Paraíba

ARTIGO

O Nordeste é, antes de tudo, uma invenção nordestina para os nordestinos

"Mas, como é típico em debates quando apenas não-nordestinos falam de Nordeste, boas intenções não livram armadilhas"

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Nino Paraíba - Esporte Clube Bahia

Entenda o caso: Nascido na cidade de Rio Tinto, litoral Norte paraibano, o jogador Severino de Ramos Clementino da Silva, o Nino Paraíba, tem sido um dos destaques do time do Bahia. Em 22 de fevereiro último, os comentaristas do Sportv, Pedrinho e Paulo César Vasconcellos, afirmaram que o lateral direito do Bahia é um dos melhores jogadores da posição no país, porém não tem o devido reconhecimento por puro preconceito, já que carrega 'Paraíba' no nome.

É uma mesa redonda dessas que debatem futebol na TV. Essa, em específico, composta só por pessoas do Sul e do Sudeste do país. O papo principal, contudo, gira em torno, quase que exclusivamente, de dois cariocas. A saber, o ex-jogador e atual comentarista Pedrinho (ex-Vasco da Gama) e o jornalista esportivo Paulo César Vasconcellos. Eles falam para as câmeras do SporTV, comentam sobre Nino Paraíba, o lateral-direito do Bahia que, segundo eles, sofre preconceito porque carrega no nome o seu Estado de origem.

O debate, registrado ao vivo na semana passada, gira em torno de preconceitos. Para eles, não restam dúvidas: o Brasil é um país preconceituoso. E isso não pode ser escondido, mas combatido. 

Até aí, estamos de acordo. Mas o papo não para aí.

“Se ele tivesse outro nome, as pessoas falariam diferente sobre o futebol dele”, sentencia Pedrinho. “Apoiado”, complementa, de imediato, PC Vasconcellos. Enfim, o papo segue, cada qual expondo melhor os seus pontos de vista.

Antes de tudo, é preciso que seja dito. Eu, enquanto paraibano, acredito de verdade nas boas intenções de ambos. Mas, como é típico em debates quando apenas não-nordestinos falam de Nordeste, boas intenções não livram as pessoas de serem vítimas das próprias armadilhas.

Isso porque, em dado momento, Pedrinho infere que, em que pese Nino Paraíba ser um dos melhores laterais-direitos em atividade hoje no país, o atleta não teve oportunidades em grandes clubes do país.

Atente-se ao detalhe: o Bahia tem 90 anos de história, é bicampeão brasileiro, três vezes campeão da Copa do Nordeste, 49 vezes campeão estadual. Já chegou às quartas de final da Libertadores da América. Tem uma torcida apaixonada e apaixonante. É o único clube do país, atualmente, que tem uma Coordenadoria de Ações Afirmativas. 

Mas, conforme Pedrinho sugere - com a concordância de PC Vasconcellos - ainda falta um “clube grande” na carreira de Nino Paraíba.

Afinal, o que é um “clube grande”? Que conceito é esse que, apesar de toda a subjetividade que o cerca, pode ser definido de forma tão inconteste? Pergunto mais: que outros critérios, que o Bahia não tem, são imperativos para classificar um clube como sendo “grande”? 

Será que, para fazer sucesso, um jogador tem que necessariamente jogar no exterior? Ou, ao menos, naquilo que é chamado (pejorativamente por nós nordestinos) de “futebol do eixo”? Questionando de forma mais direta: o que mais um clube nordestino precisa fazer para ganhar esse status de “grande” por parte dos comentaristas do Sul e do Sudeste?


Ademais, penso, precisamos falar um pouco mais sobre o conceito de identidade.

Ora, eu acredito de forma muito cristalina em conceitos antropológicos que classificam as identidades como sendo contextuais, atributivas, pensadas nas fronteiras, no limiar entre um “nós” e um “outro”. Eu sei o que eu sou no exato momento em que, em dada situação, eu tenho a consciência de tudo o mais que eu não sou. A relação é fundamental na definição das identidades, portanto. 

Elas, pois, são invenções. No sentido de que não são inatas, absolutas, “naturais”. Ao contrário, fazem parte de construções sociais, de um recorrente jogo de alianças e de alteridades, de estratégias de autoafirmação frente ao outro (para quem quiser se aprofundar mais, sugiro as leituras de nomes como Frederik Barth, Benedict Anderson, Roy Wagner, dentre outros).

Se a gente pensar bem, a identidade nordestina não é acionada num grupo em que apenas nordestinos estão presentes. Neste contexto, as identidades estaduais são prioridades. Da mesma forma que, numa perspectiva ainda mais micro, a identidade paraibana não é acionada num diálogo entre moradores de João Pessoa e de Campina Grande, por exemplo. Não, o embate é sempre com o “outro”. A identidade é posta justo na diferença.

As identidades paraibanas e nordestinas, repito, são invenções de paraibanos e de nordestinos, respectivamente, pensadas e acionadas de forma coletiva como autoafirmação e autoproteção frente outros. É uma invenção, logo, que só deve ser modificada, transformada, redimensionada ou reposicionada pelos próprios agentes que as inventaram.

Se Pedrinho e Paulo César Vasconcellos querem debater o preconceito contra o Nordeste e contra a Paraíba, contra nordestinos e paraibanos, são muitíssimo bem-vindos. Mas devem tratar o tema sob a perspectiva dos algozes. Do que os não-nordestinos precisam modificar em suas práticas para que esse tipo de violência não continue se perpetuando.

Porque, afinal, escutar dois cariocas discutindo o que um jogador nordestino precisa modificar em sua própria identidade para ser mais bem aceito pelo resto do país, mesmo que essa não seja a intenção, é violento demais. É uma inversão de valores difícil demais de compreender.


Phelipe Caldas / Foto: Internet

*Phelipe Caldas é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos; Jornalista, escritor e cronista, com quatro livros já publicados; integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Edição: Cida Alves