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Artigo | Solidão e solidariedade

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marmita solidariedade corona covid19
Nas grades do Parque Municipal, em BH, coletivo pendura marmitas para pessoas em situação de rua - Arquivo pessoal
O dilema entre solidariedade e solidão é falsa dicotomia. A solidão pode ser solidária e vice-versa

No mundo real, há dilemas irreais. Como o que contrapõe defesa da vida e funcionamento da economia. Não se trata de escolher um e deixar o outro de lado, mas de ter a sabedoria de articular os dois universos, a partir de um valor fundamental. Como em toda dúvida ética, não se trata de decidir entre o certo e o errado, mas de escolher o caminho mais viável entre verdades que não se anulam. 

A importância de um verdadeiro líder nas situações críticas é dada exatamente pela capacidade de trazer para si a responsabilidade de tomar as decisões mais equilibradas e justas. É preciso sabedoria, empatia, inteligência, conhecimento e confiança de todos. O caminho para a escolha dessas pessoas se aprimorou com o passar do tempo até a consolidação do modelo democrático moderno, que se nutriu de instrumentos capazes de garantir cada uma dessas qualidades, tendo como sustentação o desejo da maioria. 

Por isso, o momento da crise de legitimidade que o país atravessa no combate à pandemia da Covid-19 assume riscos no campo democrático, com ameaças latentes de arbítrio sopradas por comportamentos estrategicamente perniciosos, que pavimentam seu intento indisfarçável. Além disso, afronta outras conquistas da civilização, como o saber científico, propondo narrativas mágicas e inconsequentes, além de acenar com o caos inevitável como caução de seu comportamento genocida.

Essas questões, que têm mobilizado a sociedade brasileira em todas as áreas, da política à saúde, passando pela economia e as relações entre as pessoas, ganham a cada dia novos desdobramentos. É nosso horizonte inescapável: medir a urgência das atitudes seja dentro da ordem ou em direção ao rompimento e desobediência civil. Não haverá nova chance de acertar o rumo depois de instalado o colapso.

No entanto, há dimensões menos amplas e igualmente importantes nesse contexto, para as quais é preciso atenção e cuidado. Com a realidade do isolamento social, qualquer que seja ele, entram em cena aspectos psicológicos e éticos para os quais devemos estar preparados na medida do possível. Um espectro ronda a sociedade brasileira, o fantasma da solidão. A política se faz carne: é impossível ser feliz sozinho.

Preparar-se para viver de forma solitária, mesmo com todo o aparato tecnológico que nos dá uma presença virtual do outro, é uma realidade que já bate à nossa porta. O dilema entre solidariedade – que indica o afastamento do outro como aposta no valor do coletivo – e a solidão, que isola o indivíduo, é mais uma daquelas falsas dicotomias. A solidão pode ser solidária. E vice-versa.

É por meio do amor ao outro – seja ele uma pessoa cujo rosto habita nossa memória de afetos, como parentes e amigos que precisam ser protegidos; seja um abstrato outro que compõe o que chamamos de sociedade que também nos sustenta e dá sentido existencial – que marcamos neste momento nosso pertencimento no mundo. A possibilidade da doença é um sintoma de eventual risco ou fraqueza, mas também um sinal de humanidade. Poucas vezes fomos tão iguais e próximos uns dos outros nos últimos anos.

A tarefa de combater a ignorância, o mal, o despreparo, o egoísmo, a má-fé e a incompetência ainda precisa ser trilhada com toda a energia. Novas estratégias políticas precisam ser postas em ação, mais elementos científicos devem ser considerados, nunca a capacidade de mobilização foi tão necessária. A luta, como nunca, continua. Mas em meio a essa situação, uma nova aba se abre na tela das nossas preocupações: a capacidade de ser solidário mesmo que isso implique aceitar a solidão nossa de cada dia e a inclinação a pessoas que não fazem parte do nosso repertório de afeição.

E é preciso atenção, já que nem sempre a carranca amedrontadora é apenas a feição do monstro indisfarçável que convoca nossa revolta visceral. Os defensores do retorno imediato à “normalidade” (que instauraria o risco entre os mais frágeis e com isso em todo o ciclo da vida como a concebemos) pode ser obra de pessoas que exibem seu sucesso como obra de uma coragem feita sempre com a saúde do outro. Neste momento, para esses renegados da empatia, parece lícito emparelhar vidas e empregos. E defender os empregos.

Não é fácil amar o próximo quando ele se reveste do que há de pior e mais detestável, revelando a cada estação sua face de horror e desumanidade. Mas, por ora, não temos outra saída. Ou seremos solidários ou não seremos.

Edição: Joana Tavares