Paraíba

ENTREVISTA

Conversamos com jurista paraibana sobre os 14 anos da Lei Maria da Penha

Tatyane Guimarães, professora de Direito, avalia os desafios e importância da lei na atualidade, em especial na Paraíba

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Foto

Nesta quinta-feira (7), a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) completa 14 anos de existência. A medida foi criada para ampliar o enfrentamento à violência contra às mulheres no Brasil.

Apesar da sua importância, o cenário permanece problemático. Ainda mais agora, pelo caráter atípico da pandemia, que obrigou as famílias ao isolamento dentro de casa e causou aumento da violência doméstica durante a quarentena. 

O Brasil é o 5º país do mundo que mais mata mulheres, segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS: 42% dessas violências ocorreram no ambiente doméstico por companheiros ou ex-companheiros.

A ONU mulheres vem orientando para que os países incluam o combate à violência de gênero nas ações contra a pandemia. No entanto, ativistas pelos Direitos Humanos das mulheres já identificavam que há uma epidemia anterior e perene no Brasil, que é a violência doméstica.
 


"Eu acho que a Paraíba adotou um posicionamento muito positivo em relação à pandemia" - Tatyane Guimarães / Foto: Reprodução

Conversamos com Tatyane Guimarães, professora de Direito da UFPB, Coordenadora do Grupo Marias de extensão e pesquisa em gênero, educação popular e acesso à justiça (CRDH/UFPB) e Coordenadora do Comitê de política de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres na UFPB - Comu. Falamos sobre a vigência da Lei Maria da Penha, desafios e importância. Confira.

Brasil de Fato: Do mundo inteiro chegam notícias de aumento da violência doméstica durante a pandemia - não apenas a mulheres, mas a crianças e idosos também. Porém, vamos tratar especificamente das mulheres neste momento. O que podemos verificar de sintomas, procedimentos, dados, atualizações desse problema aqui na Paraíba?

Tatyane Guimarães - Sobre a Paraíba, recentemente a polícia lançou dois boletins, um sobre ocorrências e um sobre medidas. O que a gente consegue observar é uma pequena queda - eu acho que nem dá para falar numa queda muito brusca - mas com uma variação para um número menor do número de ocorrências e do número de medidas protetivas. De março até junho, no caso das medidas protetivas, a gente teve um pequeno aumento. 

Eu acho que a Paraíba adotou um posicionamento que a gente pode avaliar como muito positivo em relação à pandemia. Por quê? Tem algo que eu sempre digo e reforço relacionado à Lei Maria da Penha: toda política voltada para o combate à violência contra a mulher tem que partir das peculiaridades do fenômeno da violência doméstica. 

E o Estado tem uma grande dificuldade de pensar a partir dessas peculiaridades, porque o Estado é extremamente androcêntrico, patriarcal e racista. Então, ele olha a partir do lugar do homem branco, hétero, de classe média e rico; ele não olha a partir das peculiaridades das mulheres e muito menos a partir da particularidade que envolve as relações de poder desiguais entre homens e mulheres na sociedade. 

As políticas, para mim, sempre tiveram muita deficiência porque não se atentavam para a necessidade de um olhar específico. Nessa pandemia, as estratégias adotadas pela Paraíba - e aí eu estou falando Paraíba me referindo à articulação que foi feita na rede de atendimento,  que é a Reamcav (Rede de Atenção às Mulheres em situação de violência doméstica e sexual), eu acho que deram um pulo qualitativo em como as políticas olham para as mulheres em situação de violência.

Porque, apesar dos números parecerem cair, o fenômeno parecer diminuir a partir de registros, essa não é uma análise segura. Porque a gente sabe que exatamente uma das peculiaridades do fenômeno da violência doméstica é a dificuldade de denúncia, que envolve tanto os medos quanto as dependências que a mulher tem em relação ao agressor, como também o descrédito que as mulheres têm em relação ao estado. 

O Estado tem uma grande dificuldade de pensar a partir dessas peculiaridades, porque o Estado é extremamente androcêntrico, patriarcal e racista

Então, o processo de denúncia é muito difícil, é um passo muito importante para as mulheres e elas não conseguem dar esse passo sozinhas. E, quando acontece, fazem com muita dificuldade, com muito medo, medo que elas já têm do agressor, que é triplicado, é levado à décima potência por causa da descrença no estado. 

Hoje temos fontes mais diversas que não são só os registros na polícia, os BO’s e os pedidos de medida protetiva. E a gente sabe, a partir dessas outras fontes, que a violência aumentou na pandemia. E, por uma conclusão lógica, se a casa é o lugar mais inseguro para as mulheres, crianças e idosos, na pandemia, o confinamento dessas pessoas com o agressor vai piorar, porque é o processo de convivência que permite a violência e as práticas violentas mais intensas. 

Então, é nítido que a violência aumentou e a gente deve ter muitas mulheres presas dentro de casa com os seus agressores; mesmo com reabertura, as mulheres que não podem trabalhar, as mulheres que perderam seus empregos estão dentro de casa com essas crianças 24h e sujeitas a essas agressões. E isso fez com que, obviamente, ainda mais no começo do isolamento social, as mulheres estivessem presas dentro de casa e com dificuldade de sair.

As mulheres, às vezes, aproveitavam a escola e, com o suporte de outras pessoas, passavam rapidamente ali no Centro de Referência da Mulher e ia a uma delegacia.
Então, aí é que a Paraíba, pelo menos a Reamcav, se destacou, ao facilitar o acesso aos equipamentos para além do 190, que elas podem ligar para a polícia; elas conseguiram a possibilidade de solicitar medidas protetivas e renovação de medidas protetivas por telefone, pelo WhatsApp, a possibilidade de fazer boletim de ocorrência online e conseguir as medidas protetivas sem sair de casa.

Um outro elemento que foi muito importante foi a Casa Provisória, porque a Casa Abrigo só recebe mulheres que estão ameaçadas de morte e as mulheres precisam de um período, às vezes, de saída de casa para organizar a vida; e elas não saiam de casa por não ter para onde ir e ficavam tentando organizar a própria vida, tomar a decisão da saída, convivendo com o agressor.

Brasil de Fato: São 14 anos da lei Maria da Penha. Temos muito a comemorar ou ainda temos muito mais a fazer?

T.G.: Em relação à Maria da Penha, a gente tem muito o que comemorar e a gente tem muito o que fazer. Comemorar porque, a duras penas, a partir da reivindicação das mulheres, o Movimento de Mulheres e Feministas no Brasil conseguiu reconhecimento da violência doméstica e familiar como uma violação de Direitos Humanos na lei; conseguiu, na lei, a determinação de que o poder público cuide desse problema. Mas da aprovação da lei até hoje, o movimento de mulheres e feministas está na luta fazendo com que o Estado aplique a lei da forma correta, e a forma correta é a perspectiva feminista, na minha opinião.

Para mim a Lei Maria da Penha rompe com um direito androcêntrico e patriarcal em alguma medida, rompe com a ideia de que o direito é neutro, colocando uma perspectiva feminista das mulheres na lei, e é por essa razão que o Judiciário está sempre ressignificando, de forma patriarcal, os procedimentos da lei Maria da Penha. 

É nítido que a violência aumentou e a gente deve ter muitas mulheres presas dentro de casa com os seus agressores

Então, a gente tem muito o que comemorar porque a militância feminista no direito e junto ao movimento feminista foi quem possibilitou a aprovação da Lei Maria da Penha; essas mulheres têm conseguido, com o uso da legislação e a visibilidade que ela teve, forçar o Estado a atuar cada vez mais de forma positiva para as mulheres, ajudando-as a saírem do ciclo, ajudando-as a reconstruírem suas vidas. Mas a gente ainda tem muito o que fazer.

A gente precisa dialogar com as mulheres negras, com as mulheres indígenas, ciganas, lésbicas, bissexuais, a gente precisa ampliar o debate em torno da efetivação da lei Maria da Penha

A gente tem um foco do estado apenas no eixo repressor da lei, no eixo de proteção da lei, que envolve o sistema penal. E muito pouco investimento do estado como um todo, o estado no Brasil, nos eixos de assistência e prevenção, e eu acho que tem que haver um equilíbrio na aplicação da lei Maria da Penha. 

E, obviamente, a gente tem um problema seríssimo com o judiciário, com o sistema de justiça brasileiro. Não é só o judiciário, a gente tem a defensoria, Ministério Público, a gente tem um sistema de justiça, na maioria das vezes, interpretando de forma patriarcal a lei e prejudicando as mulheres.

Brasil de Fato: A lei, como toda construção humana, é inacabada, então, o que as mulheres precisam para fortalecer e ampliar essa ferramenta?

T.G.: É tão difícil, eu acho que eu não vou responder como uma mulher do direito falando sobre o que as mulheres precisam, porque é exatamente esse o grande problema do direito e do estado ou dos lugares que algumas mulheres ocupam, como eu dentro da universidade, dizer o que as mulheres precisam.

Mas é o que nós mulheres estamos fazendo nesse processo. Eu acho que parte um pouco do que você colocou: a legislação não é só uma construção inacabada, ela não serve ao povo, na minha opinião!

O direito não é construído para o povo e pelo povo. O direito, o campo jurídico como um todo, é um espaço construído para a manutenção de privilégios. Para mim é um espaço construído para a perpetuação da dominação, da opressão e da exploração dos povos e das mulheres, por exemplo. Dentro desse grupo de pessoas que são o tempo todo subjugados e oprimidos pelo Poder Judiciário. 

Mas o que a gente vê na história (a Lei Maria da Penha mostra isso) é que, apesar do campo jurídico ser um campo opressor, de exploração, de opressão, que perpetua ideologias e práticas racistas, patriarcais, capitalistas, enfim, que está a serviço de um grupo pequeno e que domina vários capitais na nossa sociedade: político, cultural, enfim... E aí eu estou falando mais no sentido bourdieusiano mesmo, no sentido de que essa galera, esse grupo que está aí no poder, ele precisa do judiciário para se manter no poder, o judiciário faz esse papel muito bem, certo?
 
Mas como é o sistema em que a gente está inserido, e a gente luta contra ele, a estratégia de estar dentro do direito e por dentro do direito tentar modificar essa sua configuração originária tem sido muito positiva. 

A Lei Maria da Penha é um exemplo desses, e isso vem com pessoas dentro do campo jurídico, que estão lidando com a lei o tempo todo, trazendo um direito alternativo, práticas mais libertadoras, pensando o direito não só como reconhecimento, como lei, mas o direito como necessidade social, como é o caso das discussões do direito achado na rua. 

Porque é exatamente esse o grande problema do direito e do estado ou dos lugares que algumas mulheres ocupam, como eu dentro da universidade, dizer o que as mulheres precisam.

Então, para mim, a lei é um dos instrumentos de luta que a gente tem para tentar minimizar o sofrimento das mulheres nessa sociedade patriarcal e racista. Ele é um dos instrumentos para ampliar e fortalecer a ferramenta Lei Maria da Penha, e a gente precisa de mais participação. A gente precisa de um judiciário porque é quem aplica a lei e de um poder executivo que é quem também aplica a lei, executa a lei; a gente precisa de espaços mais participativos nessa efetivação da legislação a partir da demanda das mulheres que vão se modificando no tempo. 

As dinâmicas sociais se modificam. Então, por exemplo, fortalecer a Lei Maria da Penha, na minha opinião, é exatamente dar novos caminhos e estratégias para as mulheres denunciarem num momento que a gente nunca viveu antes, que é a pandemia

Mas isso só pode ser feito de forma efetiva se a gente tiver participação das mulheres, e de todas as mulheres. Não só mulheres brancas que estão no campo do direito, mulheres que estão dentro do estado; a gente precisa dialogar com as mulheres negras, com as mulheres indígenas, ciganas, lésbicas, bissexuais, a gente precisa ampliar o debate em torno da efetivação da lei Maria da Penha, a partir da perspectiva dessas mulheres. Para mim, só nesse processo de participação a gente vai conseguir ampliar e fortalecer a lei como ferramenta.

Edição: Maria Franco