo. Mas os demais atos do processo, como, por exemplo, as provas produzidas, podem ser – mas não necessariamente serão – mantidos pelo juízo. 

O mais grave, porém, está na tentativa do Ministro Edson Fachin de extinguir todos os demais Habeas Corpus (HC) apresentados pela defesa de Lula junto ao STF, notadamente o HC que pede o reconhecimento da suspeição de Sérgio Moro para processar e julgar Lula, com base em todas as conversas divulgadas (as quais atestam seu papel de coordenador e articulador da própria acusação) e, ainda, na sua aceitação de um cargo político no ministério do principal adversário político de Lula.

É que a suspeição ataca ainda mais severamente a imparcialidade do julgador e, por tal motivo, a força de sua nulidade é tida como absoluta, o que, na prática, implica anulação de todo e qualquer ato praticado pelo julgador, sem qualquer possibilidade de aproveitamento. Mais que isso, o reconhecimento da suspeição impediria a defesa política da extinta Operação Lava-Jato de que teria havido um mero erro judicial – ainda que a incompetência, por si só, não comporte tal argumento – mas sem nenhum prejuízo efetivo aos resultados obtidos. 

Essa tentativa se mostrou ineficaz até aqui, pois o Ministro Gilmar Mendes retomou o julgamento do mencionado HC e pôs em votação a questão da extinção proposta pelo Ministro Fachin, tendo sido decidido que o julgamento da suspeição não fora em nada afetado pelo reconhecimento da incompetência. Gilmar Mendes, então, proferiu um voto contundente e ácido, que pode se resumido em dois trechos: "O combate à corrupção é digna de elogios. Mas o combate à corrupção deve ser feito dentro dos moldes legais. Não se combate crime cometendo crime" e "Qualquer semelhança com ações julgadas em regimes autoritários não é mera coincidência".

O STF pôs, então, a própria Lava-Jato no banco dos réus. Aqueles que se arvoraram paladinos da justiça e rígidos acusadores, agora escondem suas faces nas sombras; aqueles fervorosos apoiadores, notadamente em toda a grande mídia, fingem alguma surpresa, mas não conseguem ocultar a aflição de terem sido descobertos. 

Voltamos, então, à pergunta do brasileiro frente a esse quadro inteiro: por que isso me interessa?

Fácil perceber que a perseguição premeditada e a prisão ilegal, por mais de 500 (quinhentos) dias, de um ex-presidente que, não coincidentemente, obteve o maior índice de aprovação popular e continuava sendo a principal referência da classe trabalhadora brasileira, com a integral suspensão de seus direitos mais básicos, demonstra que todos podemos estar sujeitos ao mais vil arbítrio vindo das forças e instituições que, contraditoriamente, deveriam nos proteger.

Não só criminosos de carreira enfrentam os males da justiça penal. Qualquer um de nós pode se envolver em uma situação aleatória que se torna caso de polícia, desde um acidente de carro a simplesmente estar no lugar errado, na hora errada. A injustiça praticada pelo Estado contra um cidadão atinge a todos porque destrói a nossa confiança de que as regras que nos protegem não serão jogadas no lixo para nos atacar diretamente. 

Aliás, de um ponto de vista bastante objetivo, a Operação Lava-Jato sempre propagandeou que sua meta era o de inverter a desigualdade gritante de um judiciário que sempre atuou de forma sistemática contra os desfavorecidos – pobres, pretos, índios, trabalhadores, etc. –, infringindo direitos no intuito de garantir os privilégios do andar de cima, mas acabou se tornando uma verdadeira ferramenta de perseguição política para impor um projeto próprio de poder.

Seu legado, então, é uma pilha de escombros. Em nome da segurança e da punição, aceitamos a suspensão de nossos direitos e liberdades, a entrega de nossos tesouros e a coroação de um projeto de morte. São milhões de desempregados e milhares de mortos, famílias que sequer podem chorar sem serem zombadas pelo Presidente que só foi eleito pela atuação pessoal do verdadeiro chefe da Lava-Jato, Sério Moro.

Há um mundo que interessa a poucos: com mais prisões e menos escolas, imerso na paranoia da insegurança, em produção constante de inimigos; que ergue muros, cada vez mais altos e resistentes, para nos proteger do desconhecido; onde muitos perdem para que alguns ganhem; que fabrica armas e deflagra guerras sob o discurso da paz. Mia Couto nos revela: “há quem tenha medo que o medo acabe”. Esse é o mundo adoecido em que vivemos, mas não pode ser o mundo que queremos, nem precisa ser o nosso mundo de amanhã.

Lembremos, pois, das palavras incisivas da ex-presidenta Dilma, ainda em 2016, logo após sofrer um golpe parlamentar: “A história será implacável com os que, hoje, se julgam vencedores”. E está sendo.


*Advogado e membro do coletivo Reajuste
 

Edição: Henrique Medeiros