Paraíba

ARTIGO | CONJUNTURA

A falta que faz Sun Tzu à esquerda pessoense

'Mais franco colocar como central a luta interna, a construção partidária e a disputa pela hegemonia da esquerda na PB'

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Card: Reprodução

Por Henrique Medeiros*

“Conhece teu inimigo e conhece-te a ti mesmo; se tiveres cem combates a travar, cem vezes serás vitorioso.
Se ignoras teu inimigo e conheces a ti mesmo, tuas chances de perder e de ganhar serão idênticas.
Se ignoras ao mesmo tempo teu inimigo e a ti mesmo, só contarás teus combates por tuas derrotas.” - (Sun Tzu em A Arte da Guerra)

Já se descreveu aqui a gravidade do desenvolvimento da conjuntura nos últimos meses. O bolsonarismo, mesmo depois do aprofundamento da crise com a pandemia da Covid-19, longe de se enfraquecer, avançou em sua guerra de posição dentro do estado brasileiro e fortaleceu-se na sociedade com a conquista de uma base nas camadas mais pauperizadas das classes trabalhadoras urbanas.

Artigo | O Bolsonarismo e as eleições em João Pessoa (PB)

Apontou-se o caráter nacional das eleições municipais desse ano e como ela se insere na tática bolsonarista de minar os espaços de resistência democrática, especialmente no Nordeste. E apenas esboçou-se o erro histórico da esquerda pessoense, dividida que chega ao pleito de novembro. Caberia agora aprofundar este último aspecto. 

Naquela ocasião, ele buscou aprofundar as reflexões sobre a dialética marxista de modo a contribuir para a formulação da estratégia e da tática na guerra revolucionária.

A primeira pesquisa Ibope, publicada em 05 de outubro, confirma a tendência de evolução da conjuntura anteriormente descrita, com candidaturas que reivindicam sua filiação ao bolsonarismo nas primeiras posições e apontando um preocupante cenário onde, em havendo segundo turno, a disputa pode se dar entre elas. É verdade que o histórico do Ibope compromete sua credibilidade e que a margem de erro de 4 pontos percentuais para mais ou para menos envergonharia qualquer instituto de pesquisa digno desse nome. Mas a presença de Cícero Lucena (PP) com 18%, Nilvan Ferreira (MDB) com 15% e Wallber Virgolino (Patriotas) com 10% entre os quatro melhor posicionados não pode ser subestimada. 

Cícero Lucena busca reconstruir uma memória asséptica de sua passagem pela prefeitura de João Pessoa. Conformando uma ampla aliança que lhe garante bom tempo de TV, conquistou o apoio do governador João Azevedo e terá a máquina do estado a seu favor. Integrando o Partido Progressista, o qual ocupa hoje a posição de liderança do governo Bolsonaro na Câmara Federal, o ex-prefeito busca capitanear a recente aproximação do bolsonarismo ao “Centrão”, conquistando votos em sua base. Travará essa disputa com um suposto outsider, o radialista Nilvan Ferreira, recentemente filiado ao MDB de José Maranhão, o que lhe permite conjugar uma densa máquina eleitoral a um discurso de combate aos “corruptos” (leia-se, a esquerda) e ao “poder da caneta” (ou seja, as máquinas do governo do estado e da prefeitura), surfando na popularidade que adquiriu com seu programa policial na televisão. Correndo por fora, está Wallber Virgolino, delegado da Polícia Civil que se define como “conservador puro sangue”, propagandeando sua vinculação ao bolsonarismo. 

Não se pode ignorar que as candidaturas de direita se beneficiaram amplamente do lawfare levado a cabo pela Operação Calvário (inspirada nos métodos da Lava-jato) contra lideranças do PSB, em especial o ex-prefeito e ex-governador Ricardo Coutinho (aliás, surpreende seu percentual de intenção de votos em 12% após mais de um ano de linchamento midiático regular e sistemático). Mesmo após o rompimento entre Jair Bolsonaro e Sérgio Moro e a desidratação dos protagonistas da “República de Curitiba”, o lavajatismo como concepção, método e instrumento político de perseguição às oposições do campo progressista deverá seguir adiante, ainda mais com o aparelhamento da Política Federal. Basta recordar a operação que levou à prisão o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel  (PSC), ex-aliado das hostes neofascistas e atual desafeto do presidente da República. A conformação de um estado policialesco, cujo regime mais acabado e objetivo estratégico do bolsonarismo é a ditadura fascista, caminha a passos largos.

Porém, se há relativo consenso nessa leitura da conjuntura e dos seus riscos, os desdobramentos práticos de como enfrentá-la estão longe de se materializarem de forma consequente entre as organizações de esquerda. A urgência da situação exige que a unidade das forças populares não seja mero recurso retórico: 
“ É verdade que precisamos deter o neofascismo, mas a democracia interna...”
“É preciso combater a extrema direita, mas nosso espaço dentro da esquerda...”
“É importante derrotar o bolsonarismo, mas a forma da aliança, os prazos, etc...”


Poder-se-ia fazer uma lista incomensurável de exemplos como os de cima. Porém, o fato é que, embora cada argumento possa ter sua legitimidade (ainda que se possa problematizar cada um deles com um contra-argumento), nenhum deles deveria se colocar acima do objetivo mais imediato e decisivo: barrar o neofascismo. No entanto, toda vez que se afirma tal objetivo e segue-se um “mas”, ou quando o debate é tragado para esse círculo argumentativo movediço, o que ocorre na prática é a negação do próprio objetivo principal. Assim, o combate ao bolsonarismo vira palavras ao vento. Seria mais franco colocar como central a luta interna, a construção partidária e a disputa pela hegemonia da esquerda na Paraíba. 

Acontece que a legítima construção de cada organização política e de sua hegemonia no seio da esquerda não se dá de forma antagônica à construção da unidade necessária à luta antifascista. Muito pelo contrário, é a forma consequente de construir e conduzir tal unidade que vai legitimar tal ou qual organização aos olhos do povo. Basta trazer à memória a experiência do Partido Comunista Italiano ao final da II Guerra Mundial. 

Não se pode ignorar que as candidaturas de direita se beneficiaram amplamente do lawfare levado a cabo pela Operação Calvário (inspirada nos métodos da Lava-jato) contra lideranças do PSB, em especial o ex-prefeito e ex-governador Ricardo Coutinho

Podem ser úteis, também, as palavras de Mao Tsé-Tung e a experiência da Revolução Chinesa: No processo de desenvolvimento de um fenômeno complexo existe toda uma série de contradições; uma delas é necessariamente a contradição principal, cuja existência e desenvolvimento determinam a existência e o desenvolvimento das demais contradições ou agem sobre elas.

O líder chinês escreveu essas linhas em agosto de 1937, depois da invasão japonesa ao país em meio à guerra civil entre os nacionalistas do Kuomitang e o exército vermelho do Partido Comunista Chinês. Naquela ocasião, ele buscou aprofundar as reflexões sobre a dialética marxista de modo a contribuir para a formulação da estratégia e da tática na guerra revolucionária. Era preciso convencer o conjunto do partido de que, no complexo e contraditório processo político, é preciso identificar sempre a contradição principal e, por conseguinte, o inimigo principal (no caso, os japoneses).

E que, para derrotá-los era preciso uma trégua e uma aliança com os nacionalistas com quem estavam em guerra até então, os mesmos nacionalistas que, sob o comando de Chiang Kai-sheck, massacraram milhares de comunistas em Xangai 10 anos antes, dando início à guerra civil. Sem renunciar um só momento a sua autonomia política, o PCCh emergiu da vitória sobre os japoneses como grande liderança política do povo chinês e, numa nova correlação de forças (um novo arranjo das contradições do complexo fenômeno que é o processo político), triunfou sobre os nacionalistas em outubro de 1949.

Sem tal clareza, corre-se o risco de diluir as energias da luta em múltiplos focos, não reconhecendo nem explorando as contradições do campo inimigo, confundindo adversários com inimigos e se digladiando contra aliados.  Nisso reside as sábias palavras do general chinês Sun Tzu citadas na epígrafe deste artigo. Há cerca de 2 mil anos ele já apontava a necessidade de conhecer quem são e qual é o tamanho das próprias forças e as do inimigo como condição para a vitória.

Esse diagnóstico nem sempre é fácil, entretanto, pensando no contexto pessoense, algumas perguntas poderiam ajudar: Se o bolsonarismo e o lavajatismo da Operação Calvário não são os inimigos principais, quem é?
Quem hoje se beneficia da luta fratricida no seio da esquerda? Por que os mesmos meios de comunicação que insuflaram tanto a Operação Lava Jato quanto a Calvário contra Lula e Ricardo Coutinho, respectivamente, hoje manifestam preocupação com a democracia interna dos partidos de esquerda? Por que o vigor e a centralidade da artilharia da direita mira especificamente Ricardo Coutinho?

Diante da incapacidade da esquerda em se apresentar na cena política nacional, a direita e a extrema-direita saíram divididas nestas eleições em João Pessoa, o que, felizmente, amplia as chances de uma candidatura progressista chegar ao segundo turno. Sabe-se que na militância politica, 1 + 1 é muito mais do que 2. Mas, infelizmente, a divisão no seio da esquerda já se cristalizou e, independentemente do desfecho judicial, se configura uma fragmentação de forças nesses próximos 35 dias. 

Resta agora batalhar para que se tenha um segundo turno com uma alternativa progressista e, quem sabe, recolhendo os cacos, materializar a tão propalada e tão pouco seriamente conduzida unidade das forças de esquerda. E torcer para que a assertiva final de Sun Tzu, “se ignoras ao mesmo tempo teu inimigo e a ti mesmo, só contarás teus combates por tuas derrotas”, desta vez, nos poupe.

*Henrique Medeiros é Médico e Doutorando em Saúde Pública

Edição: Cida Alves