Paraíba

TEATRO DE RUA

Quem Tem Boca é Pra Gritar faz 32 anos de ocupação das ruas com utopia e arte

"Show opinião de novo”, “Surto” e “Maracatu Pé-de-Elefante” são as atrações da festa, neste dia 27

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
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O grupo de teatro Quem Tem Boca é Pra Gritar está completando 32 anos neste mês de setembro. Em atividade desde a redemocratização do país, nos idos de 1987, o grupo é uma das maiores referências do teatro de rua do país. Não são poucas as festividades para comemorar sua trajetória: Este final de semana vão acontecer os espetáculos: “Show opinião de novo”, “Surto” e “Maracatu Pé-de-Elefante”. As apresentações irão ocorrer na próxima sexta-feira (27), no Galpão Usina de Artes, as 19h centro histórico da capital, com entrada gratuita e a tradição de passar o chapéu.

Nesses 32 anos, o espetáculo que teve maior circulação foi A festa do Rei, que chegou a São Paulo, Rio de Janeiro, e várias regiões. Outro destaque é para a peça Cancão, Malazarte e Trupizupe, texto de Bráulio Tavares de 2009, que conta a história dos “trambiques” de três espertalhões, para mostrar uma faceta do povo nordestino que, para sobreviver, precisa desenvolver uma enorme sagacidade. A peça circulou em várias regiões do país e está em atividade até hoje. Segundo Mirtthya Guimarães, uma das integrantes do grupo: “Podemos dizer que estamos em uma segunda fase, segunda etapa dessa jornada do Quem Tem Boca é Pra Gritar, porque em 2007 foi aberta uma seleção e várias pessoas que entraram Entre 2007/2008”, conta ela que aproveita para fazer referência a vários integrantes importantes do passado do grupo, como Chalena Barros, uma das fundadoras também, juntamente com Humberto Lopes. Outro nome é Josemar Alves, de Campina Grande, onde o grupo nasceu. Além dele, Jane Sousa, Itamira Barbosa e David Muniz, entre outros.
O jornal Brasil de Fato conversou com Humberto Lopes, fundador e diretor do grupo. Confira:
Brasil de Fato: Como começou a ideia do grupo, na década de 80?
Humberto Lopes: Quando a gente começou esse trabalho, eu morava em Campina Grande. E aí a gente queria fazer teatro e sabia qual teatro não queria fazer, mas não sabia também qual teatro queria fazer. E aí um dia, assistindo um espetáculo de rua, pensei: é esse tipo de teatro que eu quero fazer. E começamos a pesquisar essa coisa do teatro de rua. E aí começamos a ter contatos com amigos do Brasil todo que estavam nessa mesma: o “Tá na rua” do Rio de Janeiro.
Bdf: Nessa época o teatro de rua era comum no Brasil, ou seja, era algo que se via muito por aí?
Humberto Lopes: Diferente de hoje que o teatro de rua é muito forte no Brasil, naquela época era muito raro. Havia uma mentalidade na produção de teatro no Brasil, naquela época, em que o pessoal pensava que quem fazia teatro de rua é quem não tinha dinheiro para pagar a pauta do teatro. Mas na realidade o teatro de rua daquela época e até hoje é um teatro mais ideológico, mais comprometido com aqueles que não têm acesso ao teatro. Para você ter uma ideia, há alguns anos atrás a gente fez um levantamento na Paraíba e fizemos uma mini-turnê, por nossa conta, em dez cidades que provavelmente nunca tinham visto teatro, os moradores daquela região. Que eram colônias de pescadores e tal no Nordeste. E o Quem Tem Boca desde o princípio construiu, primeiro, uma identidade de grupo onde o principal não é o espetáculo. O principal é o que nós estamos tentando construir enquanto grupo, enquanto pensamento filosófico e ideológico. E o espetáculo é um resultado desse pensamento. Então a gente tem um galpão que era uma ruína e conseguimos reconstruir depois de muitos anos de luta, lá no centro histórico. E a gente trabalha independente de estar montando espetáculo ou não, a gente está lá três vezes na semana para trabalhar, para construir essas coisas. O teatro de rua no Brasil foi crescendo à medida em que se formava uma coisa chamada movimento nacional de teatro de grupo. Isso é uma coisa iniciada por nós, junto com o Galpão de Minas Gerais, ou o Tá na Rua, tinha uma galera. 
BdF: Tem muito do Teatro do Oprimido?
Humberto Lopes:O Teatro do Oprimido é uma outra coisa que nós estudamos, mas não é exatamente isso. Claro que também tem uma pesquisa, tem uma base do teatro de Augusto Boal, que inclusive, eu era amigo dele, e toda vez que eu ia para o Rio de Janeiro a gente se encontra e conversava. Mas a ideia do teatro de rua, do Que Tem Boca é Pra Gritar é construir um espetáculo onde as pessoas tenham acesso, o cidadão comum, mas consiga ver uma espetáculo que seja bom e o mais teatral possível, para que eles compreendam que o teatro é uma arte, mesmo se esse teatro tiver com discurso ideológico, político ou não, o importante é que a interpretação seja forte, e que seja visível que é uma arte, que é uma coisa que, independente de ser numa sala, no teatro, no palco ou na rua, a interpretação sempre vai ter que ser a coisa mais importante. 
E aí nós fomos ficando na rua e foi quando um certo tempo me convidaram para fazer aqui uma Paixão de Cristo na rua, primeira que foi feita fui eu. E aí eu fiz de novo durante três anos. E eu me lembro que na época que eu vim, havia um negócio de artes plásticas chamado Paixão de Cristo em Outdoor, um negócio assim, que existia aqui. E a prefeitura me convidou para fazer um espetáculo, em frente ao Casarão dos Azulejos. E durante três anos eu fiz ali, e depois fiz um Auto de Natal também. 

E aí eu estava vindo  tanto para cá, para fazer essas coisas, e na época resolvemos nos mudar para cá. São mais ou menos uns 20 anos que estamos em João Pessoa trabalhando com espetáculo pelo Brasil inteiro. Nós somos citados na maioria dos livros de teatro no Brasil. O que nós queríamos era fazer um teatro que tivesse história e quando as pessoas fossem estudar o teatro, fossemos vistos também. E o Dicionário do Teatro Brasileiro tem uma página que fala sobre o grupo Que Tem Boca é Pra Gritar .
E aí foram muitos anos, muita luta, muita batalha. E daqui a pouco eu faço 37 anos que faço teatro. E recentemente fui convidado para São Paulo, para fazer uma roda de conversa sobre essa coisa ideológica. Então foram rodas e rodas de conversa mais detalhadas sobre a ideia de como foi construída. Hoje o nosso objetivo maior é construir uma forma de interpretar na rua. 
BdF: Como vocês escolhem o que irão trabalhar, as peças?
Humberto Lopes: Tem muito a ver com o período, então a gente vem desde o final da ditadura trabalhando, e historicamente, a gente pesquisa. O último espetáculo que a gente fez, que é Comédia Com Farinha, que é uma comédia de l'art modernizada, ela é engraçada, picante, como é a estrutura da comédia de l’art, mas ela discute um pouco a questão da mulher, a questão de gênero, porque a gente sempre busca montar os espetáculos de acordo com o momento histórico, com as discussões daquele momento, mas sempre priorizando, não o discurso direto, e o nosso objetivo é fazer um espetáculo, onde as pessoas se divirtam e, em compensação, comecem a pensar sobre a peça e sobre a sua vida. Então é não ser um discurso direto, mas ao mesmo tempo ser um discurso incluso. Porque o mais importante do teatro é que as pessoas se divirtam, vão para casa, e se vejam.
BdF:Muitas vezes para ser engraçado, algumas peças fazem piada com coisas que machucam...
Humberto Lopes: Isso já ficou no passado porque você pega uma obra de Ariano (Suassuna), e ela tem uma comicidade da época, mais machista, mais caricata. E quando você vai fazer um texto do Ariano, você vai ter que fazer essa discussão em outro momento. Porém esse é um discurso que já está ficando caduco. O próprio Nietzsche dizia que a arte existe para que a realidade não nos destrua. Então a gente tem que estar sempre no campo da arte e discutindo a realidade, ou refletindo sobre a realidade, mas não no campo de dizer o que é certo e o que é errado. A arte provoca a sua reflexão, e o nosso trabalho é esse, é provocar o indivíduo para que ele possa refletir sobre as posições dele.
BdF: Inclusive isso é emancipador, é libertador fazer as pessoas pensarem...
Humberto Lopes:O principal objetivo é tocar o coração das pessoas; nosso espetáculos sempre vão para o campo da emoção, porque acho que vivemos numa sociedade extremamente embrutecida. A tecnologia tem um lado bom e o lado ruim. Um dos lados ruins é que ela nos deixou mais distantes uns dos outros. Porém, a gente tá agora conversando. Em outros tempos a gente estaria sentado, escrevendo...
BdF: As novelas mostram uma realidade que não condiz com a gente. A pessoa mais pobre tem uma casa de 500 mil reais, rs…
Humberto Lopes: A novela cria uma ilusão. O objetivo dela e deixar você quieto em casa. E pensando assim: esse cara mora aí nessa casa, é pobre, porém um dia eu também vou ter a mesma casa. Eu fui convidado para fazer uma minissérie, um tempo desses, e eu não quis fazer. Então eu acho que essa discussão não me interessa. Eu sou um artista comprometido com a boa saúde do meu povo. Eu quero que as pessoas percebam que a minha arte contribui para alguma coisa. A novela ela é ruim porque ela vende uma imagem irreal. Ela vende uma mentira para acomodar as pessoas. E eu gosto e realismo. Eu acho que o teatro é uma mentira tão bem contada que parece de verdade, e as pessoas tem que sentir um pouco disso.
E mesmo nessa questão das novelas. Eu consegui passar por essas coisas mantendo aquilo que eu acho importante e aquilo que eu acho que eu devo fazer. Minha questão na realidade não é nem se eu tô certo eu tô errado, é que eu esteja fazendo aquilo que tem que ser feito.
BdF: Não há um sorriso mais genuíno do que o das crianças e pessoas da classe trabalhadora diante do teatro de rua...
Humberto Lopes: E eu sou um cara muito chorão... uma vez estávamos no espetáculo no interior da Paraíba, chega uma senhorinha com dois pedaços de bolo, e ela disse: eu não tenho dinheiro, eu só tenho esses dois pedaço de bolo, mas eu queria dar para vocês. Essas coisas não tem preço, sabe? E quando vemos isso é uma sensação de que estamos fazendo exatamente aquilo que deveria ser visto. 
BdF: E como é a questão do financiamento?
Humberto Lopes: O chapéu é simbólico e cultural do teatro. Então, cada pessoa oferece aquilo que pode, o que tem. O teatro de rua normalmente é pago por uma prefeitura ou um projeto nosso. E nós fizemos dez cidades, e fizemos uma parceria com o Sebrae na época que deu transporte. 
BdF: Fala um pouco sobre os integrantes ao longo dessa trajetória.
Humberto Lopes: Normalmente há uma variação. Todo grupo é assim nosso caso tem muito isso também. E a maioria das pessoas que está conosco hoje tem 10 anos com a gente, 12 anos. Alguns saíram para formar outro grupo, outros para estudar, outros para morar em outro lugar. 
E depois a gente abre espaço para essas pessoas fazerem estágio e é um mínimo de seis meses, máximo de dois anos. São pessoas que vão sendo preparadas para se quiserem integrar realmente o grupo. E eu sou diretor do grupo. Mas os espetáculos são dirigidos por várias outras pessoas. Eu fico muito mais na construção ideológica e direção do grupo.

Edição: Cida Alves