Minas Gerais

ENTREVISTA

“Sem a arte, continuaremos longe da sociedade harmoniosa que sonhamos”, diz Titane

Aos 60 anos, a artista mineira Titane comemora aniversário com transmissões ao vivo até agosto

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
"Está em curso uma grande transformação com o surgimento de novos suportes técnicos, artísticos" - Reprodução

Cantora, intérprete, atriz, escritora... Titane é uma das referências na música, na arte e na cultura de Minas Gerais. Aos 60 anos, completados neste mês, sua trajetória de mais de 40 anos de carreira é composta por álbuns e espetáculos marcados pela religiosidade, pelas potências e dores do povo mineiro.

Para comemorar seu aniversário em meio à pandemia, a cantora preparou o projeto “Titane em Casa”, uma série de ‘aos vivos’ (lives) que acontecem todas as terças, até 11 agosto, com convidados como Chico César, Suzana Salles e Zeca Baleiro. Nesta entrevista, Titane faz um balanço da sua carreira, comenta a situação da cultura em Minas Gerais e a sua conexão com movimentos populares.

Confira:

Brasil de Fato MG – São 60 anos, mais de 40 anos de carreira, vários discos lançados, além de diversos projetos, livros, shows, espetáculos. E hoje você é uma das poucas mulheres que se tornou referência na música mineira. Qual é o balanço da sua trajetória como artista?

Titane – Eu me iniciei no ofício de cantora por volta de 1979, 1980. Pertenço a uma primeira geração que conseguiu consolidar carreira e desenvolver uma linguagem musical própria permanecendo em Minas, sem migrar para o eixo Rio/São Paulo. Isso, de alguma forma, aconteceu em todo o país. Somos a geração da “produção independente” que se impôs na década de 1980. Ou seja, produzimos nossos próprios discos à revelia das grandes gravadoras.

Essa produção foi tão intensa e competente, do ponto de vista musical e técnico, que criou as condições para o surgimento dos pequenos selos que se disseminaram pelo país, inclusive nos grandes centros de mídia. Desde então, as grandes gravadoras deixaram de ser o único caminho para o desenvolvimento e a consolidação de carreiras musicais.

Minas está sempre no olho do furacão quando se trata de cultura

Vi muita coisa acontecer, participei de processos longos de criação de públicos e desenvolvimento de recursos técnicos, por exemplo. Havia poucos e inacessíveis teatros. Cantávamos muito na rua. Comecei gravando em analógico, com bitola de duas polegadas e edição feita no corte à gilete. Hoje tenho a certeza de que as transformações são inevitáveis, mas só acontecem com o protagonismo e a determinação de muitas gerações.

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O seu trabalho é marcado pela valorização da cultura popular, da música mineira, do Congado, da Folia de Reis. E isso aparece com muita força nas suas músicas e apresentações. Como se dá a sua aproximação com as várias expressões da cultura popular brasileira?

Sou uma projeção da minha cultura. Fui criada numa cidade que pulsava dentro do carnaval, da semana santa, dos Reinados do Rosário. Nos meus primeiros anos de vida, quando minha sensibilidade foi formada, eu via e ouvia a músicas sendo feitas na minha frente pelas pessoas à minha volta. Essa referência foi muito mais forte na formação da minha sensibilidade do que os shows, por exemplo, que só fui conhecer e assistir no final da adolescência.

A arte é um território da liberdade individual, por excelência. Mas, paradoxalmente, um artista que vai fundo na sua intimidade, acaba por encontrar sua cultura de origem. E, assim, está pronto para entender a profundidade de outras culturas à sua volta, conversar e aprender com elas.

E você também tem uma luta para a valorização dos artistas, inclusive você realizou diversas parcerias com cantores e compositores mineiros importantíssimos, como Rubinho do Vale, Paulinho Pedra Azul, Pereira da Viola, Maurício Tizumba, Sérgio Pererê entre tantos outros. Qual o cenário atual da cultura em Minas Gerais?

Existe a ilusão de que arte é uma profissão de quem trabalha pouco. Nosso ofício exige muito, tanto quanto qualquer outro. E nossa produção atravessa a realidade objetiva e a subjetividade das pessoas. O cenário artístico em Minas é cada vez mais exuberante. Existem ressalvas, limitações, injustiças, mas quando olho para 40 anos atrás, é inegável o desenvolvimento em todos os sentidos.

Podem demonizar o quanto quiserem, a censura afeta nossa produção, mas não nos paralisa

Quanto à cultura propriamente, quando comecei a atuar, era confundida com o fazer artístico. Hoje, é entendida em toda sua complexidade e dimensão artística, cultural, econômica. Isto se reflete nas políticas públicas, no mercado de trabalho. Minas foi um dos primeiros estados a fazer uso das leis de incentivo à cultura, tem grande produção e está sempre no olho do furacão quando se trata das discussões, experiências, polêmicas e conquistas relacionadas ao setor.

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Além da luta pela cultura, você sempre esteve junto aos movimentos populares, como o MST, organizações feministas, de juventude. Qual o papel da arte na transformação social? E como você tem visto o processo mais recente de “demonização” da cultura e dos ataques aos artistas?

Podem demonizar o quanto quiserem. Isso não para a produção do artista. Dificulta nosso dia a dia, nossa sobrevivência. Mas nossa natureza é a da reflexão, da explicitação do mundo real a nossa volta, seja ele qual for. A censura moral, econômica, política, afeta nossa produção, as formas e os conteúdos que irão compor nossa obra, mas não nos paralisam.

E, quando se trata de artista brasileiro, vivemos na luta contra o monopólio dos meios de produção artística, dos meios de comunicação, vivemos desde sempre na adversidade. Inclusive, do ponto de vista das forças de esquerda que, historicamente, de maneira equivocada e redutora, entenderam a arte apenas como território de propaganda de bandeiras políticas. Isto está mudando sensivelmente.

Sem a dimensão artística e cultural entendida em toda a sua diversidade, não avançaremos, continuaremos passando longe da sociedade minimamente harmoniosa que sonhamos.

Os ‘ao vivo’ (lives) de comemoração do aniversário já começaram na terça (21) e seguem até agosto. Qual a sensação de comemorar seu aniversário em meio a uma pandemia? E como você tem visto esse “novo” formado online de consumir e produzir cultura?

As lives, em seus diferentes formatos e alcances estão promovendo uma discussão sobre tudo e todos que tem me interessado demais. Como artista, sou chamada cotidianamente para conversar sobre assuntos fundamentais e diversos. Protagonismo feminino, racismo, nossas relações com o universo indígena, militância política, pandemia e saúde pública. É inesperado, porque sempre à cantora é dada voz para cantar, quase nunca para falar. Acho emblemático.

Por outro lado, está em curso uma grande transformação com o surgimento de novos suportes técnicos, artísticos. Nunca tive pendor para tecnologias e meu dia a dia tem sido entender plataformas, aplicativos, amplificação e captação de som via celulares. Muita novidade.

Quanto aos 60 anos, a pandemia me deu de presente um período abençoado de convivência com minha mãe e uma ligação despojada e informal com o público antigo e o recente que acompanha as lives. O isolamento é coisa muito relativa. Ninguém vive, nem se salva, sozinho. A vocação da humanidade é para a convivência e o cuidado mútuo.

Serviço:

“Titane em Casa”, todas às terças, às 20h

28 de julho | Instagram | Titane canta Zeca Baleiro

4 de agosto | Youtube | Titane canta Chico César

11 de agosto | Instagram | Titane canta Elomar

Participações especiais de Zeca Baleiro, Chico César, Saulo Laranjeira, Suzana Salles, Ivan Villela, Rogério Delayon e Hudson Lacerda.

Edição: Elis Almeida