Paraíba

Coluna

Pequeno manual anti-direita

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Protesto em Cuiabá tem pedido de ditadura e voto impresso - Foto: Otmar de Oliveira
Algumas mentiras, preconceitos e caricaturas a respeito do pensamento de esquerda no Brasil

Recebi outro dia um daqueles “memes” de whatsapp bastante peculiar. A figura elencava as supostas diferenças entre os valores da esquerda e da direita política no Brasil. Numa coluna, com fundo vermelho, todas as causas e bandeiras “nefastas” da esquerda: impunidade, corrupção, terrorismo (?), drogas, e por aí vai. Do outro lado, os alegados atributos morais da direita: família, liberdade, moralidade... Uma das principais estratégias da extrema-direita é a tentativa descarada de distorção da realidade, sobretudo com uso massivo das redes sociais. Em tempos de pós-verdade, o restabelecimento da realidade acaba sendo, por incrível que pareça, um ato de resistência. Nesse contexto, propomo-nos aqui a desconstruir algumas das falsidades e preconcepções que têm sido disseminadas nos últimos anos a respeito do pensamento progressista e de esquerda no Brasil.

A questão das drogas. Não, a esquerda não é favor de que todo mundo saia por aí fumando um baseado e cheirando cocaína. O que a esquerda argumenta é que o combate às drogas nos moldes do que propõe a extrema-direita (a tal da Guerra às Drogas) é totalmente ineficaz e, além de não resolver o problema, gera violência e serve de pretexto para o encarceramento em massa da população negra, sobretudo nas periferias. Há maneiras muito mais inteligentes de acabar com o tráfico, cuidar da saúde das pessoas e combater a violência urbana ao mesmo tempo. Associar a esquerda ao uso de drogas é, além de desonesto, falso.

Ideologia de gênero. A questão da ideologia de gênero é mais uma teoria da conspiração do que algo real. É o que se derivou da fantasia do tal “kit gay”, por exemplo, que nunca existiu. O que a esquerda fala sobre gênero é que as mulheres devem ter os mesmos direitos de fato, e não só no papel, do que os homens. Se você concorda que uma mulher que faz o mesmo trabalho que um homem ganhe o mesmo salário que ele, então estamos juntos. (1) 

Invasões. A esquerda não defende invasões, de modo que pode ficar tranquilo que nenhum bando de barbudos vai entrar na sua casa de madrugada fazendo barulho e mandando todo mundo sair aos tiros. O que a esquerda defende é que a propriedade deve cumprir a sua função social, o que está previsto na Constituição de 88 (artigo 5º, XXIII e artigo 170). No caso do campo, por exemplo, somente propriedades comprovadamente ociosas, improdutivas e na maior parte das vezes griladas (roubadas, portanto) são ocupadas. Trata-se, assim, de devolver à Nação o que lhe foi roubado pelos grileiros. Deve-se recordar, aqui, a origem do termo grileiro: os vagabundos (para usar um termo mais ao gosto da direita) saqueadores do país falsificam documentos de propriedade, colocando-os em gavetas fechadas com grilos dentro. A ação dos grilos faz com que o papel pareça envelhecido, dando a impressão de que são autênticos. Uma rapina cínica e criminosa, portanto.

Família. Não, a esquerda não é contra a instituição familiar e um eventual governo de esquerda não vai acabar com o seu casamento e nem sequestrar suas crianças. Ocorre que, para o pensamento progressista, a definição de família é mais ampla do que para as mentes estreitas do conservadorismo. A família não é somente a patriarcal, heterossexual e constituída por filhos biológicos. Ela pode ser constituída por dois homens (ou duas mulheres) e seus filhos, por exemplo. Nesse sentido, o pensamento de esquerda é mais a favor da família do que o conservadorismo, na medida em que reconhece outras formas de formação familiar e de união afetiva, sem prejuízo algum para família tradicional.

Fim da lava-jato. A esquerda não é necessariamente a favor do fim da lava-jato e de outras operações anti-corrupção. Até Lula já declarou que é a favor da lava-jato, desde que se corrigisse suas falhas. Estas são, basicamente, duas: a) a sua instrumentalização para fins políticos, por meio da seletividade de seus alvos e arbitrariedades na condução de seus processos e b) o fato de ela estar acabando com algumas empresas estratégicas para o Brasil. Deve-se investigar e punir, sim, pessoas corruptas, e não acabar com o patrimônio nacional, tanto público quanto privado. Não se pode jogar o bebê junto com água suja do banho.

Cotas raciais. Sim, a esquerda é favor das cotas, porque elas são um instrumento temporário de correção de injustiças históricas contra a população negra. Há dados estatísticos que apontam que estudante cotista é tão ou mais competente do que qualquer outro. Imagine-se quantos Einsteins ou Machado de Assis negros nunca vão desempenhar o seu potencial por conta do racismo estrutural que existe no Brasil? As cotas servem para amenizar temporariamente esse problema.

Aborto: é uma simplificação dizer que a esquerda é a favor do aborto. O que ocorre é que as esquerdas tendem a encarar a questão do aborto como de saúde pública, e não como caso de polícia. Ao invés de tratar a moça que quer abortar como criminosa e assassina, examinam-se as razões de ela estar querendo fazer aquele aborto. O julgamento que se faz não é do ato de abortar propriamente dito, mas sobre como essa questão deve ser encarada pela sociedade. Dessa maneira, é perfeitamente possível que uma pessoa seja contra o aborto (o ato em si) e a favor de sua legalização, por se tratar de questão de saúde pública. Há estatísticas que mostram que, ao contrário do que possa parecer, nos países onde o aborto é legalizado o número de abortos é MENOR do que onde é proibido, com a diferença de a mulher não precisa ir pra clínicas clandestinas com péssimas condições de higiene. (2)

Corrupção. É óbvio que a esquerda não é a favor da corrupção. Foram os governos de esquerda (sobretudo os governos Lula) que criaram e/ou fortaleceram a legislação (lei da ficha limpa, lei de acesso à informação, entre outras) e as instituições de combate à corrupção do país (alguns deles sendo desmantelados pelo atual governo). Fortaleceram-se Ministerio Público, a Justiça, Polícia Federal, CGU, etc. Houve corrupção em governos da esquerda? Houve, assim como houve em qualquer outro governo na história do país. A esquerda não inventou a corrupção e tratou de combatê-la com muito mais compromisso e eficiência do que a direita. 

Impunidade. Muitas vezes as esquerdas são acusadas de defender bandidos, de passar a mão na cabeça de “vagabundos”. Não, a esquerda não defende criminosos. A exemplo do que ocorre com a questão das drogas, trata-se tão somente de se adotar postura diferente a respeito de como atacar o problema da violência urbana. Esta temática já foi tratada aqui nesta coluna:  https://www.brasildefatopb.com.br/2020/05/13/dialogo-aberto

Divisão de classes. Essa é a mais inusitada das assunções sobre o pensamento de esquerda. Acusam o pensamento progressista de insistir numa “divisão maléfica” da sociedade. Ora, o que a esquerda mais quer é precisamente superar a divisão de classes. Para fazê-lo, é necessário primeiramente que se identifiquem as diferentes classes sociais e que se estude o mecanismo segundo o qual as injustiças sociais se perpetuam. Quem quer manter tudo como está, com a profunda desigualdade social e a permanência da exploração do homem pelo homem (com o perdão do sexismo da expressão), é a direita. Fazem-no inclusive por meio de ideologias travestidas de ciência, como é o neoliberalismo. Negar a existência da exploração de classe só serve aos interesses das classes exploradoras. 

Aí está. Essa é uma relação (não exaustiva) de algumas mentiras, preconceitos e caricaturas a respeito do pensamento de esquerda no Brasil. Essas distorções da realidade vêm sendo sistematicamente criadas e alimentadas pela extrema-direita no Brasil, sobretudo por meio das redes sociais. Seu principal objetivo é o de tocar os corações e mentes das pessoas para incutir nelas um dos sentimentos mais primitivos do ser-humano: o medo. Eles sabem que medo ergue muros. Sabem que uma população com medo é presa fácil para discursos protofascistas, divisores, agressivos e excludentes. Por isso, desconstruir os delírios de pós-verdade da extrema-direita e, consequentemente, trazer de volta a realidade para o mundo são tarefas essenciais de quem está do lado certo da História.

Referências:
https://www.brasildefato.com.br/2019/02/06/artigo-or-afinal-ideologia-de-genero-existe
https://www.youtube.com/watch?v=CfvkWHHC9jQ

*Mozart Grisi Correia Pontes é diplomata.

Edição: Cida Alves