Um dia depois das redes sociais ficarem todas com a tela preta, uma criança de cinco anos morreu para que a sinhazinha pudesse fazer sua unha em paz.
Essa notícia me estraçalhou. O recado foi dado mais uma vez: vidas negras não importam. É por isso que tanta gente se revolta e se incomoda e se entristece com esses protestos virtuais. Não é sobre o fato deles serem fake, ou hipócritas. Muitos até são, mas não é sobre isso. Não é sobre você que usa o filtro do momento, tela preta, antifascismo, indignado de fato ou aderindo ao modismo da vez.
É sobre impotência. É sobre saber que nada passará disso: filtro no Instagram. É sobre o fosso que separa a tela preta antifascista da realidade cotidiana em que tudo segue conforme o planejado desde a escravidão.
É sobre isso acontecer como regra, porque foi historicamente planejado pra ser assim. É sobre não ter sinais de que vai ser diferente. A tela preta funciona como um lembrete: quer protestar, fique aqui. Vidas negras importam só no Instagram. A polícia está aí pra garantir que isso aconteça.
Enquanto isso, madame se livra com vinte mil reais, ela que tem vinte mil pra fiança, mas não tem pra deixar empregada e manicure em casa em época de pandemia. Serviço essencial. Muito menos pra assinar a carteira da mãe de família. O que dói não é só a morte de Miguel, mas saber que ele morreu simplesmente porque a sinhazinha não liga. Para ela, ele não era uma criança. Era, no máximo, talvez, um futuro bandido. Ou nem isso, era nada. Certamente menos que sua unha bem feita.
O que dói é que ela pode inclusive ter deixado a tela preta, e derramado lágrimas sinceras por George Floyd.
Não, eu não estou sendo irônico com relação a sinceridade das lágrimas. Não é sobre hipocrisia, não é sobre fragilizar ou não o movimento. É sobre o total fracasso de um projeto de sociedade. A tela não está preta por luto, mas porque não tem nada ali. A imagem do nosso fracasso, da nossa vergonha. Fracassamos.
*Acauam Oliveira é professor da Universidade de Pernambuco – UPE, campus Garanhuns, atuando na graduação em Letras e no Mestrado Profissional.
Edição: Cida Alves