Paraíba

Coluna

Coronavírus e o fracasso do neoliberalismo

Imagem de perfil do Colunistaesd
As experiências mundiais sob análise internacionalista - Reprodução
A crise vai passar, mas as relações sociais provavelmente serão diferentes

Em “A Escolha de Sofia”, maravilhoso filme da década 1980, uma mãe presa num campo de concentração nazista é instada a fazer uma escolha impossível: decidir qual de seus dois filhos deve sobreviver. Caso contrário, ambos morreriam. Em 2020, profissionais de saúde do mundo inteiro têm enfrentado dilema semelhante: por falta de leitos de UTIs nos hospitais, devem escolher quais pacientes merecem viver e quais vão agonizar até a morte. Não é necessário explicar o absurdo e o horror desse tipo de situação e escolha. Mais útil é perguntar: como chegamos até aqui? Poderia ter sido diferente? Ainda mais importante: que lições podemos tirar para futuro?

Os que são contrários ao distanciamento físico (não gosto da expressão “distanciamento social”, que parece significar que todos devem tornar-se antissociais, o que não é o caso) têm argumentos frágeis. Dizem que “mais pessoas morrem de malária por ano” ou “mais gente morre dengue ou zika”, e elencam várias causi mortis supostamente mais letais que a COVID-19. Ora, não é difícil perceber que o problema maior não é a letalidade do novo coronavírus (que já é consideravelmente alta), mas a sobrecarga dos sistemas de saúde. Ao tentar defender o indefensável, os negacionistas esquecem o fator temporal: a COVID-19 pode não ser a mais letal das enfermidades, mas é extremamente contagiosa, o que significa uma corrida aos hospitais e o consequente colapso dos sistemas de saúde, não só pra pacientes com COVID-19, mas para qualquer pessoa que necessite de uma UTI. O rapaz que caiu da motocicleta, o senhor que teve um infarto, o menino que tá com pneumonia: ninguém terá garantia de ser atendido e estará, portanto, sujeito àquela escolha de Sofia.

Poderia ser diferente? Sim, poderíamos estar mais bem preparados se os nossos sistemas públicos de saúde estivessem mais robustos, tanto em tamanho quanto em qualidade. Há, entretanto, outra doença que assola o mundo há cerca de 40 anos e que põe entraves à existência de tais sistemas, colocando em xeque, consequentemente, a vida de sabe-se lá quantas pessoas mundo afora: as políticas econômicas neoliberais. Segundo a doutrina (sim, porque o neoliberalismo não passa de ideologia), o Estado não deve intervir onde não é necessário, sob pena criar ineficiências ao mercado. A intensificação do neoliberalismo e o recrudescimento de políticas de austeridade desnecessárias e irracionais que o mundo experiencia - sobretudo após a vitória de Donald Trump nos EUA e o crescimento da extrema direita mundial nos últimos anos - têm piorado ainda mais o cenário para a saúde pública mundial. A pandemia, portanto, pegou o mundo no contra-pé.

Exemplos do descaso das políticas neoliberais com a saúde pública não faltam. Nos Estados Unidos, houve cortes substantivos de orçamentos relacionados à saúde (sobretudo aos Centros de Controle de Doenças – CDC, na sigla em inglês). A administração dos republicanos tenta desmantelar o pouco que o governo Obama tentou avançar nesse sentido, com o “Obamacare”, acusado pela direita raivosa de ser um projeto “comunista”. No Brasil, no que pode ser considerado um crime de lesa-pátria, o governo Michel Temer aprovou a PEC 55, que congelou, entre outros, os gastos estatais com saúde por 20 anos. Por sua vez, a indústria farmacêutica, concentrada em um punhado de grandes corporações com poder de lobby na esfera política, não tem nenhum interesse em investir em prevenção de crises de saúde pública. Pra eles, quanto mais estamos doentes, mais lucram. Como afirma David Harvey, se quiséssemos ser místicos ou supersticiosos, daria pra dizer que a COVID-19 é uma vingança da natureza contra 40 anos de negligência e de extrativismo de um neoliberalismo violento e desumano.

O mundo não será mais o mesmo. A crise vai passar, mas as relações sociais provavelmente serão diferentes. O papel dos Estados, a economia da saúde, a maneira como encaramos as nossas necessidades enquanto sociedade, tudo isso vai mudar. Opiniões se dividem sobre o futuro. Algumas otimistas, outras pessimistas. Por um lado, percebem-se demonstrações emocionantes de solidariedade e de amor ao próximo, podendo significar um aumento do nosso sentimento de comunhão. Por outro, há sinais de aumento da xenofobia em alguns lugares (Canadá, por exemplo) e a pandemia pode atingir em cheio as pequenas e médias empresas, em detrimento de grandes corporações, estas que “não podem quebrar” e que o Estado sempre socorre ao final. O neoliberalismo, além de ser demagógico, é também hipócrita: a intervenção estatal é bem-vinda, desde que atenda os interesses do capital. Socializam-se as perdas; privatizam-se os lucros. 

Uma coisa, porém, é certa: a pandemia da COVID-19 tem que significar, como de fato significa, o fracasso retumbante do modelo neoliberal. Agora, mais do que nunca, é preciso estar  atentos e fortes. Não se pode permitir que os ideólogos de plantão do neoliberalismo se apropriem novamente e cinicamente de uma falsa narrativa supostamente triunfante. Fizeram isso em 2008, por ocasião da crise dos subprimes. E conseguiram: o Estado salvou os capitalistas deles mesmos e eles voltaram com toda a força. Não se pode permitir que o façam de novo.

 

*Mozart Grisi Correia Pontes é diplomata.

 

As opiniões expressadas pelo autor não necessariamente coincidem com a posição do Ministério das Relações Exteriores.

Edição: Heloisa de Sousa