Rio Grande do Sul

MEMÓRIA

Lúcida Tristeza: Este é Luiz Almeida Araújo, assassinado pela ditadura

Foi sequestrado no dia 24 de junho de 1971

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Foi sequestrado no dia 24 de junho de 1971, em São Paulo, e nunca mais foi visto / Foto: Arquivo pessoal - Foto: Arquivo Pessoal

Luiz foi um militante pela liberdade através da Ação Libertadora Nacional (ALN). Iniciou sua atuação política no movimento estudantil secundarista e, após várias prisões e torturas, foi dado como desaparecido. Nesta última parte da série Lúcida Tristeza, a entrevista é com sua mãe, Maria José Mendes de Almeida.

A série Lúcida Tristeza é composta de trechos de conversas de encontros com familiares de mortos e desaparecidos da ditadura militar no Brasil, permeados por algumas fotos e breves percepções pessoais acerca do assunto.

Leia também as outras entrevistas da série:

- Este é Devanir José de Carvalho, assassinado pela ditadura

- Este é Virgílio Gomes da Silva, assassinado pela ditadura

- Este é Bergson Gurjão Farias, assassinado pela ditadura



Luiz Almeida Araújo / Foto: Arquivo pessoal

Este é Luiz Almeida Araújo, assassinado pelos militares aos 27 anos. Foi sequestrado no dia 24 de junho de 1971, enquanto caminhava pela Avenida Angélica, em São Paulo. Quando desapareceu, sua companheira Josephina Vargas Hernandes estava grávida, e encontrava-se viajando em missão fora do país. Luiz sumiu sem conhecer a filha, Alina. O Relatório Oficial do Ministério da Marinha, de 1993, afirma sobre Luiz: “AGO/71 – teria sido dado como morto”.

Em 2012, na execução do projeto Ausências, de Gustavo Germano, tive a oportunidade de conversar com dona Maria José Mendes de Almeida, mãe de Luiz. Nos sentamos na varanda da casa de sua filha, Maria do Amparo, em Recife (PE).

Peço que você se apresente.

Maria José: Eu sou Maria José de Almeida Araújo, a mãe de Luiz, cujo filho eu perdi de uma maneira muito, muito, muito ingrata, muito difícil, muito sofrida. Ele era tudo de bom que eu tinha na minha vida. Meu primeiro filho... filho, amigo, era tudo pra mim. Era a única companhia que eu tinha, realmente era ele né, meu filho mais velho. Era uma pessoa muito inteligente, não tenha dúvida. Humano mais era impossível. O que ele pudesse fazer, por qualquer pessoa, ele fazia. Eu pelo menos considerava o meu filho assim, um anjo.

E como foi se acostumar com essa falta, dona Maria José?

Maria José: Nunca me acostumei, nunca aceitei. Procurei nunca esquecer meu filho. Se vou na missa mando rezar missa, entendeu? Na igreja, rezo por ele, penso que tô vendo ele. Eu lembro do meu filho como eu tô vendo você. Pode acreditar... Procurei muito, sonhei muito, vi muitas vezes o meu filho no meu pensamento. Entendeu? Eu ouvi gritos. Quer dizer, isso tudo na imaginação. Como se fosse um filme passando. Eu lembrava de tudo, de tudo. Guardei roupa dele por muito tempo. Beijava a roupa, pedia a Deus. Até hoje, se você quer saber, até hoje eu escuto dizer “mãe”. Até me arrepio, porque muitas vezes eu tô em casa e digo “oi, tô aqui!” Entendeu? Oxente vou olhar e não tem ninguém... Entendesse?

(Não consigo mais intervir para fazer perguntas. Dona Maria José emenda um raciocínio no outro. Respeito aqui a ordem lógica de seus pensamentos.)

Maria José: Com todo esse sofrimento, eu depois peguei uma criança pra criar, que eu posso falar isso daí, que não é que substituiu o meu filho, mas preencheu aquele vazio. Eu que tomava muito remédio controlado, fui pra psiquiatria, fiquei cinco anos na psiquiatria. Era pra enlouquecer, né. E aí resolvi pegar essa criança pra criar que agora, no caso hoje, tem 38 anos. Muita coisa ele tem do meu filho. Muita coisa.

Se você quer saber, tem uma fotografia dele, do Luiz, aos 27 anos, foi quando ele desapareceu. Aí eu mandei aumentar e tal, punha num porta-retrato em cima do piano deste meu filho adotivo né, o Vinícius. E muita gente perguntava quando chegava: quantos anos o Vinícius tinha aqui? Eu digo não, não é o Vinícius, é o Lula (Luiz). Mas nossa, como parece! Entendesse? Por incrível que pareça, esse menino que eu criei, parece que o Lula fala com ele todo dia. Porque ele faz coisas que eu digo: meu deus, não é possível né, porque isso o Lula fazia comigo. Entendeu?

Existe uma coisa que eu não esqueço. O último dia que eu vi o meu filho. Foi no fim de ano, se não me engano, pra amanhecer o ano novo. Ele teve lá em casa escondido, claro. Eu nem sabia que ele tava em São Paulo, pensei que ele tinha sumido, desaparecido né. Aí chegou e me abraçou, como sempre muito carinhoso. E eu tava até com uma roupa jeans nova, que era fim de ano, tava arrumada e ele disse: nossa como cê tá bonita! Me fale de você! Ele falou pra mim: me fale de você. Porque a minha vida você já sabe, é essa, tenho que sair daqui já daqui a pouco.

Aí comeu qualquer coisa lá em casa comigo. Foi o último dia que eu vi meu filho vivo. Aí ele desceu a rua de Santo André e eu fiquei olhando, morava no segundo andar de um prédio. Eu fiquei olhando ele descendo toda a rua, porque a rua era quase uma reta. Até que eu não vi mais o meu filho. Foi daí que eu fiquei pensando. E essa frase eu escuto sempre: fale de você um pouco. Escuto ele, acredita? Por Deus!


Em família, Luiz ao lado da mãe / Foto: Arquivo pessoal

Sabe que eu espero meu filho? Eu espero meu filho. Lá em casa, eu sempre pensei numa casa grande pra ter meus filhos, acredita? Eu to saindo, pretendendo sair da casa, mas com aquela esperança, sempre pensando: quem sabe ele volta, né? Quem sabe ele vem? Quem sabe eu vejo? Entendeu? E assim vai a vida passando, e eu naquela esperança de ainda um dia ter meu filho...

Ele foi o melhor amigo da minha vida. Sofri muito a falta dele, muito mesmo, e não me conformo que até hoje eles dêem meu filho como desaparecido. Porque quem estava preso ao lado dele, que se livrou depois, me contou que escutou os gritos dele. Entendeu? Quando tava sendo torturado, com certeza né. Com certeza. E nunca ninguém me convenceu.

Agora eu quero é realmente, pelo menos, quem sabe dar futuramente um enterro decente a ele. Porque até hoje ninguém... se tá desaparecido, tem que aparecer de qualquer maneira quem fez, quem deixou de fazer. Porque tem que ter uma prova. Como é que eu vou aceitar um negócio desse? E se disse que não matou, que ele tá sumido, sumiram com ele? Então dá uma explicação decente pra gente. Não um atestado, com um número qualquer. Não, não pode ser isso...

E eu digo uma coisa a você, se eu morrer sem encontrar meu filho, eu vou ficar por aqui. Porque eu não posso sair daqui se eu não tiver certeza que o meu filho também já não saiu. Porque eu tenho impressão que mesmo na missa de sétimo dia, que mesmo depois de tantos anos, eu quero encontrar, nem que seja depois de morta. Entendeu? Tem que ter uma explicação. E eu exijo isso aí.

(Nos abraçamos. Nos despedimos. Nenhuma palavra pode acrescentar algo a esta história.)


Mais tarde, passamos em Olinda para nos despedirmos de dona Elzita Santa Cruz, mãe de Fernando Santa Cruz, outro jovem assassinado pelos militares, aos vinte e seis. Dona Elzita, redondos cem anos, sentada em uma cadeira de praia, recita:

“Sentada à porta
Os olhos no caminho
Ei de vê-lo voltar, ela dizia
O meu doce consolo, meu filhinho...

Passam-se os anos
E o véu do esquecimento
Baixando sobre as coisas
Tudo apaga

Menos da mãe
No triste isolamento
A saudade que o coração lhe esmaga”.

Elzita.

Segue na busca de seu filho.

Com a dor de duas mães, algo que nunca poderei sentir, peço para cada leitor de Lúcida Tristeza um minuto de silêncio, reflexão em respeito das vítimas. Aos que se foram. Aos que sumiram, e nunca mais.

E com este silêncio, me despeço. Ciente de ter regado um embrião, ainda que micro, para que a árvore da lembrança cresça sempre vivaz em torno destas histórias e vivências, e à luz do dia, sob a batuta eloquente da liberdade de expressão.

Que estas experiências germinem, floresçam, e deem luz a novas e diferentes visões possíveis imagináveis em torno do tema. Para que nunca o esqueçamos.

Vivemos de plantar sementes.

Lúcida Tristeza, por André Luís Garcia.

Em memória de Tânia Gurjão Farias.

 

Edição: Marcelo Ferreira